Mas a cidade onde se vive?

27-02-2003
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Mas a Cidade Onde Se Vive?

Sábado, 22 de Fevereiro de 2003

Se o espaço não é o lugar do não-dialéctico, do fixo, do morto, é porque nele se podem actualizar "estratégias, projectos e trajectórias" e porque ele vai funcionar como "arena de conflitos duros".

%Eduardo Prado Coelho

É um desses livros que se pode ler depressa e que não chegam a desenvolver ou a fundamentar exaustivamente as suas principais propostas. Mas é ao mesmo tempo um trabalho estimulante, que nos introduz numa problemática inovadora entre nós, e em relação à qual eu próprio me tenho sentido particularmente tocado. Refiro-me a "Novas questões de sociologia urbana - Conteúdos e orientações' pedagógicas", de João Teixeira Lopes, pequeno texto publicado há algum tempo nas Edições Afrontamento.

Não se trata de uma total inovação no trabalho de João Teixeira Lopes, uma vez que o tema da cidade sempre foi dominante na sua prática de sociólogo. Daí a sua tese "A cidade e a cultura - Um estudo sobre práticas culturais urbanas", publicado também pela Afrontamento em 2000. Por outro lado, tem tido na sua intervenção política, no âmbito do Bloco de Esquerda, uma importante e significativa preocupação com as questões da cidade, e esteve ainda na primeira fase do Porto Capital Europeia da Cultura 2001. É aliás por isso que introduz como tema de uma das secções do livro o programa cultural do Porto Capital da Cultura com o elenco de múltiplas intervenções que são simultaneamente antropológicas, sociológicas e estéticas, e que ele apresenta, na sequência de Harold Garfinkel, como "estratégias típicas do 'making trouble'": "uma perturbação deliberada das vivências e rotinas quotidianas de forma a fazer emergir os interditos, a normatividade latente, os não-ditos". O leitor pode tomar nota: tem aqui um trabalho pedagogicamente muito eficaz, e não espanta que assim seja porque ele resulta de um "relatório pedagógico" apresentado no curso de Sociologia da Faculdade de Letras do Porto. Neste plano esta obra assemelha-se a um outro pequeno livro muito útil, a "Antropologia do Espaço" de Filomena Silvano, publicado na Celta, e por sinal ausente de um modo estranho da bibliografia proposta.

Aliás, olhando para essa bibliografia, percebemos quais são as principais referências deste novo "materialismo histórico-geográfico", que provém do marxismo, como é óbvio, mas se desloca a grande velocidade por novas paisagens e novos conceitos: temos o clássico de Henri Lefebvre, "La production de l'espace", temos a nova geografia (aqui representada por Edward Soja, com "Posmodern Geographies"), temos David Harvey, que, depois de ter escrito um estudo famoso sobre o pós-modernismo, publicou recentemente "Spaces of Hope". Temos Erving Goffman para tudo o que diz respeito a formas de teatralização e ficcionalização do espaço contemporâneo, assim como Richard Sennett ou John Urry (não suficientemente aproveitado para meu gosto). E do lado português o imprescindível Carlos Fortuna mas também Boaventura de Sousa Santos. O texto de base em termos de manual escolar é o de Alfredo Mela, "A Sociologia das Cidades", publicado pela Estampa em 99. Pela minha parte, acrescentaria uma obra que permite unir todos estes fios num panorama bastante exaustivo: Mike Crang e Nigel Thrift. "Thinking Space", Routledge, 2000, no âmbito de uma excelente colecção intitulada "Critical Geographies".

Mas como Teixeira Lopes começa, o que é compreensível dada a natureza do seu texto, por considerações sobre a situação do ensino universitário, gostaria de sublinhar alguns pontos que me parecem de particular importância. A universidade portuguesa vive hoje um período (que acontece um pouco por todo o mundo) de desvalorização da sua especificidade, porque, no quadro de um apelo saudável a uma maior ligação ao mundo da vida, da produção e da criação, reduz-se esse mundo da vida ao mundo da economia (que passa a ser o único "real" a considerar). "Nas actuais circunstâncias, discutem-se procedimentos burocráticos, quantifica-se o que é possível quantificar, multiplicam-se as práticas estandartizadas de auto e heteroavaliação, repetem-se, até à exaustão, palavras como 'ratio' ou financiamento. Escasseia o tempo, por isso, para a produção de discursos libertos de constrangimentos do dia-a-dia gestionário. Gera-se, então, uma funcionalidade perversa, latente, em boa parte subtraída à consciência dos actores do campo académico." Estamos num "modelo de simulacro de autonomia" que prescinde por completo da questão pedagógica. Daí que este texto faça questão em ser completado com reflexões de tipo pedagógico e com sugestões de formas de transformação da relação pedagógica.

No final do livro encontramos um posfácio em que João Teixeira Lopes recolhe um texto publicado noutro colectivo: "Os construtores da cidade: um olhar sociológico". Recomendo ao leitor que comece por aí porque as pedras angulares estão lá. Duas ideias essenciais. A primeira defende que, ao contrário de toda a tradição, que via o espaço como uma espécie de moldura, temos de passar a considerar o espaço como uma zona de tensões, vibrações, intensidades sociais, afectos, atracções e repulsas, polarizações e rarefacções. Estamos aqui num processo que de certo modo repete a nossa entrada na modernidade. Também no período pré-moderno o tempo era algo que era exterior aos acontecimentos. A modernidade altera esta concepção: o tempo passa a ser a própria forma (expressão que deveria ser escrita no plural) de organização dos acontecimentos. Ora o que verificamos hoje é que aquilo a que podemos chamar a pós-modernidade (noção que Teixeira Lopes atravessa embora demarcando-se sempre da sua dimensão mais leve e exuberante) corresponde a uma incorporação do espaço na organização das pessoas e das coisas. Por outras palavras, "agora, é impossível desespacializar a acção humana, precisamente porque é em torno do espaço que se orientam as lógicas económicas e simbólicas do capitalismo avançado". Daí a primeira recomendação: precisamos de "espacializar a história e historicizar a geografia".

A sua ideia central, a segunda, portanto, é a de que não é possível reduzir o espaço-tempo subjectivo às estruturas objectivas da exterioridade material e conceptual mas também não é possível fazer deslocar esse espaço-tempo subjectivo para a pura euforia das representações em que as imagens funcionam autonomamente como entidades que a si mesmas se imaginam (e é aqui que começa a crítica da pós-modernidade). Embora reconhecendo que entramos num "hiperespaço" dominado pela lógica da rede e pelo fluxo ininterrupto (estranha-se de passagem a ausência dos estudos de Appadurai), Teixeira Lopes mantém sempre a ligação à materialidade da estrutura exterior aos indivíduos, condicionados nos nossos dias por aquilo a que se pode chamar (segundo as descrições de Jameson ou Harvey) um "capitalismo tardio".

Se o espaço não é o lugar do não-dialéctico, do fixo, do morto, é porque nele se podem actualizar "estratégias, projectos e trajectórias" e porque ele vai funcionar como "arena de conflitos duros". A principal originalidade de Teixeira Lopes é que abandona a "solução" de um racionalismo estreito a que a esquerda tradicionalmente recorria: promover como saída quase utópica a revalorização do espaço público através de uma ética do consenso entre sujeitos puramente racionais, à maneira de Jurgen Habermas. Como escreve Teixeira Lopes, "perdi a crença de que revitalização e regeneração urbana das praças, ruas, teatros ou cafés acarretará por efeito automático o reencantamento da esfera pública e semipública". E isto porque "o paradigma comunicacional de racionalidade parece pouco propício aos usos quotidianos, enfermando de uma concepção universalista e vagamente etnocêntrica". O principal interesse das teses de Teixeira Lopes não deriva apenas da passagem de um espaço neutro para um espaço intensivo, mas também da passagem de um sujeito abstracto para "uma subjectividade corporalmente encarnada". Só as subjectividades corporalmente encarnadas estão em condições de estruturar lógicas de mudança social.

Mas a Cidade Onde Se Vive?

Sábado, 22 de Fevereiro de 2003

Se o espaço não é o lugar do não-dialéctico, do fixo, do morto, é porque nele se podem actualizar "estratégias, projectos e trajectórias" e porque ele vai funcionar como "arena de conflitos duros".

%Eduardo Prado Coelho

É um desses livros que se pode ler depressa e que não chegam a desenvolver ou a fundamentar exaustivamente as suas principais propostas. Mas é ao mesmo tempo um trabalho estimulante, que nos introduz numa problemática inovadora entre nós, e em relação à qual eu próprio me tenho sentido particularmente tocado. Refiro-me a "Novas questões de sociologia urbana - Conteúdos e orientações' pedagógicas", de João Teixeira Lopes, pequeno texto publicado há algum tempo nas Edições Afrontamento.

Não se trata de uma total inovação no trabalho de João Teixeira Lopes, uma vez que o tema da cidade sempre foi dominante na sua prática de sociólogo. Daí a sua tese "A cidade e a cultura - Um estudo sobre práticas culturais urbanas", publicado também pela Afrontamento em 2000. Por outro lado, tem tido na sua intervenção política, no âmbito do Bloco de Esquerda, uma importante e significativa preocupação com as questões da cidade, e esteve ainda na primeira fase do Porto Capital Europeia da Cultura 2001. É aliás por isso que introduz como tema de uma das secções do livro o programa cultural do Porto Capital da Cultura com o elenco de múltiplas intervenções que são simultaneamente antropológicas, sociológicas e estéticas, e que ele apresenta, na sequência de Harold Garfinkel, como "estratégias típicas do 'making trouble'": "uma perturbação deliberada das vivências e rotinas quotidianas de forma a fazer emergir os interditos, a normatividade latente, os não-ditos". O leitor pode tomar nota: tem aqui um trabalho pedagogicamente muito eficaz, e não espanta que assim seja porque ele resulta de um "relatório pedagógico" apresentado no curso de Sociologia da Faculdade de Letras do Porto. Neste plano esta obra assemelha-se a um outro pequeno livro muito útil, a "Antropologia do Espaço" de Filomena Silvano, publicado na Celta, e por sinal ausente de um modo estranho da bibliografia proposta.

Aliás, olhando para essa bibliografia, percebemos quais são as principais referências deste novo "materialismo histórico-geográfico", que provém do marxismo, como é óbvio, mas se desloca a grande velocidade por novas paisagens e novos conceitos: temos o clássico de Henri Lefebvre, "La production de l'espace", temos a nova geografia (aqui representada por Edward Soja, com "Posmodern Geographies"), temos David Harvey, que, depois de ter escrito um estudo famoso sobre o pós-modernismo, publicou recentemente "Spaces of Hope". Temos Erving Goffman para tudo o que diz respeito a formas de teatralização e ficcionalização do espaço contemporâneo, assim como Richard Sennett ou John Urry (não suficientemente aproveitado para meu gosto). E do lado português o imprescindível Carlos Fortuna mas também Boaventura de Sousa Santos. O texto de base em termos de manual escolar é o de Alfredo Mela, "A Sociologia das Cidades", publicado pela Estampa em 99. Pela minha parte, acrescentaria uma obra que permite unir todos estes fios num panorama bastante exaustivo: Mike Crang e Nigel Thrift. "Thinking Space", Routledge, 2000, no âmbito de uma excelente colecção intitulada "Critical Geographies".

Mas como Teixeira Lopes começa, o que é compreensível dada a natureza do seu texto, por considerações sobre a situação do ensino universitário, gostaria de sublinhar alguns pontos que me parecem de particular importância. A universidade portuguesa vive hoje um período (que acontece um pouco por todo o mundo) de desvalorização da sua especificidade, porque, no quadro de um apelo saudável a uma maior ligação ao mundo da vida, da produção e da criação, reduz-se esse mundo da vida ao mundo da economia (que passa a ser o único "real" a considerar). "Nas actuais circunstâncias, discutem-se procedimentos burocráticos, quantifica-se o que é possível quantificar, multiplicam-se as práticas estandartizadas de auto e heteroavaliação, repetem-se, até à exaustão, palavras como 'ratio' ou financiamento. Escasseia o tempo, por isso, para a produção de discursos libertos de constrangimentos do dia-a-dia gestionário. Gera-se, então, uma funcionalidade perversa, latente, em boa parte subtraída à consciência dos actores do campo académico." Estamos num "modelo de simulacro de autonomia" que prescinde por completo da questão pedagógica. Daí que este texto faça questão em ser completado com reflexões de tipo pedagógico e com sugestões de formas de transformação da relação pedagógica.

No final do livro encontramos um posfácio em que João Teixeira Lopes recolhe um texto publicado noutro colectivo: "Os construtores da cidade: um olhar sociológico". Recomendo ao leitor que comece por aí porque as pedras angulares estão lá. Duas ideias essenciais. A primeira defende que, ao contrário de toda a tradição, que via o espaço como uma espécie de moldura, temos de passar a considerar o espaço como uma zona de tensões, vibrações, intensidades sociais, afectos, atracções e repulsas, polarizações e rarefacções. Estamos aqui num processo que de certo modo repete a nossa entrada na modernidade. Também no período pré-moderno o tempo era algo que era exterior aos acontecimentos. A modernidade altera esta concepção: o tempo passa a ser a própria forma (expressão que deveria ser escrita no plural) de organização dos acontecimentos. Ora o que verificamos hoje é que aquilo a que podemos chamar a pós-modernidade (noção que Teixeira Lopes atravessa embora demarcando-se sempre da sua dimensão mais leve e exuberante) corresponde a uma incorporação do espaço na organização das pessoas e das coisas. Por outras palavras, "agora, é impossível desespacializar a acção humana, precisamente porque é em torno do espaço que se orientam as lógicas económicas e simbólicas do capitalismo avançado". Daí a primeira recomendação: precisamos de "espacializar a história e historicizar a geografia".

A sua ideia central, a segunda, portanto, é a de que não é possível reduzir o espaço-tempo subjectivo às estruturas objectivas da exterioridade material e conceptual mas também não é possível fazer deslocar esse espaço-tempo subjectivo para a pura euforia das representações em que as imagens funcionam autonomamente como entidades que a si mesmas se imaginam (e é aqui que começa a crítica da pós-modernidade). Embora reconhecendo que entramos num "hiperespaço" dominado pela lógica da rede e pelo fluxo ininterrupto (estranha-se de passagem a ausência dos estudos de Appadurai), Teixeira Lopes mantém sempre a ligação à materialidade da estrutura exterior aos indivíduos, condicionados nos nossos dias por aquilo a que se pode chamar (segundo as descrições de Jameson ou Harvey) um "capitalismo tardio".

Se o espaço não é o lugar do não-dialéctico, do fixo, do morto, é porque nele se podem actualizar "estratégias, projectos e trajectórias" e porque ele vai funcionar como "arena de conflitos duros". A principal originalidade de Teixeira Lopes é que abandona a "solução" de um racionalismo estreito a que a esquerda tradicionalmente recorria: promover como saída quase utópica a revalorização do espaço público através de uma ética do consenso entre sujeitos puramente racionais, à maneira de Jurgen Habermas. Como escreve Teixeira Lopes, "perdi a crença de que revitalização e regeneração urbana das praças, ruas, teatros ou cafés acarretará por efeito automático o reencantamento da esfera pública e semipública". E isto porque "o paradigma comunicacional de racionalidade parece pouco propício aos usos quotidianos, enfermando de uma concepção universalista e vagamente etnocêntrica". O principal interesse das teses de Teixeira Lopes não deriva apenas da passagem de um espaço neutro para um espaço intensivo, mas também da passagem de um sujeito abstracto para "uma subjectividade corporalmente encarnada". Só as subjectividades corporalmente encarnadas estão em condições de estruturar lógicas de mudança social.

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