Editorial -O silêncio e as palavras

30-11-2003
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O silêncio e as palavras

A s revelações de João Cravinho sobre as causas que levaram ao seu afastamento da pasta das Obras Públicas constituíram, como não podia deixar de ser, a grande notícia do passado fim de semana. Não era caso para menos e até o seria, certamente, para mais. Com efeito, o ex-ministro produziu declarações bombásticas que, a corresponderem à verdade – e nada leva a pensar que não correspondam, bem pelo contrário – deveriam ser devidamente clarificadas. Senão vejamos: afirmou João Cravinho que, enquanto ministro, foi «derrotado» por «"lobbies" e grupos de interesses poderosíssimos», na sequência de um combate que travou contra os ditos "lobbies", cujos estão, segundo a informação prestada, sólidamente «instalados na sociedade portuguesa». «E porquê esta derrota?» - pergunta, a dada altura, o derrotado, respondendo triunfante: porque «não governei para os interesses, como é claro». Mais: garante-nos o ex-ministro de António Guterres que, travando tal combate, evitou que «todos os anos» qualquer coisa como «30, 40 milhões de contos» fossem, «digamos assim, para os bolsos de quem não deveriam ir». Ora, concluiu João Cravinho num tom algo fatalista, «quando se fazem coisas destas, é evidente que se paga». E pagou: foi, evidentemente, demitido do cargo e substituído pelo seu colega Jorge Coelho.

Deixando para outra altura as observações que o transparente relato de João Cravinho merece no que respeita ao estado de saúde da democracia em que vivemos – e assinalando apenas a persistência de um pesado silêncio em torno do que ocorreu na JAE com os governos do PSD e do PS - fixemo-nos, por agora, no facto de estarmos perante um conjunto de revelações de enormíssima gravidade e que exigem urgente e total clarificação.

N a verdade, João Cravinho, falando como falou, agitou águas, revolveu lodos e lamas, destapou chagas porventura destinadas à mais cerrada privacidade, enfim foi longe na denúncia do que era mister denunciar. Louvem-se-lhe, por isso, as palavras. Só que, como é sabido, as palavras, depois de ditas... estão ditas, passando a ocupar inexoravelmente um espaço que antes pertencia ao silêncio... e gerando exigências que, honestamente, não é possível ignorar. Assim, indo até onde foi, o ex-ministro obrigou-se a ir mais longe, a ir até ao fim. Porque o que disse suscita a qualquer cidadão minimamente atento uma série infindável de questões que não podem ficar sem resposta. Com efeito, não é possível dizer-se que existem "lobbies" todo-poderosos habituados a, «digamos assim», arrecadar todos os anos 30 a 40 milhões de contos à custa do erário público e da cumplicidade do Governo – e não dizer o que são, quem os apoia e quem compõe esses "lobbies"; não é possível dizer-se que um membro do Governo – no caso concreto um Ministro – trava durante vários anos uma guerra, infelizmente surda, contra esses "lobbies" impedindo-os de, «digamos assim», meterem ao bolso os tais milhões – e não dizer mais nada; não é possível dizer-se que a vitória alcançada sobre os referidos "lobbies" (não lhes permitindo, «digamos assim», sacar os habituais milhões) teve como desfecho a demissão forçada do Ministro por imposição dos "lobbies" – e quedar-se na constatação da ocorrência; ou seja: não é possível fazer a denúncia pública de operações fraudulentas de semelhante dimensão e gravidade e ficar-se por aí, fugindo à enunciação dos protagonistas dessas operações – a montante e a jusante, bem entendido.

I mporta ainda sublinhar que as desassombradas revelações do ex-ministro João Cravinho nos incitam e desafiam, intencionalmente ou não, à busca de outras e mais complexas conclusões. De tal forma que, tendo o acima referido «cidadão minimamente atento» concluído o que vimos ter concluído, não poderá deixar de dar continuidade à sua reflexão e perguntar-se, atónito: se os "lobbies" têm força suficiente para enfrentar e afastar um ministro que os impedia de, «digamos assim», se apropriarem indevidamente de dezenas de milhões de contos por ano, não a terão igualmente para o substituir por outro que lhes permita, «digamos assim», voltar a arrecadar os tais milhões? A pertinência da pergunta é obviamente incontestável e não legitima ninguém a atribuir-lhe quaisquer intenções sub-reptícias. Quanto à resposta, ninguém melhor do que o ex-ministro João Cravinho está em condições de a dar.

Seja como for, uma coisa parece não oferecer dúvidas: a política de direita praticada vários anos por sucessivos governos do PSD e continuada, no essencial, pelo PS, com o seu iniludível conteúdo de classe – e tendo como uma das suas vertentes básicas a defesa dos interesses dos grupos económicos que, «digamos assim», se movimentam à velocidade de dezenas de milhões de contos/ano – constitui uma permanente sementeira de situações semelhantes à que João Cravinho trouxe a público.

F ace a tudo isto, os posteriores «esclarecimentos» do ex-ministro sobre o que queria dizer quando disse o que disse, soam a arrependimento de circunstância. «Esclarecendo» que as suas declarações não se referiam a nada do que se referiram e que deveriam ser interpretadas no contexto das perguntas que os jornalistas lhe fizeram, João Cravinho deu o dito por não dito e transformou um acto de louvável coragem num penoso acto de contrição. É certo que o prestimoso líder do Grupo Parlamentar do PS deu um contributo precioso para a «clarificação» da situação ao lembrar que «a única pessoa em condição de interpretar as declarações é o próprio»... Mas os «esclarecimentos» do ex-ministro deixam-nos agora perante uma série de incógnitas: afinal há ou não há "lobbies" que «todos os anos», «digamos assim», metem nos bolsos «30, 40 milhões de contos»?; afinal houve ou não houve luta contra os ditos "lobbies", saldando-se a peleja pela derrota do ex-ministro João Cravinho, traduzida na sua saída do Governo?

Como acima se disse, as palavras, depois de ditas... estão ditas. Inexoravelmente. Pretender apagá-las e substituí-las pelo silêncio que as precedeu é um exercício inútil e com consequências para quem a ele recorre. Como disse – se é que disse... – o próprio João Cravinho, «quando se fazem coisas destas, é evidente que se paga».

Foi certamente pensando em situações como esta que, há cerca de dois mil e quatrocentos anos, Eurípedes – poeta trágico ateniense - advertiu: «se estás na posse de palavras mais fortes do que o silêncio, fala; senão, mantém-te calado».

«Avante!» Nº 1363 - 13.Janeiro.2000

O silêncio e as palavras

A s revelações de João Cravinho sobre as causas que levaram ao seu afastamento da pasta das Obras Públicas constituíram, como não podia deixar de ser, a grande notícia do passado fim de semana. Não era caso para menos e até o seria, certamente, para mais. Com efeito, o ex-ministro produziu declarações bombásticas que, a corresponderem à verdade – e nada leva a pensar que não correspondam, bem pelo contrário – deveriam ser devidamente clarificadas. Senão vejamos: afirmou João Cravinho que, enquanto ministro, foi «derrotado» por «"lobbies" e grupos de interesses poderosíssimos», na sequência de um combate que travou contra os ditos "lobbies", cujos estão, segundo a informação prestada, sólidamente «instalados na sociedade portuguesa». «E porquê esta derrota?» - pergunta, a dada altura, o derrotado, respondendo triunfante: porque «não governei para os interesses, como é claro». Mais: garante-nos o ex-ministro de António Guterres que, travando tal combate, evitou que «todos os anos» qualquer coisa como «30, 40 milhões de contos» fossem, «digamos assim, para os bolsos de quem não deveriam ir». Ora, concluiu João Cravinho num tom algo fatalista, «quando se fazem coisas destas, é evidente que se paga». E pagou: foi, evidentemente, demitido do cargo e substituído pelo seu colega Jorge Coelho.

Deixando para outra altura as observações que o transparente relato de João Cravinho merece no que respeita ao estado de saúde da democracia em que vivemos – e assinalando apenas a persistência de um pesado silêncio em torno do que ocorreu na JAE com os governos do PSD e do PS - fixemo-nos, por agora, no facto de estarmos perante um conjunto de revelações de enormíssima gravidade e que exigem urgente e total clarificação.

N a verdade, João Cravinho, falando como falou, agitou águas, revolveu lodos e lamas, destapou chagas porventura destinadas à mais cerrada privacidade, enfim foi longe na denúncia do que era mister denunciar. Louvem-se-lhe, por isso, as palavras. Só que, como é sabido, as palavras, depois de ditas... estão ditas, passando a ocupar inexoravelmente um espaço que antes pertencia ao silêncio... e gerando exigências que, honestamente, não é possível ignorar. Assim, indo até onde foi, o ex-ministro obrigou-se a ir mais longe, a ir até ao fim. Porque o que disse suscita a qualquer cidadão minimamente atento uma série infindável de questões que não podem ficar sem resposta. Com efeito, não é possível dizer-se que existem "lobbies" todo-poderosos habituados a, «digamos assim», arrecadar todos os anos 30 a 40 milhões de contos à custa do erário público e da cumplicidade do Governo – e não dizer o que são, quem os apoia e quem compõe esses "lobbies"; não é possível dizer-se que um membro do Governo – no caso concreto um Ministro – trava durante vários anos uma guerra, infelizmente surda, contra esses "lobbies" impedindo-os de, «digamos assim», meterem ao bolso os tais milhões – e não dizer mais nada; não é possível dizer-se que a vitória alcançada sobre os referidos "lobbies" (não lhes permitindo, «digamos assim», sacar os habituais milhões) teve como desfecho a demissão forçada do Ministro por imposição dos "lobbies" – e quedar-se na constatação da ocorrência; ou seja: não é possível fazer a denúncia pública de operações fraudulentas de semelhante dimensão e gravidade e ficar-se por aí, fugindo à enunciação dos protagonistas dessas operações – a montante e a jusante, bem entendido.

I mporta ainda sublinhar que as desassombradas revelações do ex-ministro João Cravinho nos incitam e desafiam, intencionalmente ou não, à busca de outras e mais complexas conclusões. De tal forma que, tendo o acima referido «cidadão minimamente atento» concluído o que vimos ter concluído, não poderá deixar de dar continuidade à sua reflexão e perguntar-se, atónito: se os "lobbies" têm força suficiente para enfrentar e afastar um ministro que os impedia de, «digamos assim», se apropriarem indevidamente de dezenas de milhões de contos por ano, não a terão igualmente para o substituir por outro que lhes permita, «digamos assim», voltar a arrecadar os tais milhões? A pertinência da pergunta é obviamente incontestável e não legitima ninguém a atribuir-lhe quaisquer intenções sub-reptícias. Quanto à resposta, ninguém melhor do que o ex-ministro João Cravinho está em condições de a dar.

Seja como for, uma coisa parece não oferecer dúvidas: a política de direita praticada vários anos por sucessivos governos do PSD e continuada, no essencial, pelo PS, com o seu iniludível conteúdo de classe – e tendo como uma das suas vertentes básicas a defesa dos interesses dos grupos económicos que, «digamos assim», se movimentam à velocidade de dezenas de milhões de contos/ano – constitui uma permanente sementeira de situações semelhantes à que João Cravinho trouxe a público.

F ace a tudo isto, os posteriores «esclarecimentos» do ex-ministro sobre o que queria dizer quando disse o que disse, soam a arrependimento de circunstância. «Esclarecendo» que as suas declarações não se referiam a nada do que se referiram e que deveriam ser interpretadas no contexto das perguntas que os jornalistas lhe fizeram, João Cravinho deu o dito por não dito e transformou um acto de louvável coragem num penoso acto de contrição. É certo que o prestimoso líder do Grupo Parlamentar do PS deu um contributo precioso para a «clarificação» da situação ao lembrar que «a única pessoa em condição de interpretar as declarações é o próprio»... Mas os «esclarecimentos» do ex-ministro deixam-nos agora perante uma série de incógnitas: afinal há ou não há "lobbies" que «todos os anos», «digamos assim», metem nos bolsos «30, 40 milhões de contos»?; afinal houve ou não houve luta contra os ditos "lobbies", saldando-se a peleja pela derrota do ex-ministro João Cravinho, traduzida na sua saída do Governo?

Como acima se disse, as palavras, depois de ditas... estão ditas. Inexoravelmente. Pretender apagá-las e substituí-las pelo silêncio que as precedeu é um exercício inútil e com consequências para quem a ele recorre. Como disse – se é que disse... – o próprio João Cravinho, «quando se fazem coisas destas, é evidente que se paga».

Foi certamente pensando em situações como esta que, há cerca de dois mil e quatrocentos anos, Eurípedes – poeta trágico ateniense - advertiu: «se estás na posse de palavras mais fortes do que o silêncio, fala; senão, mantém-te calado».

«Avante!» Nº 1363 - 13.Janeiro.2000

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