EXPRESSO: Opinião

29-11-2002
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«Ecstasy», jovens e saúde: todos os cuidados são poucos

Manuel Pinto Coelho* e Joana Amaral Dias**

NUNCA experimentei «ecstasy», nunca experimentei cocaína, nunca experimentei heroína.

Não penso que haja algo de eticamente errado no uso de drogas, mas a razão por que me tenho mantido afastado delas é que dou demasiado valor ao meu cérebro. Não quero confiar os meus neurónios a um estranho qualquer que encontre aí à noite, num sítio qualquer. Tenho muita esperança de continuar a conseguir usar a minha cabeça durante o resto da vida.

QUEM fala assim é o famoso DJ e compositor Moby, autor do afamado álbum «Play» (só na Europa vendeu dois milhões de cópias) conhecido em todo o lado por todos os que não falham uma «rave party».

Ao contrário da «vox populi» que apregoa ser o «ecstasy» uma substância inofensiva e inócua, somos obrigados pela nossa condição de técnicos e de cidadãos a contrariar esta tese pela apresentação de alguns factos incontornáveis.

O «ecstasy» - ou MDMA (metilenodioximetanfetamina) - é uma anfetamina com propriedades alucinogénicas sintetizada pelos Laboratórios Merck em 1912 e vendida sob a forma de comprimidos, muitas vezes adulterados por substâncias que vão da estricnina, ou aspirina, ou cafeína ou lactose, ao LSD, ao DXM e ao PMA, a anfetaminas e a sedativos vários.

O MDMA age essencialmente sobre os neurónios que contêm serotonina - neuromediador implicado, entre outros, na regulação dos afectos e do humor.

Os estados depressivos, que aparecem cerca de 24 horas depois e que se podem prolongar por cerca de oito horas (tudo o que sobe deve descer...) podem, nos indivíduos fragilizados ou mais sensíveis, ser mais graves e durar várias semanas, convidando-os a consumir outros psicotrópicos como «cannabis», antidepressivos e ansiolíticos como a heroína.

Contrariamente a uma opinião muito divulgada, o «ecstasy» não é afrodisíaco. É por ser facilitador do convívio - a comunicação com o outro, devido a um apagamento das inibições, sai subjectivamente melhorada e daí a sua utilização numa perspectiva hedonista - que lhe chamam «a droga do amor».

De salientar que esta situação pode favorecer a prática de relações sexuais não protegidas.

É responsável por um período de estimulação eufórica que dura cerca de três a seis horas, em que se regista uma abolição da sensação de fadiga, além de alterações da memória.

O dia seguinte normalmente traz sonolência, dores musculares, dificuldade de concentração e humor disfórico.

Alguns referem ainda alterações do sono, que podem durar várias semanas, mesmo após uma tomada única.

O uso do «ecstasy» altera não só os desempenhos profissionais como os mais rotineiros, fruto da libertação exagerada de serotonina e da consequente destruição das células cerebrais.

As pessoas tomam-no normalmente durante as festas e «raves», em que dançam sem parar - não bebendo líquidos com a regularidade desejável, para compensar a quantidade de água perdida pela transpiração.

Um aumento mais ou menos significativo da tensão arterial, muitas vezes induzido por uma alteração importante da coagulação, pode traduzir-se em arritmia e mesmo paragem cardíaca, situações que resultarão então do sobreaquecimento do corpo.

A propósito da instalação (a título felizmente só experimental) de uma carrinha móvel destinada a testar comprimidos de «ecstasy» em Lisboa, deveremos dizer que nos parece hilariante e no mínimo caricato que se proíba a venda e a posse... e depois se disponibilize um serviço de verificação da qualidade dos mesmos!

De referir a propósito que o «testing» não indica quais as substâncias acrescentadas ao MDMA, além de que nunca é demais referir que o «ecstasy» em estado puro só por si é gravosamente tóxico para os neurónios (a serotonina).

Mas o que importa sobretudo enfatizar é que esta medida, incluída numa política de redução de riscos, só poderá dar aos utilizadores uma perversa ilusão de segurança: se se diz que é só MDMA, a ideia que passa é a de que... assim sendo não há perigo!

Dito de outro modo, será lógico então o receio de que o «testing» possa ser interpretado pelo consumidor - perigosamente - como securizante.

Como consequência de todos os dados factuais apresentados, somos forçados a deixar ainda algumas questões:

- Como é possível que exista a preocupação com o teste do «ecstasy» sem que «a priori» tenha sido fornecida ao consumidor informação sobre os riscos e os perigos do consumo propriamente dito? Não deveria constituir isso - informar - o primeiro passo de qualquer política de redução de riscos?

- Como se pretende dar informação sobre a qualidade da substância sem primeiro informar sobre os efeitos que pode ter?

- Contudo, e com muita pena nossa, esta nem sequer é uma questão exclusivamente relacionada com a prevenção do «ecstasy», mas antes uma falha básica que tem atravessado toda a prevenção das toxicodependências, onde recorrentemente se começa pelo final, isto é, pelo «não» («não consuma, não...») antes de expor de forma clara e objectiva - como aliás se observa por exemplo em qualquer maço de tabaco - os perigos, os efeitos e as consequências do consumo. E todos sabemos que ainda assim, em relação à heroína ou a qualquer outra substância, jamais foi pensado e muito menos operacionalizado um laboratório de teste. Parece-nos sensato, isso sim, que se fizessem análises a todos e quaisquer produtos apreendidos e que por norma fossem divulgados os resultados obtidos, mas nunca ao consumidor individual, que aparece com um comprimido na mão: se se disser que o produto que aparece no mercado está adulterado, isso terá efeito dissuasor muito maior.

*Médico, **Psicóloga clínica

«Ecstasy», jovens e saúde: todos os cuidados são poucos

Manuel Pinto Coelho* e Joana Amaral Dias**

NUNCA experimentei «ecstasy», nunca experimentei cocaína, nunca experimentei heroína.

Não penso que haja algo de eticamente errado no uso de drogas, mas a razão por que me tenho mantido afastado delas é que dou demasiado valor ao meu cérebro. Não quero confiar os meus neurónios a um estranho qualquer que encontre aí à noite, num sítio qualquer. Tenho muita esperança de continuar a conseguir usar a minha cabeça durante o resto da vida.

QUEM fala assim é o famoso DJ e compositor Moby, autor do afamado álbum «Play» (só na Europa vendeu dois milhões de cópias) conhecido em todo o lado por todos os que não falham uma «rave party».

Ao contrário da «vox populi» que apregoa ser o «ecstasy» uma substância inofensiva e inócua, somos obrigados pela nossa condição de técnicos e de cidadãos a contrariar esta tese pela apresentação de alguns factos incontornáveis.

O «ecstasy» - ou MDMA (metilenodioximetanfetamina) - é uma anfetamina com propriedades alucinogénicas sintetizada pelos Laboratórios Merck em 1912 e vendida sob a forma de comprimidos, muitas vezes adulterados por substâncias que vão da estricnina, ou aspirina, ou cafeína ou lactose, ao LSD, ao DXM e ao PMA, a anfetaminas e a sedativos vários.

O MDMA age essencialmente sobre os neurónios que contêm serotonina - neuromediador implicado, entre outros, na regulação dos afectos e do humor.

Os estados depressivos, que aparecem cerca de 24 horas depois e que se podem prolongar por cerca de oito horas (tudo o que sobe deve descer...) podem, nos indivíduos fragilizados ou mais sensíveis, ser mais graves e durar várias semanas, convidando-os a consumir outros psicotrópicos como «cannabis», antidepressivos e ansiolíticos como a heroína.

Contrariamente a uma opinião muito divulgada, o «ecstasy» não é afrodisíaco. É por ser facilitador do convívio - a comunicação com o outro, devido a um apagamento das inibições, sai subjectivamente melhorada e daí a sua utilização numa perspectiva hedonista - que lhe chamam «a droga do amor».

De salientar que esta situação pode favorecer a prática de relações sexuais não protegidas.

É responsável por um período de estimulação eufórica que dura cerca de três a seis horas, em que se regista uma abolição da sensação de fadiga, além de alterações da memória.

O dia seguinte normalmente traz sonolência, dores musculares, dificuldade de concentração e humor disfórico.

Alguns referem ainda alterações do sono, que podem durar várias semanas, mesmo após uma tomada única.

O uso do «ecstasy» altera não só os desempenhos profissionais como os mais rotineiros, fruto da libertação exagerada de serotonina e da consequente destruição das células cerebrais.

As pessoas tomam-no normalmente durante as festas e «raves», em que dançam sem parar - não bebendo líquidos com a regularidade desejável, para compensar a quantidade de água perdida pela transpiração.

Um aumento mais ou menos significativo da tensão arterial, muitas vezes induzido por uma alteração importante da coagulação, pode traduzir-se em arritmia e mesmo paragem cardíaca, situações que resultarão então do sobreaquecimento do corpo.

A propósito da instalação (a título felizmente só experimental) de uma carrinha móvel destinada a testar comprimidos de «ecstasy» em Lisboa, deveremos dizer que nos parece hilariante e no mínimo caricato que se proíba a venda e a posse... e depois se disponibilize um serviço de verificação da qualidade dos mesmos!

De referir a propósito que o «testing» não indica quais as substâncias acrescentadas ao MDMA, além de que nunca é demais referir que o «ecstasy» em estado puro só por si é gravosamente tóxico para os neurónios (a serotonina).

Mas o que importa sobretudo enfatizar é que esta medida, incluída numa política de redução de riscos, só poderá dar aos utilizadores uma perversa ilusão de segurança: se se diz que é só MDMA, a ideia que passa é a de que... assim sendo não há perigo!

Dito de outro modo, será lógico então o receio de que o «testing» possa ser interpretado pelo consumidor - perigosamente - como securizante.

Como consequência de todos os dados factuais apresentados, somos forçados a deixar ainda algumas questões:

- Como é possível que exista a preocupação com o teste do «ecstasy» sem que «a priori» tenha sido fornecida ao consumidor informação sobre os riscos e os perigos do consumo propriamente dito? Não deveria constituir isso - informar - o primeiro passo de qualquer política de redução de riscos?

- Como se pretende dar informação sobre a qualidade da substância sem primeiro informar sobre os efeitos que pode ter?

- Contudo, e com muita pena nossa, esta nem sequer é uma questão exclusivamente relacionada com a prevenção do «ecstasy», mas antes uma falha básica que tem atravessado toda a prevenção das toxicodependências, onde recorrentemente se começa pelo final, isto é, pelo «não» («não consuma, não...») antes de expor de forma clara e objectiva - como aliás se observa por exemplo em qualquer maço de tabaco - os perigos, os efeitos e as consequências do consumo. E todos sabemos que ainda assim, em relação à heroína ou a qualquer outra substância, jamais foi pensado e muito menos operacionalizado um laboratório de teste. Parece-nos sensato, isso sim, que se fizessem análises a todos e quaisquer produtos apreendidos e que por norma fossem divulgados os resultados obtidos, mas nunca ao consumidor individual, que aparece com um comprimido na mão: se se disser que o produto que aparece no mercado está adulterado, isso terá efeito dissuasor muito maior.

*Médico, **Psicóloga clínica

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