poesia_e_prosa: Vítor Oliveira Jorge

24-08-2004
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para o l.f c. lares, em bruxelas ouvindo a sonata para violoncelo e baixo contínuo em Si bemol maior n° 6 de Vivaldi na tua rua deve anoitecer cedo, sobretudo de inverno, enquanto dedilhas bach naquele piano com auscultadores. recordo-te agora tocando essa música para dentro, como se fosse um símbolo de toda uma vida, em que viraste o rosto da amizade para uma sombra insondável. também aqui, bem mais para sul, os dias amanhecem por vezes já doentes, com os passeios desertos, um gato esgueirando-se da sua fugaz imagem, e o frio impossibilitando os rostos de se definirem. uma névoa branca interpõe-se na retina, como se um cortinado pesado descesse sobre a distância entre as nossas duas cidades, os nossos dois exílios. se tentássemos dizer o quanto lamentamos esta situação, só nos viria à boca cuspo com travo a sangue, saliva espessa como iogurte. e que sentido teria reencontrarmo-nos, falarmos dos livros e discos que nos ajudam a passar o inverno? contarmos a expressão surprendente do gato que um dia assomou do lado de lá do vidro edepois se perdeu de novo no frio, cujos meandros só ele conhece? Lamentarmos o como as ruas estão desertas, como os músculos nos doem, como sentimos a ausência e o musgo que cobriu as nossas vidas planas? rirmos um pouco com o álcool que por momentos parece diluir esta espessura de granito que a nossa alma com o tempo ganhou? comovermo-nos com a morte dos nossos pais, esses mesmos que nunca pressentiram quem nós éramos, e de quem cedo começámos a afastar-nos? a verdade é esta: devo-te muitas coisas. e uma delas foi quando naquele dia me acompanhaste à missa, e ao ouvires a homilia te desataste a rir, e eu também, e tivemos de sair, para nunca mais voltar. já pressentíamos, claro, a solidão que por vezes galga as ruas como uma torrente inesperada. cada um de nós já tinha percorrido algumas voltas da sua espiral interior, até ao momento inevitável em que a meio de um percurso se pára sentindo o crânio implodir. e tu contaste como um dia fechaste a mão sobre os óculos, até os pedaços dos aros, até os fragmentos dos vidros te penetrarem fundo dentro do punho fechado. mas sabes bem como a arte se faz disto, de sofrimento, que é preciso passar por esta tortura para ultrapassar as sensações que embotam o essencial, seja qual ele for para cada um de nós! lembras-te de quando pintávamos paredes com uma tinta que só se via à luz do dia, e como tirávamos as manchas da pele com pedra-pomes até fazer sangue, para não sermos denunciados? e agora aqui estamos cada um em sua cidade, tipos de meia idade, e cidadãos respeitáveis. mas é possível, mesmo provável, que em certos momentos (como sabermos que eles coincidem a tão grande distância?) nos acerquemos de uma janela, para olhar a rua. e cada um de nós veja exactamente as mesmas cortinas fechadas dos exactamente iguais prédios situados mesmo em frente, todos devida e ordeiramente alinhados. e talvez seja o mesmo o gato que, à míngua de gente, atravesse a nossa comum retina. para num salto elástico desaparecer por detrás de um muro branco, onde já o não alcançam as palavras do texto. Vítor Oliveira Jorge A Suspensão do Mundo Prefácio de Isabel Pires de Lima editora ausência 2003

para o l.f c. lares, em bruxelas ouvindo a sonata para violoncelo e baixo contínuo em Si bemol maior n° 6 de Vivaldi na tua rua deve anoitecer cedo, sobretudo de inverno, enquanto dedilhas bach naquele piano com auscultadores. recordo-te agora tocando essa música para dentro, como se fosse um símbolo de toda uma vida, em que viraste o rosto da amizade para uma sombra insondável. também aqui, bem mais para sul, os dias amanhecem por vezes já doentes, com os passeios desertos, um gato esgueirando-se da sua fugaz imagem, e o frio impossibilitando os rostos de se definirem. uma névoa branca interpõe-se na retina, como se um cortinado pesado descesse sobre a distância entre as nossas duas cidades, os nossos dois exílios. se tentássemos dizer o quanto lamentamos esta situação, só nos viria à boca cuspo com travo a sangue, saliva espessa como iogurte. e que sentido teria reencontrarmo-nos, falarmos dos livros e discos que nos ajudam a passar o inverno? contarmos a expressão surprendente do gato que um dia assomou do lado de lá do vidro edepois se perdeu de novo no frio, cujos meandros só ele conhece? Lamentarmos o como as ruas estão desertas, como os músculos nos doem, como sentimos a ausência e o musgo que cobriu as nossas vidas planas? rirmos um pouco com o álcool que por momentos parece diluir esta espessura de granito que a nossa alma com o tempo ganhou? comovermo-nos com a morte dos nossos pais, esses mesmos que nunca pressentiram quem nós éramos, e de quem cedo começámos a afastar-nos? a verdade é esta: devo-te muitas coisas. e uma delas foi quando naquele dia me acompanhaste à missa, e ao ouvires a homilia te desataste a rir, e eu também, e tivemos de sair, para nunca mais voltar. já pressentíamos, claro, a solidão que por vezes galga as ruas como uma torrente inesperada. cada um de nós já tinha percorrido algumas voltas da sua espiral interior, até ao momento inevitável em que a meio de um percurso se pára sentindo o crânio implodir. e tu contaste como um dia fechaste a mão sobre os óculos, até os pedaços dos aros, até os fragmentos dos vidros te penetrarem fundo dentro do punho fechado. mas sabes bem como a arte se faz disto, de sofrimento, que é preciso passar por esta tortura para ultrapassar as sensações que embotam o essencial, seja qual ele for para cada um de nós! lembras-te de quando pintávamos paredes com uma tinta que só se via à luz do dia, e como tirávamos as manchas da pele com pedra-pomes até fazer sangue, para não sermos denunciados? e agora aqui estamos cada um em sua cidade, tipos de meia idade, e cidadãos respeitáveis. mas é possível, mesmo provável, que em certos momentos (como sabermos que eles coincidem a tão grande distância?) nos acerquemos de uma janela, para olhar a rua. e cada um de nós veja exactamente as mesmas cortinas fechadas dos exactamente iguais prédios situados mesmo em frente, todos devida e ordeiramente alinhados. e talvez seja o mesmo o gato que, à míngua de gente, atravesse a nossa comum retina. para num salto elástico desaparecer por detrás de um muro branco, onde já o não alcançam as palavras do texto. Vítor Oliveira Jorge A Suspensão do Mundo Prefácio de Isabel Pires de Lima editora ausência 2003

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