Augusto Abelaira (1926-2003)

10-07-2003
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Augusto Abelaira (1926-2003)

Por LUÍS MIGUEL QUEIRÓS

Domingo, 06 de Julho de 2003 Um homem sem tecto, entre ruínas Morreu anteontem em Lisboa, aos 77 anos, o romancista Augusto Abelaira, um dos principais responsáveis pela renovação da ficção portuguesa na segunda metade do século XX. O funeral do escritor parte hoje de Lisboa, pelas 10h30, para a sua terra natal, Ançã, em Cantanhede. Apesar do consensual apreço da crítica, e de alguns dos seus títulos terem sido várias vezes reeditados, Abelaira nunca foi um autor de "best-sellers", mesmo à escala nacional, porque, como afirmou ao PÚBLICO a ensaísta Isabel Pires de Lima, "não pactuou com a facilidade, e isso valeu-lhe a pouca popularidade". Nascido em Ançã, em 1926, licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas, exerceu durante algum tempo a docência e dedicou-se depois ao jornalismo. Foi director de programas da RTP, dirigiu as revistas "Seara Nova" e "Vida Mundial" e, durante largos anos, assinou colunas em "O Jornal" ("Escrever na Água") e "Jornal de Letras" ("Ao Pé das Letras"). Tinha 33 anos quando publicou, em edição de autor, o seu primeiro romance, "A Cidade das Flores" (1959), onde, por interposta Florença dos anos 30, descreve a geração de jovens intelectuais lisboetas dos anos 50. Reconhecendo que este livro de estreia foi "uma pedrada no charco", como o seria, poucos anos mais tarde, "As Boas Intenções" (1963), Pires de Lima defende que "não menos o foram, para quem está de olhos abertos e não cede a impérios de moda", algumas das obras que escreveu já na década de 90, como "Outrora Agora" (1996), que venceu o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores, ou "Deste Modo ou Daquele" (1990), que considera "um dos romances portugueses que melhor dá a ler a nossa condição contemporânea de homens descentrados, num mundo instável". O próprio "título disjuntivo" deste livro, nota a ensaísta, "anuncia o universo que o constitui, e que é o nosso, o da pós-modernidade", feito "de mundos inclusivos, de lógica aditiva, de existências paralelas de modo de ser, onde se institui o império da dúvida e da interrogação". Uma interrogação que, em Augusto Abelaira, diz Pires de Lima, "se estende ao próprio pensar a História de Portugal, que obsessivamente atravessa os seus romances e crónicas". A convicção de que o escritor pagou o preço, ou, noutro sentido, terá ganho a recompensa, de ser um autor "difícil", sugerem-na também os ensaístas António Apolinário Lourenço e Osvaldo Manuel Silvestre - que o entrevistaram para o desaparecido "site" "Ciberkiosk" -, ao assumirem a opinião de que Abelaira é "mais um romancista de culto do que um romancista popular". Pedida a pretexto de um inquérito a críticos e escritores sobre os romances "Bolor" e "O Delfim", de Cardoso Pires, ambos de 1968, a entrevista abre com uma breve introdução dos entrevistadores, na qual se defende que "a obra de Abelaira ocupa um lugar à parte no panorama da ficção portuguesa", que seria "o lugar talvez reservado àqueles que encaram o romance como um dispositivo 'de pensamento'", ou seja, "como um dispositivo que nos dá a pensar aquilo que só por intermédio do romance se pode pensar". Já nos primeiros livros de Abelaira, Lourenço e Silvestre vêem uma ruptura com "a ruralidade da matriz cultural neo-realista", que, nesse sentido, abrirá caminho a obras como "Rumor Branco" (1961), de Almeida Faria, ou "Os Passos em Volta" (1963), de Herberto Helder. Para Isabel Pires de Lima, o escritor seria ainda hoje "pouco reconhecido naquilo que marca a excepcionalidade da sua obra: uma mestria da ironia e do mistério raríssima, a sondagem incansável da vivência subjectiva do tempo e dos modos de o plasmar na narrativa, uma constante aposta na inovação das estruturas narrativas desvelando o carácter lúdico e construído do texto". Recorrendo ao título de um dos seus livros, a ensaísta crê que Abelaira foi, de facto, "um homem que viveu e morreu à espera, 'sem tecto entre ruínas'", e cita o trecho de Raul Brandão que serve de epígrafe a esse romance de 1978, o primeiro que escreveu após o 25 de Abril de 1974 e que, contra as expectativas dos que aguardavam o romance da revolução, situou nos anos do marcelismo: "A nossa época é horrível porque já não cremos - e não cremos ainda. O passado desapareceu, do futuro nem alicerces existem. E aqui estamos nós, sem tecto, entre ruínas, à espera..." O próprio romancista, na citada entrevista ao Ciberkiosk, interrogado sobre as aparentes contradições entre a sua obra e o programa neo-realista, define-se como "talvez excessivamente subjectivista e um tanto céptico", assume "o vício lúdico de descrer daquilo em que creio" e, numa tirada irónica, garante que as suas personagens "dizem o que sentem ou pensam e nem sequer estão obrigadas a ser progressistas". Além dos romances já referidos e de algumas peças de teatro, Abelaira publicou "Os Desertores" (1960), "Enseada Amena" (1966), "Quatro Paredes Nuas" (1972), "O Triunfo da Morte" (1981), "O Bosque Harmonioso" (1982) e "O Único Animal Que?" (1985). A propósito destas três obras dos anos 80, escrevem Silvestre e Lourenço: "A revisitação da nossa literatura das Descobertas, o mais desbragado fantástico, a celebração irónica da irrisão do humano, tudo isso se concretiza numa trilogia que é talvez a sua obra maior". No próximo número do suplemento Mil Folhas, o PÚBLICO divulgará uma entrevista ainda inédita de Augusto Abelaira, concedida a Jussara Rowland. OUTROS TÍTULOS EM CULTURA Augusto Abelaira (1926-2003)

Barry White (1944-2003)

A América olha para como o mundo olha para a América

Endurece o braço-de-ferro entre artistas e governo francês

Subtilezas narrativas no Festival de Vila do Conde

Ficção portuguesa no fim da Competição Nacional

Agostinho Branquinho e Óscar Liberal na administração da Casa da Música

CRÍTICA DE MÚSICA

O animal do rock está domesticado, mas continua em forma

Augusto Abelaira (1926-2003)

Por LUÍS MIGUEL QUEIRÓS

Domingo, 06 de Julho de 2003 Um homem sem tecto, entre ruínas Morreu anteontem em Lisboa, aos 77 anos, o romancista Augusto Abelaira, um dos principais responsáveis pela renovação da ficção portuguesa na segunda metade do século XX. O funeral do escritor parte hoje de Lisboa, pelas 10h30, para a sua terra natal, Ançã, em Cantanhede. Apesar do consensual apreço da crítica, e de alguns dos seus títulos terem sido várias vezes reeditados, Abelaira nunca foi um autor de "best-sellers", mesmo à escala nacional, porque, como afirmou ao PÚBLICO a ensaísta Isabel Pires de Lima, "não pactuou com a facilidade, e isso valeu-lhe a pouca popularidade". Nascido em Ançã, em 1926, licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas, exerceu durante algum tempo a docência e dedicou-se depois ao jornalismo. Foi director de programas da RTP, dirigiu as revistas "Seara Nova" e "Vida Mundial" e, durante largos anos, assinou colunas em "O Jornal" ("Escrever na Água") e "Jornal de Letras" ("Ao Pé das Letras"). Tinha 33 anos quando publicou, em edição de autor, o seu primeiro romance, "A Cidade das Flores" (1959), onde, por interposta Florença dos anos 30, descreve a geração de jovens intelectuais lisboetas dos anos 50. Reconhecendo que este livro de estreia foi "uma pedrada no charco", como o seria, poucos anos mais tarde, "As Boas Intenções" (1963), Pires de Lima defende que "não menos o foram, para quem está de olhos abertos e não cede a impérios de moda", algumas das obras que escreveu já na década de 90, como "Outrora Agora" (1996), que venceu o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores, ou "Deste Modo ou Daquele" (1990), que considera "um dos romances portugueses que melhor dá a ler a nossa condição contemporânea de homens descentrados, num mundo instável". O próprio "título disjuntivo" deste livro, nota a ensaísta, "anuncia o universo que o constitui, e que é o nosso, o da pós-modernidade", feito "de mundos inclusivos, de lógica aditiva, de existências paralelas de modo de ser, onde se institui o império da dúvida e da interrogação". Uma interrogação que, em Augusto Abelaira, diz Pires de Lima, "se estende ao próprio pensar a História de Portugal, que obsessivamente atravessa os seus romances e crónicas". A convicção de que o escritor pagou o preço, ou, noutro sentido, terá ganho a recompensa, de ser um autor "difícil", sugerem-na também os ensaístas António Apolinário Lourenço e Osvaldo Manuel Silvestre - que o entrevistaram para o desaparecido "site" "Ciberkiosk" -, ao assumirem a opinião de que Abelaira é "mais um romancista de culto do que um romancista popular". Pedida a pretexto de um inquérito a críticos e escritores sobre os romances "Bolor" e "O Delfim", de Cardoso Pires, ambos de 1968, a entrevista abre com uma breve introdução dos entrevistadores, na qual se defende que "a obra de Abelaira ocupa um lugar à parte no panorama da ficção portuguesa", que seria "o lugar talvez reservado àqueles que encaram o romance como um dispositivo 'de pensamento'", ou seja, "como um dispositivo que nos dá a pensar aquilo que só por intermédio do romance se pode pensar". Já nos primeiros livros de Abelaira, Lourenço e Silvestre vêem uma ruptura com "a ruralidade da matriz cultural neo-realista", que, nesse sentido, abrirá caminho a obras como "Rumor Branco" (1961), de Almeida Faria, ou "Os Passos em Volta" (1963), de Herberto Helder. Para Isabel Pires de Lima, o escritor seria ainda hoje "pouco reconhecido naquilo que marca a excepcionalidade da sua obra: uma mestria da ironia e do mistério raríssima, a sondagem incansável da vivência subjectiva do tempo e dos modos de o plasmar na narrativa, uma constante aposta na inovação das estruturas narrativas desvelando o carácter lúdico e construído do texto". Recorrendo ao título de um dos seus livros, a ensaísta crê que Abelaira foi, de facto, "um homem que viveu e morreu à espera, 'sem tecto entre ruínas'", e cita o trecho de Raul Brandão que serve de epígrafe a esse romance de 1978, o primeiro que escreveu após o 25 de Abril de 1974 e que, contra as expectativas dos que aguardavam o romance da revolução, situou nos anos do marcelismo: "A nossa época é horrível porque já não cremos - e não cremos ainda. O passado desapareceu, do futuro nem alicerces existem. E aqui estamos nós, sem tecto, entre ruínas, à espera..." O próprio romancista, na citada entrevista ao Ciberkiosk, interrogado sobre as aparentes contradições entre a sua obra e o programa neo-realista, define-se como "talvez excessivamente subjectivista e um tanto céptico", assume "o vício lúdico de descrer daquilo em que creio" e, numa tirada irónica, garante que as suas personagens "dizem o que sentem ou pensam e nem sequer estão obrigadas a ser progressistas". Além dos romances já referidos e de algumas peças de teatro, Abelaira publicou "Os Desertores" (1960), "Enseada Amena" (1966), "Quatro Paredes Nuas" (1972), "O Triunfo da Morte" (1981), "O Bosque Harmonioso" (1982) e "O Único Animal Que?" (1985). A propósito destas três obras dos anos 80, escrevem Silvestre e Lourenço: "A revisitação da nossa literatura das Descobertas, o mais desbragado fantástico, a celebração irónica da irrisão do humano, tudo isso se concretiza numa trilogia que é talvez a sua obra maior". No próximo número do suplemento Mil Folhas, o PÚBLICO divulgará uma entrevista ainda inédita de Augusto Abelaira, concedida a Jussara Rowland. OUTROS TÍTULOS EM CULTURA Augusto Abelaira (1926-2003)

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