Qual é o crime

24-11-2002
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Qual É o Crime

Sexta-feira, 15 de Novembro de 2002

%Carlos Câmara Leme

Um mexicano, Carlos Carrera, adaptou ao cinema "O Crime do Padre Amaro". A Leiria conservadora do século XIX é uma aldeia dos confins do México, em 2002. No livro, o clero português pactuava com o poder instituído; no filme, o mexicano liga-se aos narcotraficantes. Em Portugal, ainda antes de o ver houve quem clamasse pela sua interdição. Crime de lesa Eça? Nem tanto, como nos dizem dois queirosianos. "O filme não é o romance", acrescenta o realizador, em entrevista.

A 15 de Fevereiro de 1875, a "Revista Ocidental" começava a publicar "O Crime do Padre Amaro", um retrato impiedoso sobre as relações entre os poderes políticos e a Igreja, colocando o dedo numa ferida já antiga da instituição religiosa - o celibato. Tendo como pano de fundo Leiria, cidade de província conservadora, o livro contava a história de amor entre um jovem pároco, Amaro, e Amélia. Da relação nascia um rapaz que era assassinado. Amélia morria, Amaro zarpava de Leiria.

Setembro de 2002. O mexicano Carlos Carrera adapta a obra do escritor português. Situa-a numa aldeia do México. No filme, Amaro, com enorme vontade de mudar o mundo, é enviado pelo bispo para a igreja de Los Reyes, Aldama. Como em Leiria, encontra a devota, inocente e sensual Amélia.

Ainda antes de o filme ter chegado a Portugal, o presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, Luiz Francisco Rebello, defendia (em meados de Setembro) que o Governo português deveria recorrer aos tribunais para proibir a exibição do filme em Portugal. No México, a película suscitava aceso debate. Qual é o crime?

O filme não segue à risca a obra de Eça. Nem podia. Mas os contornos fundamentais estão lá: os poderes do clero mantêm-se, a pobreza de Leiria e de Los Reyes confundem-se, a questão do celibato continua por resolver. As realidades são, de qualquer forma, diferentes: se no México de hoje a Igreja pactua às claras com o universo do narcotráfico, o clero de Leiria pactuava com os poderes instituídos na caça aos votos. O argumentista manteve intactas as personagens de Eça - a mãe de Amélia, S. Joaneira, dona da casa onde Amaro se instala, o padre que vive com ela, Benito (o cónego Dias no romance), vários elementos do clero, Dionísia, uma prostituta roliça pau para toda a Leiria, a inválida Totó -, mas introduz um pároco, Dom Paco, defensor das causas da Teologia da Libertação, que denuncia as ligações perigosas entre a hierarquia católica e os traficantes de droga.

"Eça gostaria do filme de Carrera? Acho que sim!", afirma Isabel Pires de Lima, professora da Faculdade de Letras do Porto e deputada do PS. "O filme respeita o que é essencial no romance que resiste a ser transposto de uma cidade de província de Portugal do século XIX para uma aldeia nos confins do México em pleno século XXI."

Carlos Reis, professor da Faculdade de Letras de Coimbra e coordenador da Edição Crítica das Obras Completas de Eça, é cauteloso. Duvida que "do ponto de vista exigentemente artístico, Eça ficasse satisfeito". "Mas admito que, na sua humana vaidade, gostasse de saber que 'O Crime...' tivesse projecção no México."

a adaptação. O que é que se ganhou e perdeu? Carlos Reis pensa que "o filme está longe do que deve ser uma boa adaptação de um romance do século XIX, tal como se faz em Inglaterra, quer na BBC em televisão, quer em filmes baseados em romances." Puxar a história para actualidade não é crime, mas "obriga a desvios e a obrigações temáticas". Concretiza: "Colocar a história hoje, com o que é a Igreja no México e na América Latina, obriga a meter a Teologia da Libertação, a sua ligação com movimentos guerrilheiros ou antigovernamentais. Ora, isso não tem nada que ver com o universo queirosiano." Em última análise, não percebe "por que razão se pega no 'Crime do Padre Amaro' para se fazer um filme sobre a realidade do México em que se lida com o narcotráfico, o terrorismo e o poder da Igreja". Até porque, acrescenta, a história dos amores interditos entre Amaro e Amélia são, no filme, uma história lateral.

Esta última opinião é partilhada por Pires de Lima. "A minha hipótese é esta: como o realizador tinha um fascínio grande pelo romance e a história de amor se pode conjugar com as outras esferas da conflitualidade, cruzou uma coisa com a outra."

cenas capitais. Salientando que Carrera tem "uma certa ansiedade em querer tocar muitas teclas ao mesmo tempo", Pires de Lima pensa que o fundamental é dado.

Uma das cenas capitais é aquela em que Amaro cobre Amélia com um manto da Virgem - cena fortíssima no romance. "Se é verdade que [o realizador] tenta adensá-la com música sacra - que, aliás, utiliza muito bem para dar espessura dramática ao filme - acaba por ser muito ligeira. No romance tem uma carga sacrílega enorme, passa-se na sacristia, enquanto no filme, no quarto da casa do sacristão", sublinha.

Outra cena que ferirá as susceptibilidades dos mais puristas: uma perosnagem, Dionísia, dá a comer uma hóstia a um gato preto. Eça não a escreveu. Carlos Reis considera-a "absolutamente gratuita". "É uma concessão ao chocante, como é pôr miúdos a comer hóstias barradas com compota".

Já Isabel Pires de Lima considera-a "legítima dentro da verosimilhança interna do filme". Porque a Dionísia, tendo pontos de contacto com o romance, no filme é mais do que isso: "É uma corporização do mal, diabólica mas que simboliza também o desejo." Mais: segundo Pires de Lima, no filme ela corporiza, também, a supressão dos interditos.

Ao invés da professora do Porto, o docente de Coimbra acha que todos os elementos para adensar o dramatismo - a música sacra em contraponto com os santos quando Amélia, ajoelhada na igreja, começa a intuir a paixão que sente por Amaro - não deviam ser dados de forma tão clara. "Há uma concessão ao óbvio."

Amaro e Amélia. Amaro não será mais doce no filme em contraponto ao pároco maquiavélico de Eça, que chega a rezar para que Amélia e o filho morram?

Pires de Lima hesita. Maquiavélico não, calculista. "Tem uma dimensão mais terna do que no romance. Mas, por outro lado, é tanto carrasco como vítima." Carlos Reis, que com a professora universitária Maria do Rosário Cunha fixou "O Crime..." na sua edição crítica, coloca a questão noutros termos: "Aquele Amaro", diz, "corresponde mais ao da primeira versão- jovem padre inocente. O da terceira [a obra teve três versões] tem um cinismo e um calculismo que o filme não dá." Por exemplo, no final do romance, quando Amaro se encontra em Lisboa com o cónego Dias, confessa(-se): "- Já lá vai tempo, padre-mestre, disse o pároco rindo, já as não confesso senão casadas."

E Amélia? "Tem ali algo da Lolita de Nabokov, sem a perversidade da Lolita", afirma, por entre um sorriso, Carlos Reis. A queirosiana acha que de Amélia emana sensualidade; dele nem por isso.

Lendo o filme como uma obra de iniciação, Isabel Pires de Lima daria outro título: "Os Crimes do Padre Amaro". Não só porque tinha a vantagem de se demarcar do livro, mas também "porque um dos crimes que Amaro comete, além da relação com Amélia, é quando participa a excomunhão a Natalio". Vai mais longe: "Uma das qualidades do filme é ter conseguido revisitar os filões fundamentais do romance - paixão, a força do desejo, e o desespero do encarceramento do desejo."

Já Carlos Reis sugere outra vertente que, afirma, não passa tanto pelo encarceramento do desejo. "E quem a não vê está distraído do significado de certos aspectos da vida religiosa. É a forma como se acentua o papel do confessionário", sublinha. "O confessionário tem sempre permitido, e continua a permitir, uma relação de poder entre o padre a crente." No século XIX e na sequência do Concílio Vaticano I, foi questão debatida. De resto, no romance o tema vem à baila e Eça rosna: "Pela confissão é que se conseguem votos." Para Carlos Reis "este é que é o aspecto central: o poder dos padres junto das mulheres no confessionário".

"Aquela rede estabelece uma fronteira entre o deixa ver e não deixa ver, deixa passar ou não deixa passar, ou seja, é a questão do erotismo", defende Carlos Reis.

reacções do clero. Em 1880, "O Crime..." não provocou alarido. E hoje? "Não creio que o clero vá reagir, tem mais com que se preocupar", avalia Carlos Reis. "Se for inteligente não cairá na esparrela em que caiu o clero mexicano." Para Isabel Pires de Lima, não deixa de ser surpreendente que o filme origine reacção tão canhestra. "Na verdade, o clero não é tão mal-tratado. O próprio padre Benito, que tem as ligações com o narcotráfico, consegue construir um hospital comunal através dessas esmolas."

De novo, Carlos Reis : não conhecendo a realidade mexicana, chama a atenção para códigos de valores que são diferentes. "Há alguma igreja na América Latina que, partilhando as teses da Teologia da Libertação, pode ver neste filme aspectos positivos. O que não creio é que na Europa, e em Portugal, faça sentido." Para o professor da Faculdade de Letras de Coimbra as reacções dos sectores mais conservadores da igreja mexicana só podem ser compreendidos à luz de um país que "ainda deve ter uma componente feudal muito forte, onde um mesmo partido governa há décadas, e em que há bolsas de guerrilha, como a dos Chiapas".

visões de Paula Rego. Antes de Carrera ter adaptado "O Crime...", Paula Rego escandalizou as almas quando, em 1997, apresentou em Inglaterra a sua leitura do "Crime". Agustina, quando revisitou a obra da artista em 2001, "As Meninas", escreveu: "Não estará completada uma biografia de Eça de Queirós sem um olhar detalhado a 'O Crime do Padre Amaro' de Paula Rego."

Embora sejam linguagens diferentes, quer Rego, quer Carrera lêem também o mundo contemporâneo. Se no caso da pintora é hipervalorizada a meditação sobre a identidade feminina, para Isabel Pires de Lima, que escreveu o ensaio "Ecce Femina, Das Paixões, das Mulheres" (Campo das Letras, 2001) a partir da série de Paula Rego, ambos utilizam o romance "para meditarem sobre o destino pátrio: no caso de Rego, o Portugal pós-imperial, no de Carrera a violência de uma sociedade onde os contrastes sociais são grandes".

A realidade que pode interligar as duas adaptações é a violência. Defende Pires de Lima: Paula Rego retrata a violência da paixão e do encarceramento do desejo; Carrera é a violência social do México - que o "aproxima de uma vertente expressionista, que na América Latina ganha contornos maiores. O filme é muito violento, e faz lembrar o quadro de Munch, 'O Grito'." No caso de Paula Rego, Pires de Lima escolheria "Mãe" e "A Cela".

Tudo isto para dizer que, afinal de contas, Carrera não cometeu nenhum crime (de lesa Eça).

Qual É o Crime

Sexta-feira, 15 de Novembro de 2002

%Carlos Câmara Leme

Um mexicano, Carlos Carrera, adaptou ao cinema "O Crime do Padre Amaro". A Leiria conservadora do século XIX é uma aldeia dos confins do México, em 2002. No livro, o clero português pactuava com o poder instituído; no filme, o mexicano liga-se aos narcotraficantes. Em Portugal, ainda antes de o ver houve quem clamasse pela sua interdição. Crime de lesa Eça? Nem tanto, como nos dizem dois queirosianos. "O filme não é o romance", acrescenta o realizador, em entrevista.

A 15 de Fevereiro de 1875, a "Revista Ocidental" começava a publicar "O Crime do Padre Amaro", um retrato impiedoso sobre as relações entre os poderes políticos e a Igreja, colocando o dedo numa ferida já antiga da instituição religiosa - o celibato. Tendo como pano de fundo Leiria, cidade de província conservadora, o livro contava a história de amor entre um jovem pároco, Amaro, e Amélia. Da relação nascia um rapaz que era assassinado. Amélia morria, Amaro zarpava de Leiria.

Setembro de 2002. O mexicano Carlos Carrera adapta a obra do escritor português. Situa-a numa aldeia do México. No filme, Amaro, com enorme vontade de mudar o mundo, é enviado pelo bispo para a igreja de Los Reyes, Aldama. Como em Leiria, encontra a devota, inocente e sensual Amélia.

Ainda antes de o filme ter chegado a Portugal, o presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, Luiz Francisco Rebello, defendia (em meados de Setembro) que o Governo português deveria recorrer aos tribunais para proibir a exibição do filme em Portugal. No México, a película suscitava aceso debate. Qual é o crime?

O filme não segue à risca a obra de Eça. Nem podia. Mas os contornos fundamentais estão lá: os poderes do clero mantêm-se, a pobreza de Leiria e de Los Reyes confundem-se, a questão do celibato continua por resolver. As realidades são, de qualquer forma, diferentes: se no México de hoje a Igreja pactua às claras com o universo do narcotráfico, o clero de Leiria pactuava com os poderes instituídos na caça aos votos. O argumentista manteve intactas as personagens de Eça - a mãe de Amélia, S. Joaneira, dona da casa onde Amaro se instala, o padre que vive com ela, Benito (o cónego Dias no romance), vários elementos do clero, Dionísia, uma prostituta roliça pau para toda a Leiria, a inválida Totó -, mas introduz um pároco, Dom Paco, defensor das causas da Teologia da Libertação, que denuncia as ligações perigosas entre a hierarquia católica e os traficantes de droga.

"Eça gostaria do filme de Carrera? Acho que sim!", afirma Isabel Pires de Lima, professora da Faculdade de Letras do Porto e deputada do PS. "O filme respeita o que é essencial no romance que resiste a ser transposto de uma cidade de província de Portugal do século XIX para uma aldeia nos confins do México em pleno século XXI."

Carlos Reis, professor da Faculdade de Letras de Coimbra e coordenador da Edição Crítica das Obras Completas de Eça, é cauteloso. Duvida que "do ponto de vista exigentemente artístico, Eça ficasse satisfeito". "Mas admito que, na sua humana vaidade, gostasse de saber que 'O Crime...' tivesse projecção no México."

a adaptação. O que é que se ganhou e perdeu? Carlos Reis pensa que "o filme está longe do que deve ser uma boa adaptação de um romance do século XIX, tal como se faz em Inglaterra, quer na BBC em televisão, quer em filmes baseados em romances." Puxar a história para actualidade não é crime, mas "obriga a desvios e a obrigações temáticas". Concretiza: "Colocar a história hoje, com o que é a Igreja no México e na América Latina, obriga a meter a Teologia da Libertação, a sua ligação com movimentos guerrilheiros ou antigovernamentais. Ora, isso não tem nada que ver com o universo queirosiano." Em última análise, não percebe "por que razão se pega no 'Crime do Padre Amaro' para se fazer um filme sobre a realidade do México em que se lida com o narcotráfico, o terrorismo e o poder da Igreja". Até porque, acrescenta, a história dos amores interditos entre Amaro e Amélia são, no filme, uma história lateral.

Esta última opinião é partilhada por Pires de Lima. "A minha hipótese é esta: como o realizador tinha um fascínio grande pelo romance e a história de amor se pode conjugar com as outras esferas da conflitualidade, cruzou uma coisa com a outra."

cenas capitais. Salientando que Carrera tem "uma certa ansiedade em querer tocar muitas teclas ao mesmo tempo", Pires de Lima pensa que o fundamental é dado.

Uma das cenas capitais é aquela em que Amaro cobre Amélia com um manto da Virgem - cena fortíssima no romance. "Se é verdade que [o realizador] tenta adensá-la com música sacra - que, aliás, utiliza muito bem para dar espessura dramática ao filme - acaba por ser muito ligeira. No romance tem uma carga sacrílega enorme, passa-se na sacristia, enquanto no filme, no quarto da casa do sacristão", sublinha.

Outra cena que ferirá as susceptibilidades dos mais puristas: uma perosnagem, Dionísia, dá a comer uma hóstia a um gato preto. Eça não a escreveu. Carlos Reis considera-a "absolutamente gratuita". "É uma concessão ao chocante, como é pôr miúdos a comer hóstias barradas com compota".

Já Isabel Pires de Lima considera-a "legítima dentro da verosimilhança interna do filme". Porque a Dionísia, tendo pontos de contacto com o romance, no filme é mais do que isso: "É uma corporização do mal, diabólica mas que simboliza também o desejo." Mais: segundo Pires de Lima, no filme ela corporiza, também, a supressão dos interditos.

Ao invés da professora do Porto, o docente de Coimbra acha que todos os elementos para adensar o dramatismo - a música sacra em contraponto com os santos quando Amélia, ajoelhada na igreja, começa a intuir a paixão que sente por Amaro - não deviam ser dados de forma tão clara. "Há uma concessão ao óbvio."

Amaro e Amélia. Amaro não será mais doce no filme em contraponto ao pároco maquiavélico de Eça, que chega a rezar para que Amélia e o filho morram?

Pires de Lima hesita. Maquiavélico não, calculista. "Tem uma dimensão mais terna do que no romance. Mas, por outro lado, é tanto carrasco como vítima." Carlos Reis, que com a professora universitária Maria do Rosário Cunha fixou "O Crime..." na sua edição crítica, coloca a questão noutros termos: "Aquele Amaro", diz, "corresponde mais ao da primeira versão- jovem padre inocente. O da terceira [a obra teve três versões] tem um cinismo e um calculismo que o filme não dá." Por exemplo, no final do romance, quando Amaro se encontra em Lisboa com o cónego Dias, confessa(-se): "- Já lá vai tempo, padre-mestre, disse o pároco rindo, já as não confesso senão casadas."

E Amélia? "Tem ali algo da Lolita de Nabokov, sem a perversidade da Lolita", afirma, por entre um sorriso, Carlos Reis. A queirosiana acha que de Amélia emana sensualidade; dele nem por isso.

Lendo o filme como uma obra de iniciação, Isabel Pires de Lima daria outro título: "Os Crimes do Padre Amaro". Não só porque tinha a vantagem de se demarcar do livro, mas também "porque um dos crimes que Amaro comete, além da relação com Amélia, é quando participa a excomunhão a Natalio". Vai mais longe: "Uma das qualidades do filme é ter conseguido revisitar os filões fundamentais do romance - paixão, a força do desejo, e o desespero do encarceramento do desejo."

Já Carlos Reis sugere outra vertente que, afirma, não passa tanto pelo encarceramento do desejo. "E quem a não vê está distraído do significado de certos aspectos da vida religiosa. É a forma como se acentua o papel do confessionário", sublinha. "O confessionário tem sempre permitido, e continua a permitir, uma relação de poder entre o padre a crente." No século XIX e na sequência do Concílio Vaticano I, foi questão debatida. De resto, no romance o tema vem à baila e Eça rosna: "Pela confissão é que se conseguem votos." Para Carlos Reis "este é que é o aspecto central: o poder dos padres junto das mulheres no confessionário".

"Aquela rede estabelece uma fronteira entre o deixa ver e não deixa ver, deixa passar ou não deixa passar, ou seja, é a questão do erotismo", defende Carlos Reis.

reacções do clero. Em 1880, "O Crime..." não provocou alarido. E hoje? "Não creio que o clero vá reagir, tem mais com que se preocupar", avalia Carlos Reis. "Se for inteligente não cairá na esparrela em que caiu o clero mexicano." Para Isabel Pires de Lima, não deixa de ser surpreendente que o filme origine reacção tão canhestra. "Na verdade, o clero não é tão mal-tratado. O próprio padre Benito, que tem as ligações com o narcotráfico, consegue construir um hospital comunal através dessas esmolas."

De novo, Carlos Reis : não conhecendo a realidade mexicana, chama a atenção para códigos de valores que são diferentes. "Há alguma igreja na América Latina que, partilhando as teses da Teologia da Libertação, pode ver neste filme aspectos positivos. O que não creio é que na Europa, e em Portugal, faça sentido." Para o professor da Faculdade de Letras de Coimbra as reacções dos sectores mais conservadores da igreja mexicana só podem ser compreendidos à luz de um país que "ainda deve ter uma componente feudal muito forte, onde um mesmo partido governa há décadas, e em que há bolsas de guerrilha, como a dos Chiapas".

visões de Paula Rego. Antes de Carrera ter adaptado "O Crime...", Paula Rego escandalizou as almas quando, em 1997, apresentou em Inglaterra a sua leitura do "Crime". Agustina, quando revisitou a obra da artista em 2001, "As Meninas", escreveu: "Não estará completada uma biografia de Eça de Queirós sem um olhar detalhado a 'O Crime do Padre Amaro' de Paula Rego."

Embora sejam linguagens diferentes, quer Rego, quer Carrera lêem também o mundo contemporâneo. Se no caso da pintora é hipervalorizada a meditação sobre a identidade feminina, para Isabel Pires de Lima, que escreveu o ensaio "Ecce Femina, Das Paixões, das Mulheres" (Campo das Letras, 2001) a partir da série de Paula Rego, ambos utilizam o romance "para meditarem sobre o destino pátrio: no caso de Rego, o Portugal pós-imperial, no de Carrera a violência de uma sociedade onde os contrastes sociais são grandes".

A realidade que pode interligar as duas adaptações é a violência. Defende Pires de Lima: Paula Rego retrata a violência da paixão e do encarceramento do desejo; Carrera é a violência social do México - que o "aproxima de uma vertente expressionista, que na América Latina ganha contornos maiores. O filme é muito violento, e faz lembrar o quadro de Munch, 'O Grito'." No caso de Paula Rego, Pires de Lima escolheria "Mãe" e "A Cela".

Tudo isto para dizer que, afinal de contas, Carrera não cometeu nenhum crime (de lesa Eça).

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