Diário Económico

17-08-2002
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Notas Políticas Avisos à navegação para o PS

Por Vicente Jorge Silva

A questão mais relevante levantada pela declaração de princípios do PS não reside tanto no documento em si, mas no que deixa transparecer sobre o recente percurso do partido.

No meu artigo de ontem neste jornal, defendi que a actual crise do capitalismo internacional colocava desafios determinantes a uma esquerda europeia que, na sequência de sucessivas derrotas eleitorais, se viu remetida nos últimos tempos a um complexo defensivo. À encruzilhada da esquerda contrapõe-se hoje a encruzilhada da direita e do modelo neo-liberal dominante nas últimas duas décadas. O desregulamento vertiginoso dos mercados de capitais e a gravíssima crise de confiança que abala os fundamentos da ordem económica mundial vieram relançar o imperativo da regulação política, interpelando um importantíssimo património adormecido dos valores da esquerda. É óbvio que o caminho não reside em reeditar arcaicas soluções estatistas ou utopias retrógradas. Trata-se, sim, de reintroduzir num espaço económico globalizado mecanismos reguladores e correctores da desordem e das desigualdades que nos conduzem para o abismo.

Durante a fase eufórica da globalização selvagem e da explosão da nova economia, a direita decretou como dogma indiscutível – que a esquerda com responsabilidades governativas também fez seu – a recusa de contrapesos e controlos públicos à marcha febril dos mercados. O império da “mão invisível” impôs a sua lei cega por toda a parte e o pêndulo deslocou-se até ao precipício da invisibilidade. Para que o pêndulo retome o ponto de equilíbrio é preciso uma “mão visível”: a soberania política das instâncias públicas sobre os domínios que afectam a vida das sociedades (e dos cidadãos lesados pela especulação criminosa que se foi instalando impunemente nos mercados financeiros). Ora, tudo isto são excelentes razões para mobilizar a esquerda e fazê-la sair da sua barricada defensiva, vencer as suas inibições, desembaraçar-se das tralhas do passado e travar um combate fundamental – nas frentes transnacionais e internas (já que só uma visão global dos problemas nos liberta de uma perspectiva paroquial). Mesmo no restrito âmbito português, esse é um desafio decisivo para quem, como o PS, se propõe disputar o espaço tão alargado quanto possível de uma esquerda democrática e moderna. E é um desafio que pode e deve inspirar uma estratégia ofensiva nos mais variados domínios da reflexão e acção políticas.

O novo projecto de declaração de princípios do PS tem provocado uma onda difusa de incomodidade no interior do partido e que o recente e longo texto de Ferro Rodrigues no “Público” não chegou para dissipar. Quando, há duas semanas, aqui me referi de passagem ao assunto (“Fim de Estação ou crónica de um Outono antecipado”) só sabia dele o que os jornais haviam antecipado. Agora que o documento me chegou finalmente às mãos, a sua leitura deixou-me uma estranha impressão. Por um lado – e por uma vez – não se pode acusar a imprensa de ter adulterado o sentido do texto, conduzindo aqueles que não o haviam ainda lido na íntegra a conclusões apressadas e injustas (embora fosse oportuno ir instalando novos hábitos de comunicação partidária). Por outro lado, confesso que não tenho qualquer dificuldade em reconhecer-me em grande parte das formulações propostas nem me choca algumas omissões que certas sensibilidades mais republicanas ou nostálgicas do passado anti-fascista nele têm criticado (uma coisa é o dever de memória, outra é o fetichismo da retórica histórica para consolo de antigos combatentes e desconsolo dos que não têm culpa de haver nascido depois de o combate ter terminado). Nota-se, além disso, uma preocupação em actualizar referências e identificar questões emergentes no horizonte da acção política depois da grande viragem do século.

De onde vem, então, essa estranha impressão? É que, tudo somado e medido, o documento parece menos uma declaração de princípios de um partido socialista do que um doce convite a amores variados e plurais, generosamente partilháveis por gente civilizadíssima e bem intencionada (como os tais “cidadãos e correntes que, não se revendo na divisão entre direita e esquerda, partilham, contudo, os ideais da liberdade, igualdade e solidariedade”). Tão ampla abrangência dissolve a marca da identidade, da especificidade e da nitidez indispensáveis à definição de um projecto e um compromisso políticos. Aliás, o busílis da questão, mais do que nas palavras, está no tom, demasiado suave e vaporoso, no receio subliminar de não chocar almas mais sensíveis a algum suposto excesso “esquerdizante”. Fala-se, por exemplo, de “combate às desigualdades ilegítimas e indesejáveis”. Mas haverá desigualdades “desejáveis”? Cita-se a necessidade de “políticas sociais fortes e eficazes”. Mas que significará uma política social “forte”? Não são esquecidos os que se reformaram depois de uma “vida de labuta”. Mas “labuta” não soará a neo-realismo de inspiração piedosa? É certo que abundam referências insistentes à modernidade (embora a laicidade fique eclipsada) e ao cosmopolitismo (embora falte, como salientou Manuel Alegre, o militantismo). E há, finalmente, a já tão falada definição segundo a qual “os socialistas são democratas radicais”. Em princípio, não teria nada a opor, até porque subscrevo plenamente a afirmação de que “a democracia é um fim em si mesmo”. Só que aqui se insinuam uma dúvida e uma ambiguidade: o “radicalismo democrático” é um modo de acentuar que a democracia dispensa adjectivos ou será uma forma pós-moderna de diluir a carga simbólica e supostamente arcaica do substantivo “socialismo”? O PS quererá ser “democrata radical” porque é socialista envergonhado? Preferiria dissolver a Internacional Socialista na Internacional Democrata desejada por Clinton e Blair?

Mas a questão mais relevante levantada pela proposta de declaração de princípios não reside tanto no documento em si – obviamente aberto a adaptações e alterações – mas nos sinais contraditórios e desconcertantes que deixa transparecer sobre o percurso do partido desde as eleições de Março e os objectivos da actual liderança. As bandeiras de esquerda sob as quais Ferro Rodrigues se impôs à frente do partido não são incompatíveis nem com a renovação interna do PS nem com a modernização dos métodos e estilo de intervenção política. Antes pelo contrário, é da síntese entre os valores matriciais do socialismo democrático e uma vontade renovadora e modernizadora de afirmação do partido na sociedade que dependerá o sucesso deste caminho. Ora, os equívocos criados pelo projecto de declaração de princípios terão levado Ferro Rodrigues a sentir a necessidade de clarificar a sua linha política. Só que a peça-mestra dessa clarificação, o referido artigo no “Público”, criaria uma confusão suplementar: das bandeiras partidárias em que o programa eleitoral do PS era particularmente fértil, o que agora ganhou uma insólita visibilidade foi o retomar da campanha para a despenalização do aborto, numa colagem ostensiva à recente iniciativa da JS. Como se, para ganhar espaço de manobra à esquerda, Ferro se sentisse coagido a voltar atrás no que anteriormente afirmara sobre a oportunidade da reedição do referendo, com isso retirando sentido ao inquérito proposto por Helena Roseta e aprovado por unanimidade no Parlamento sobre a realidade do aborto clandestino em Portugal.

Há alguns anos, publiquei uma carta aberta de apoio a Sérgio Sousa Pinto quando o então líder da JS decidiu levantar a questão do aborto contra a vontade de António Guterres. Aliás, já nos tempos remotos das governações de Mário Soares, denunciara a posição escandalosamente timorata e hipócrita que o PS mantinha sobre um dos dramas mais terríveis que afectam a condição feminina em Portugal e penalizam sobretudo as mulheres mais pobres. Estou, por isso, perfeitamente à vontade na matéria. Mas não me sinto à vontade, na minha qualidade de deputado e militante socialista, quando assisto a sinais de desconcerto que prejudicam a credibilidade política do PS e aquilo que deveria ser uma estratégia de marcação cerrada e de agenda própria do partido face ao poder da direita. O PS abstém-se demais. Não se compreende que o PS se tenha abstido – depois de ter visto rejeitadas as suas propostas de alteração – na recente votação da lei de estabilidade orçamental. E não se percebe como não opõe à proposta de legislação de trabalho de Bagão Félix – que insiste em recuperar, contrabandear e adulterar com requintes eclesiásticos o trabalho legislativo do PS – o combate sistemático, vigoroso e desmistificador que importa travar. Ferro Rodrigues foi e continua a ser o navegador dessa grande esperança que se abriu no Partido Socialista na Primavera deste ano. Mas precisa urgentemente de acertar a bússola até ao próximo porto de chegada no Congresso de Novembro.

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Notas Políticas Avisos à navegação para o PS

Por Vicente Jorge Silva

A questão mais relevante levantada pela declaração de princípios do PS não reside tanto no documento em si, mas no que deixa transparecer sobre o recente percurso do partido.

No meu artigo de ontem neste jornal, defendi que a actual crise do capitalismo internacional colocava desafios determinantes a uma esquerda europeia que, na sequência de sucessivas derrotas eleitorais, se viu remetida nos últimos tempos a um complexo defensivo. À encruzilhada da esquerda contrapõe-se hoje a encruzilhada da direita e do modelo neo-liberal dominante nas últimas duas décadas. O desregulamento vertiginoso dos mercados de capitais e a gravíssima crise de confiança que abala os fundamentos da ordem económica mundial vieram relançar o imperativo da regulação política, interpelando um importantíssimo património adormecido dos valores da esquerda. É óbvio que o caminho não reside em reeditar arcaicas soluções estatistas ou utopias retrógradas. Trata-se, sim, de reintroduzir num espaço económico globalizado mecanismos reguladores e correctores da desordem e das desigualdades que nos conduzem para o abismo.

Durante a fase eufórica da globalização selvagem e da explosão da nova economia, a direita decretou como dogma indiscutível – que a esquerda com responsabilidades governativas também fez seu – a recusa de contrapesos e controlos públicos à marcha febril dos mercados. O império da “mão invisível” impôs a sua lei cega por toda a parte e o pêndulo deslocou-se até ao precipício da invisibilidade. Para que o pêndulo retome o ponto de equilíbrio é preciso uma “mão visível”: a soberania política das instâncias públicas sobre os domínios que afectam a vida das sociedades (e dos cidadãos lesados pela especulação criminosa que se foi instalando impunemente nos mercados financeiros). Ora, tudo isto são excelentes razões para mobilizar a esquerda e fazê-la sair da sua barricada defensiva, vencer as suas inibições, desembaraçar-se das tralhas do passado e travar um combate fundamental – nas frentes transnacionais e internas (já que só uma visão global dos problemas nos liberta de uma perspectiva paroquial). Mesmo no restrito âmbito português, esse é um desafio decisivo para quem, como o PS, se propõe disputar o espaço tão alargado quanto possível de uma esquerda democrática e moderna. E é um desafio que pode e deve inspirar uma estratégia ofensiva nos mais variados domínios da reflexão e acção políticas.

O novo projecto de declaração de princípios do PS tem provocado uma onda difusa de incomodidade no interior do partido e que o recente e longo texto de Ferro Rodrigues no “Público” não chegou para dissipar. Quando, há duas semanas, aqui me referi de passagem ao assunto (“Fim de Estação ou crónica de um Outono antecipado”) só sabia dele o que os jornais haviam antecipado. Agora que o documento me chegou finalmente às mãos, a sua leitura deixou-me uma estranha impressão. Por um lado – e por uma vez – não se pode acusar a imprensa de ter adulterado o sentido do texto, conduzindo aqueles que não o haviam ainda lido na íntegra a conclusões apressadas e injustas (embora fosse oportuno ir instalando novos hábitos de comunicação partidária). Por outro lado, confesso que não tenho qualquer dificuldade em reconhecer-me em grande parte das formulações propostas nem me choca algumas omissões que certas sensibilidades mais republicanas ou nostálgicas do passado anti-fascista nele têm criticado (uma coisa é o dever de memória, outra é o fetichismo da retórica histórica para consolo de antigos combatentes e desconsolo dos que não têm culpa de haver nascido depois de o combate ter terminado). Nota-se, além disso, uma preocupação em actualizar referências e identificar questões emergentes no horizonte da acção política depois da grande viragem do século.

De onde vem, então, essa estranha impressão? É que, tudo somado e medido, o documento parece menos uma declaração de princípios de um partido socialista do que um doce convite a amores variados e plurais, generosamente partilháveis por gente civilizadíssima e bem intencionada (como os tais “cidadãos e correntes que, não se revendo na divisão entre direita e esquerda, partilham, contudo, os ideais da liberdade, igualdade e solidariedade”). Tão ampla abrangência dissolve a marca da identidade, da especificidade e da nitidez indispensáveis à definição de um projecto e um compromisso políticos. Aliás, o busílis da questão, mais do que nas palavras, está no tom, demasiado suave e vaporoso, no receio subliminar de não chocar almas mais sensíveis a algum suposto excesso “esquerdizante”. Fala-se, por exemplo, de “combate às desigualdades ilegítimas e indesejáveis”. Mas haverá desigualdades “desejáveis”? Cita-se a necessidade de “políticas sociais fortes e eficazes”. Mas que significará uma política social “forte”? Não são esquecidos os que se reformaram depois de uma “vida de labuta”. Mas “labuta” não soará a neo-realismo de inspiração piedosa? É certo que abundam referências insistentes à modernidade (embora a laicidade fique eclipsada) e ao cosmopolitismo (embora falte, como salientou Manuel Alegre, o militantismo). E há, finalmente, a já tão falada definição segundo a qual “os socialistas são democratas radicais”. Em princípio, não teria nada a opor, até porque subscrevo plenamente a afirmação de que “a democracia é um fim em si mesmo”. Só que aqui se insinuam uma dúvida e uma ambiguidade: o “radicalismo democrático” é um modo de acentuar que a democracia dispensa adjectivos ou será uma forma pós-moderna de diluir a carga simbólica e supostamente arcaica do substantivo “socialismo”? O PS quererá ser “democrata radical” porque é socialista envergonhado? Preferiria dissolver a Internacional Socialista na Internacional Democrata desejada por Clinton e Blair?

Mas a questão mais relevante levantada pela proposta de declaração de princípios não reside tanto no documento em si – obviamente aberto a adaptações e alterações – mas nos sinais contraditórios e desconcertantes que deixa transparecer sobre o percurso do partido desde as eleições de Março e os objectivos da actual liderança. As bandeiras de esquerda sob as quais Ferro Rodrigues se impôs à frente do partido não são incompatíveis nem com a renovação interna do PS nem com a modernização dos métodos e estilo de intervenção política. Antes pelo contrário, é da síntese entre os valores matriciais do socialismo democrático e uma vontade renovadora e modernizadora de afirmação do partido na sociedade que dependerá o sucesso deste caminho. Ora, os equívocos criados pelo projecto de declaração de princípios terão levado Ferro Rodrigues a sentir a necessidade de clarificar a sua linha política. Só que a peça-mestra dessa clarificação, o referido artigo no “Público”, criaria uma confusão suplementar: das bandeiras partidárias em que o programa eleitoral do PS era particularmente fértil, o que agora ganhou uma insólita visibilidade foi o retomar da campanha para a despenalização do aborto, numa colagem ostensiva à recente iniciativa da JS. Como se, para ganhar espaço de manobra à esquerda, Ferro se sentisse coagido a voltar atrás no que anteriormente afirmara sobre a oportunidade da reedição do referendo, com isso retirando sentido ao inquérito proposto por Helena Roseta e aprovado por unanimidade no Parlamento sobre a realidade do aborto clandestino em Portugal.

Há alguns anos, publiquei uma carta aberta de apoio a Sérgio Sousa Pinto quando o então líder da JS decidiu levantar a questão do aborto contra a vontade de António Guterres. Aliás, já nos tempos remotos das governações de Mário Soares, denunciara a posição escandalosamente timorata e hipócrita que o PS mantinha sobre um dos dramas mais terríveis que afectam a condição feminina em Portugal e penalizam sobretudo as mulheres mais pobres. Estou, por isso, perfeitamente à vontade na matéria. Mas não me sinto à vontade, na minha qualidade de deputado e militante socialista, quando assisto a sinais de desconcerto que prejudicam a credibilidade política do PS e aquilo que deveria ser uma estratégia de marcação cerrada e de agenda própria do partido face ao poder da direita. O PS abstém-se demais. Não se compreende que o PS se tenha abstido – depois de ter visto rejeitadas as suas propostas de alteração – na recente votação da lei de estabilidade orçamental. E não se percebe como não opõe à proposta de legislação de trabalho de Bagão Félix – que insiste em recuperar, contrabandear e adulterar com requintes eclesiásticos o trabalho legislativo do PS – o combate sistemático, vigoroso e desmistificador que importa travar. Ferro Rodrigues foi e continua a ser o navegador dessa grande esperança que se abriu no Partido Socialista na Primavera deste ano. Mas precisa urgentemente de acertar a bússola até ao próximo porto de chegada no Congresso de Novembro.

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