Suplemento Pública

24-06-2004
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Balcãs

Por PRIMAVERA NA SÉRVIA, parte II

Domingo, 11 de Abril de 2004

%Olivera Batajic

Nasci num país muito grande. Um país cheio de pessoas muito diferentes, com culturas diferentes, e diferentes maneiras de estar. Era um país feliz, pensávamos nós. Um país com espaço suficiente para toda a gente. Lentamente, ao passo que fui crescendo, o nosso país (embora fosse diminuindo a capacidade para reconhecer o que "nosso" significava) tornou-se cada vez mais pequeno. Não era por termos crescido, mas porque alguém decidiu roubar-nos uma parte da nossa enorme felicidade. Com menos território o nosso dicionário político crescia enormemente. Por vezes pensávamos que estávamos a ir mais depressa do que deveríamos, deixando os brinquedos das crianças espalhados, a apanhar pó, muito antes de os colocarmos nós próprios num sítio seguro. Tentámos construir um Mundo Acabado, mas criámos uma Paz Inacabada.

Hoje está um dia bonito. Talvez igual a outros locais do mundo. Está sol, com muitas árvores em flor por todo o lado. Um verdadeiro dia de Primavera. A Primavera é a minha estação preferida. É o momento do ano em que tudo se renova. As flores crescem, as árvores nuas cobrem-se de folhas, o sol brilha, e como algumas pessoas costumam dizer "o amor está no ar". Até no círculo dos meus amigos (a maioria deles são artistas) nascem ideias para novos projectos, como se acordassem do sono de Inverno. É bonito!

Há cinco anos, o significado da Primavera aqui mudou. Iniciaram-se os bombardeamentos. Em vez do ar da Primavera, sentimos um estranho odor. O cheiro da morte. Esse cheiro veio para ficar, ao que parece. Um odor que trouxe consigo o medo, o medo trouxe a escuridão que se espalhou por todo o nossos "espaço", e um niilismo destruidor. A história da cultura mediterrânica oriental estava a desaparecer. O berço dos nossos antepassados começava a desvanecer-se. Nesse Março (mês que tem este nome por causa do velho deus romano da guerra - Marte) nós não compreendemos o que era verdadeiramente a guerra. Não vimos o inimigo, não combatemos. Estávamos simplesmente a perder a nossa história e o nosso presente. As igrejas, que fazem parte da nossa identidade cultural e espiritual, eram arrasadas e as pessoas perdiam membros do seu corpo familiar. Esse corpo sangrava. Todos nos interrogávamos: "Que país é este, onde pertenço?" Ninguém sabia responder. A frase mais popular era: "É Primavera e eu vivo na Sérvia". Começámos a pertencer uns aos outros. E isso foi bom.

Os anos passaram. Anos de protestos, de revoluções, de lutas, de derrotas, de tristezas, de... As crianças que nasceram no início da guerra já são crescidas. A sua educação é a guerra, o significado do mundo para elas é a derrota, e o seu sentido de vida é a sobrevivência. Vivem num pequeno local, fechado, sem saber o que fica para além dessas fronteiras.

E, então, chegou mais uma Primavera, mais um mês de Março, e mais uma guerra. Guerra que, na verdade, nunca terminou. De qualquer forma, as pessoas em Belgrado e nas cidades vizinhas ficaram chocadas com a situação. Todos temos alguém conhecido numa dessas terras, no Kosovo, e todos sentimos que essa região é o coração do nosso país. Todos queríamos ajudar, mas não podíamos. Foi tudo muito rápido e muito organizado. A única coisa que as pessoas podiam fazer era ir para a rua e mostrar o seu protesto a um mundo que não fazia nada para acabar com o ódio e a carnificina. O medo voltou. As crianças que cresciam no meio de toda esta situação, começaram a ficar doidas. Começaram a ficar iradas com o espaço para além fronteiras, irritadas novamente com o inimigo cujo rosto nunca tinham visto. Zangadas com alguém que lhes roubara a infância.

No dia seguinte a tudo ter começado, todas as instituições públicas fecharam. As pessoas iam para a rua. Depois, dirigiam-se para as igrejas a fim de rezarem por aqueles que já tinham morrido. Não havia teatro, cinema, cultura, nada. O silêncio na Primavera. Acho que foi um dos silêncios mais estranhos que alguma vez ouvi. O silêncio de uma coisa que está cheia e que quer rebentar. Um silêncio sem esperança. Uma amiga minha, um dia quando falávamos sobre o futuro na Sérvia, disse-me: "Uma pessoa que vive actualmente na Sérvia e que tem esperança num futuro neste país não é optimista, é parva." Nessa altura percebi o que ela queria dizer. Mas senti que não é por não ser possível ter esperança, mas porque não nos é permitido tê-la.

Passados alguns dias, encontrei a minha amiga a pintar aviões de guerra. Outra vez?!?! Porquê?!?! Será que o medo invade tão rapidamente? "Iniciei isto um mês depois de tudo ter começado", confessou-me. Sim, as pessoas aqui estão obcecadas com aviões. Eles não anunciam nada de bom. Não trazem os nossos amigos de outros países. Trazem medo. Sempre gostei muito de aviões, mas aqui, depois de 1999, têm outro significado. Quando ouço o barulho de um avião, o meu coração bate fortemente. Só aqui. Em mais lugar nenhum. Provocará o nome do Kosovo a mesma reacção no coração das pessoas? Continuará esse nome a existir ainda por mais alguns anos? Teremos um passado?

Igrejas a arderem. Cheiro a queimado por toda a parte.

As igrejas não são apenas - igrejas. São reminiscências dos nossos reis, espólios da nossa literatura, o início da nossa cultura, o nosso princípio e, talvez, o nosso fim.

Sentimo-nos todos perdidos. Sentimo-nos todos tristes e impotentes. Ninguém sabe o que fazer. Hoje, podemos ver com frequência nas ruas de Belgrado uma estranha espécie de polícia. Uma polícia especial. Normalmente, encontram-se à volta dos edifícios que têm um traço diferente dos sérvios. Têm um ar terrível, e dão-nos uma sensação estranha. Protegem-nos de nós próprios. Deixam-nos imenso espaço para nos analisarmos a nós próprios e a história que temos à nossa frente. Em que tipo de personalidade estamos prontos para nos transformarmos. Será que entramos neste teatro? Ou somos apenas bonecos que alguém controla? Seremos a concretização possível de uma realidade concebida por alguém?

Tudo o que fazemos agora, e tudo o que podemos fazer, é ajudar. Organizamos algumas acções de recolha de roupas, alimentos, produtos de higiene, brinquedos, e tudo aquilo que as pessoas que perderam as suas casas possam necessitar. Desta forma, sentimo-nos mais próximos e um pouco úteis. Para as pessoas que ali vivem, a felicidade passa por saberem que ainda há alguém que pensa neles, e que alguém sabe que eles existem, embora os seus pequenos "países" já não existam.

É verdade que muitas vezes pensamos que podemos mudar o mundo, que podemos construir um futuro melhor. E então, deparamo-nos no meio de um enorme mundo desconhecido. Depois, apercebemo-nos de que a única coisa que podemos fazer é amar as pessoas que estão à nossa volta. E encontrar paz nesse amor e, com esse amor, tentar devolver à Sérvia o cheirinho da Primavera.

P.S. A minha sobrinha acabou de me telefonar. Tinha a voz triste e cansada. Perguntei-lhe oq eu estava a fazer e ela disse-me que estava a ver a Televisão Feliz. Perguntei o que era isso. "É a televisão que te põe feliz. Uma televisão para crianças", explicou ela.

Tradução de Francisca Sacadura

Balcãs

Por PRIMAVERA NA SÉRVIA, parte II

Domingo, 11 de Abril de 2004

%Olivera Batajic

Nasci num país muito grande. Um país cheio de pessoas muito diferentes, com culturas diferentes, e diferentes maneiras de estar. Era um país feliz, pensávamos nós. Um país com espaço suficiente para toda a gente. Lentamente, ao passo que fui crescendo, o nosso país (embora fosse diminuindo a capacidade para reconhecer o que "nosso" significava) tornou-se cada vez mais pequeno. Não era por termos crescido, mas porque alguém decidiu roubar-nos uma parte da nossa enorme felicidade. Com menos território o nosso dicionário político crescia enormemente. Por vezes pensávamos que estávamos a ir mais depressa do que deveríamos, deixando os brinquedos das crianças espalhados, a apanhar pó, muito antes de os colocarmos nós próprios num sítio seguro. Tentámos construir um Mundo Acabado, mas criámos uma Paz Inacabada.

Hoje está um dia bonito. Talvez igual a outros locais do mundo. Está sol, com muitas árvores em flor por todo o lado. Um verdadeiro dia de Primavera. A Primavera é a minha estação preferida. É o momento do ano em que tudo se renova. As flores crescem, as árvores nuas cobrem-se de folhas, o sol brilha, e como algumas pessoas costumam dizer "o amor está no ar". Até no círculo dos meus amigos (a maioria deles são artistas) nascem ideias para novos projectos, como se acordassem do sono de Inverno. É bonito!

Há cinco anos, o significado da Primavera aqui mudou. Iniciaram-se os bombardeamentos. Em vez do ar da Primavera, sentimos um estranho odor. O cheiro da morte. Esse cheiro veio para ficar, ao que parece. Um odor que trouxe consigo o medo, o medo trouxe a escuridão que se espalhou por todo o nossos "espaço", e um niilismo destruidor. A história da cultura mediterrânica oriental estava a desaparecer. O berço dos nossos antepassados começava a desvanecer-se. Nesse Março (mês que tem este nome por causa do velho deus romano da guerra - Marte) nós não compreendemos o que era verdadeiramente a guerra. Não vimos o inimigo, não combatemos. Estávamos simplesmente a perder a nossa história e o nosso presente. As igrejas, que fazem parte da nossa identidade cultural e espiritual, eram arrasadas e as pessoas perdiam membros do seu corpo familiar. Esse corpo sangrava. Todos nos interrogávamos: "Que país é este, onde pertenço?" Ninguém sabia responder. A frase mais popular era: "É Primavera e eu vivo na Sérvia". Começámos a pertencer uns aos outros. E isso foi bom.

Os anos passaram. Anos de protestos, de revoluções, de lutas, de derrotas, de tristezas, de... As crianças que nasceram no início da guerra já são crescidas. A sua educação é a guerra, o significado do mundo para elas é a derrota, e o seu sentido de vida é a sobrevivência. Vivem num pequeno local, fechado, sem saber o que fica para além dessas fronteiras.

E, então, chegou mais uma Primavera, mais um mês de Março, e mais uma guerra. Guerra que, na verdade, nunca terminou. De qualquer forma, as pessoas em Belgrado e nas cidades vizinhas ficaram chocadas com a situação. Todos temos alguém conhecido numa dessas terras, no Kosovo, e todos sentimos que essa região é o coração do nosso país. Todos queríamos ajudar, mas não podíamos. Foi tudo muito rápido e muito organizado. A única coisa que as pessoas podiam fazer era ir para a rua e mostrar o seu protesto a um mundo que não fazia nada para acabar com o ódio e a carnificina. O medo voltou. As crianças que cresciam no meio de toda esta situação, começaram a ficar doidas. Começaram a ficar iradas com o espaço para além fronteiras, irritadas novamente com o inimigo cujo rosto nunca tinham visto. Zangadas com alguém que lhes roubara a infância.

No dia seguinte a tudo ter começado, todas as instituições públicas fecharam. As pessoas iam para a rua. Depois, dirigiam-se para as igrejas a fim de rezarem por aqueles que já tinham morrido. Não havia teatro, cinema, cultura, nada. O silêncio na Primavera. Acho que foi um dos silêncios mais estranhos que alguma vez ouvi. O silêncio de uma coisa que está cheia e que quer rebentar. Um silêncio sem esperança. Uma amiga minha, um dia quando falávamos sobre o futuro na Sérvia, disse-me: "Uma pessoa que vive actualmente na Sérvia e que tem esperança num futuro neste país não é optimista, é parva." Nessa altura percebi o que ela queria dizer. Mas senti que não é por não ser possível ter esperança, mas porque não nos é permitido tê-la.

Passados alguns dias, encontrei a minha amiga a pintar aviões de guerra. Outra vez?!?! Porquê?!?! Será que o medo invade tão rapidamente? "Iniciei isto um mês depois de tudo ter começado", confessou-me. Sim, as pessoas aqui estão obcecadas com aviões. Eles não anunciam nada de bom. Não trazem os nossos amigos de outros países. Trazem medo. Sempre gostei muito de aviões, mas aqui, depois de 1999, têm outro significado. Quando ouço o barulho de um avião, o meu coração bate fortemente. Só aqui. Em mais lugar nenhum. Provocará o nome do Kosovo a mesma reacção no coração das pessoas? Continuará esse nome a existir ainda por mais alguns anos? Teremos um passado?

Igrejas a arderem. Cheiro a queimado por toda a parte.

As igrejas não são apenas - igrejas. São reminiscências dos nossos reis, espólios da nossa literatura, o início da nossa cultura, o nosso princípio e, talvez, o nosso fim.

Sentimo-nos todos perdidos. Sentimo-nos todos tristes e impotentes. Ninguém sabe o que fazer. Hoje, podemos ver com frequência nas ruas de Belgrado uma estranha espécie de polícia. Uma polícia especial. Normalmente, encontram-se à volta dos edifícios que têm um traço diferente dos sérvios. Têm um ar terrível, e dão-nos uma sensação estranha. Protegem-nos de nós próprios. Deixam-nos imenso espaço para nos analisarmos a nós próprios e a história que temos à nossa frente. Em que tipo de personalidade estamos prontos para nos transformarmos. Será que entramos neste teatro? Ou somos apenas bonecos que alguém controla? Seremos a concretização possível de uma realidade concebida por alguém?

Tudo o que fazemos agora, e tudo o que podemos fazer, é ajudar. Organizamos algumas acções de recolha de roupas, alimentos, produtos de higiene, brinquedos, e tudo aquilo que as pessoas que perderam as suas casas possam necessitar. Desta forma, sentimo-nos mais próximos e um pouco úteis. Para as pessoas que ali vivem, a felicidade passa por saberem que ainda há alguém que pensa neles, e que alguém sabe que eles existem, embora os seus pequenos "países" já não existam.

É verdade que muitas vezes pensamos que podemos mudar o mundo, que podemos construir um futuro melhor. E então, deparamo-nos no meio de um enorme mundo desconhecido. Depois, apercebemo-nos de que a única coisa que podemos fazer é amar as pessoas que estão à nossa volta. E encontrar paz nesse amor e, com esse amor, tentar devolver à Sérvia o cheirinho da Primavera.

P.S. A minha sobrinha acabou de me telefonar. Tinha a voz triste e cansada. Perguntei-lhe oq eu estava a fazer e ela disse-me que estava a ver a Televisão Feliz. Perguntei o que era isso. "É a televisão que te põe feliz. Uma televisão para crianças", explicou ela.

Tradução de Francisca Sacadura

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