Pedro Santana Lopes

03-08-2004
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Pedro Santana Lopes

Por AQUI CHEGOU

Domingo, 18 de Julho de 2004 %Alexandra Lucas Coelho João Navega e Pedro Santana Lopes nasceram em Junho de 1956 com dias de diferença. João a 24, dia de São João. Pedro a 29, dia de São Pedro. Fizeram-se grandes amigos aos 10 anos. Viviam no mesmo bairro (Olivais, em Lisboa), entraram para o mesmo liceu (Padre António Vieira), nunca se afastaram. "Sou o amigo mais antigo que ele tem", diz Navega. Este Verão, quis o acaso empossá-los com dias de diferença. Navega é desde quinta-feira presidente da Administração do Porto de Lisboa. Santana Lopes é desde ontem primeiro-ministro de Portugal. No tempo dos Olivais, metade disto já estava escrito, crê Navega. Ele não sabia o que ia ser, mas o amigo sabia: "Teríamos 14 ou 15 anos, e, naquelas conversas arrastadas nas noites de estudo, uma noite o Pedro disse: 'Gostava de ser primeiro-ministro.' Sempre levei isto a sério. Com toda a franqueza, acho que ele se acha um predestinado. E eu acho que ele é." Na noite dessa conversa, o poder pertencia a Marcello Caetano e os Olivais eram um bairro em expansão, com casas de seis assoalhadas a 1500$00 de renda, atribuídas pelo Estado. Como a que calhou à família de Aníbal Luís Lopes e Maria Ivone Risques Pereira de Sant'Ana, ele empregado de escritório com origem modesta, ela enfermeira de ascendência mais abastada, pais de seis filhos: Pedro, Paulo, Margarida, Teresa, João e Ana. Quando o primeiro nasceu, moravam num pequeno andar noutra periferia, Benfica. Aí passou Pedro Santana Lopes a infância, até aos oito anos. "Gostava muito de construções de Lego e punha-se à janela a ver os prédios a crescer", recorda o pai, 71 anos, homem sereno, quase fleumático, a quem o sanguíneo filho deve muito da cara que tem. No apartamento perto de Cascais para onde foi viver depois de enviuvar, rodeado de fotografias dos filhos e netos, Aníbal tem no colo dois telefones que não páram de tocar e o controle da televisão, para ver daqui a pouco o primogénito a sair de Belém, indigitado primeiro-ministro. Na época de Benfica, como sempre depois, os Lopes são católicos de ir à missa e colaborar na comunidade. É nesse convívio da igreja que Aníbal conhece o seu futuro patrão da Nacional Rádio, representante da Grundig. "Convidou-me para trabalhar com ele quando fazíamos parte da mesma equipa de casais na Paróquia de Nossa Senhora do Amparo. Foi lá que o Pedro fez a primeira comunhão com o Padre Proença." A avó materna, "por quem as crianças tinham adoração", contava "a história do Pedro querer ser padre". O facto, diz Aníbal, é que "nas férias ele se levantava para assistir à missa das oito". Como acólito. Depois foi catequista. Nos Olivais, para onde se mudam em 1964, encontra os padres Rocha e Janela. "Mas a grande marca é do padre Armindo, uma das pessoas que mais o influenciaram na vida." Armindo Garcia participou na célebre Vigília da Capela do Rato (1972), de protesto contra o regime. Chegou a ser detido. Pedro Santana Lopes conheceu-o seis anos antes, no Padre António Vieira, então um liceu só de rapazes. "Fui professor de Moral dele cinco anos", lembra o sacerdote. "Pertencia a uma turma especial de bons alunos." Entre os quais, Francisco Louçã, hoje líder do Bloco de Esquerda. Num liceu "envolvido por barracas", o padre Armindo procurou "incutir-lhes um sentido crítico quanto à situação social", uma "educação pré-política". Além das aulas, organizava campos de férias e excursões. Lembra-se de Pedro Miguel - como lhe chamavam - gastar "o dinheiro todo às segundas-feiras em jornais desportivos". Sem "entrar naquilo que divide os homens - a política", compara o padre Armindo: "O Louçã era de uma delicadeza, de uma harmonia... óptimo aluno. O Pedro era mais atrevido." Louçã não retém "nada que se destacasse em particular" no colega. "Era um aluno médio. Era vivo, uma companhia agradável, cuja preocupação principal era divertir-se, talvez dos mais activos nas festas. Já no 5º ano [actual 9º] havia muita participação política contra a guerra, e ele não se destacava." Não se recorda de Santana nas greves nem nas manifestações do liceu. Jogavam futebol no recreio, mas nem tem ideia dele ser "grande desportista". João Bonifácio Serra, hoje assessor político do Presidente Jorge Sampaio, era então professor de Organização Política da Nação no Padre António Vieira. "O Louçã tem uma passagem muito mais política, era um activista. O Pedro era um rapaz muito simpático e relativamente empenhado na cadeira, com bom relacionamento com toda a gente." Na refeição de finalistas foi o escolhido como representante dos alunos, pelo "à-vontade a falar", recorda. "Era um rapaz popular, não um líder." Com João Navega, Santana ia dos Olivais ao liceu muitas vezes a pé - e ainda é uma caminhada. "Íamos por aquela mata ao longo da Avenida do Brasil", lembra o amigo. "Com o dinheiro do bilhete [de autocarro] conseguíamos fazer mais qualquer coisa." Por exemplo, comprar "A Bola" - "teve sempre a paixão do futebol." Livros, Navega lembra-se de o ver marcado por um: "O Fio da Navalha", de Somerset Maugham. Aos 14, 15 anos, cirandam pela cidade. "Íamos ao cinema, à Xuventude de Galicia... tínhamos umas amigas espanholas. Quando se juntava um grupo, ele liderava. Era aquilo que é hoje, esconde dificilmente as emoções, é autêntico, por vezes difícil, de vontade muito firme." O pai Aníbal, que o aconselhou a ligar-se às associações académicas, "soube compreender muito bem a natureza dele", a mãe Ivone era "a alma da família" e "pai e mãe eram um raro exemplo de casal unido", conta Navega. Da fé do amigo, não duvida: "Puxava-me para ser catequista. É extremamente temente a Deus, de uma forma quase nervosa. Pode praticar pouco, mas por dentro é um tumulto interior. Às vezes zangávamo-nos e o Pedro era sempre capaz de pedir desculpa à saída da missa. Era uma pessoa que se compungia." O Padre Armindo é uma presença na vida de Santana até hoje. "Encontro o Pedro algumas vezes ao ano, sou uma pessoa com quem ele desabafa. Quando a mãe morreu, o pai começou a ajudar-me na paróquia [de Santo António do Estoril]. O Pedro veio agradecer-me por o pai estar desperto para a vida. Gosto da forma como sempre se relacionou com os pais. E os filhos estão sempre a telefonar ao pai." Basta uma hora em casa de Aníbal Lopes para confirmar que sim. Incluindo um telefonema do indigitado primeiro-ministro. "Somos capazes de estar 15 dias sem nos vermos, mas falar, falamos sempre." Pela mãe, recorda, "eles tinham uma adoração", e o Pedro queria-a sempre a rezar, de terço, nas orais. "Não era uma beata, era uma matriarca, cheia de força, disciplinadora mas bem-disposta." Género: "Na praia às 8h30, saída a um quarto para o meio-dia, almoço, sesta." Isto, nas férias. Que começaram por ser em Sarnadela, junto ao rio Alva, de onde é a família de Aníbal. "Metíamo-nos todos no comboio. Só tive carro com 34 anos, quando fomos para os Olivais." Com o desafogo de quem ia subindo na firma, passaram a veranear na Costa da Caparica e depois no Banzão, junto à Praia das Maçãs, onde alugaram casa ao ano. "Junto à dos Abecassis e à do Carmona Rodrigues, que eram grandes amigos deles." Carmona também andava no Padre António Vieira. Ele e Pedro viam-se no liceu e em férias. É uma relação que se prolonga no tempo, e pelo trabalho - como acontecerá com outros amigos e parentes (pai, irmãos, primos, ex-companheiras), chamados a colaborar quando Santana Lopes tentou ser "dinamizador" de projectos de comunicação social ("Sábado", Rádio Gest, "Liberal", fim dos anos 80), na secretaria de Estado da Cultura (1990-94) ou na Câmara de Lisboa (desde 2001). Santana levou Carmona Rodrigues para a Câmara de Lisboa. "Cedeu-o" para ministro das Obras Públicas, Transportes e Habitação - foi Carmona quem nomeou João Navega (antes presidente da Confederação do Comércio Português e administrador da "holding" Entreposto) para a Administração do Porto de Lisboa. E reclamou-o como seu sucessor na câmara. "A amizade é um valor muito grande", diz Carmona Rodrigues. "Tal como tem a família como valor primeiro, [Santana] estabeleceu um núcleo de amigos. De entre milhares de pessoas com quem contactou, escolheu umas." A quem é fiel e que lhe são fiéis. "Ele sabe que em qualquer altura pode contar comigo, e vice-versa. Estamos cá para qualquer coisa que seja precisa. Se ele tem desenvolvido iniciativas centradas nesse núcleo de pessoas, acho bem. Tem essa intuição [de escolher] e lança as pessoas com vontade. Não é um individualista, é um catalizador." Claro que entre os 10 e os 17 anos a vida era mais simples, sem encargos nem embargos. Chegando o Verão, ala três meses para a praia. Na equipa de futebol formada por Carmona, Pedro "era habilidoso... discutia com os companheiros, protestava com o árbitro..." De resto, tinham um grupo grande e misto. "Éramos dezenas, o grupo do 'muro verde' - uma esquina do Banzão onde nos encontrávamos. De manhã íamos à praia, à tarde ao pinhal, à noite ficávamos em casa de um e outro, ou nas garagens, a ouvir discos e a dançar." Houve a fase do "king" e da "sueca", a fase das bicicletas, a fase das "vespas" - aí, já iam a Cascais e à Ericeira. Namoradas, "sempre houve muitas". Maria do Rosário, empregada de uns vizinhos, viu-os crescer e lembra-se de Santana e Carmona sempre juntos. "O Carmona queria ser engenheiro. E ao Pedro, um dia perguntaram: 'Tu queres ir para quê?' E ele: 'Tirar direito, para ser político.' Com 12 aninhos dizia isto..." Em 1973, já espigadotes de 17 anos, Santana e Carmona foram em viagem de finalistas a Paris (três camionetas de rapazes). Além dos cartões-postais, viram "O Último Tango em Paris", "A Laranja Mecânica" e tiveram "oportunidade de conhecer umas estrangeiras" na cantina onde iam almoçar. No Verão seguinte, seguiram a revolução desde a Praia das Maçãs. "Lembro-me de estarmos agarrados à rádio, ele mais do que nós." É então que às referências centrais de Santana ("Mãe, pai, mãe da mãe...", diz Carmona), se vem juntar aquele homem com perfil de águia. "Sá Carneiro personificava para nós o Portugal moderno." Os "anos de ouro" do Banzão acabam aí, diz um nostálgico pai Aníbal. "Começou um vendaval..." Era o 25 de Abril. "Fui saneado de director-geral, o poder de compra diminuiu..." É o momento do arregaçar de mangas combativo, que até então ninguém observara no primogénito Lopes. Caloiro de Direito, com a faculdade em luta livre e por vezes armada (cadeiras, mocas), Santana desanca nos "vermelhos" - por lá também andava aquele do MRRP que daí a 20 anos será conhecido na Europa como José Barroso. E funda o Movimento Independente de Direito (MID), que os adversários rebaptizam de Direita. Está onde era de prever que estivesse, por tudo o que atrás está contado. Há-de deixar o MID para se filiar no PSD, em 1976 - na secção dos Olivais, onde continua a viver. Entre a militância e a faculdade, ajuda a família dando aulas nocturnas em Torres Vedras. Em 77 defende Francisco Sá Carneiro contra Sousa Franco, na luta pela liderança do partido. O primeiro perde e retira-se - quando voltar, no Verão do ano seguinte, já terá o rapaz dos Olivais a seu lado. 1978 é o ano em que, seguindo o conselho do pai, Santana chega a presidente da Associação de Estudantes. E é o ano em que fortalece a sua amizade com Durão. O Congresso do PSD está marcado para Julho e Pedro é delegado eleito por Lisboa. Nas reuniões em casa de Fernando Correia Afonso, destaca-se na preparação da célebre moção G, de apoio a Sá Carneiro. É então que Conceição Monteiro conhece o seu "menino". Escolhido para a redacção final, "o Pedro foi a revelação", conta a ex-secretária de Sá Carneiro. "Como é que um miúdo era capaz de fazer aquelas análises, e com uma dedicação a cem por cento... Adoptei-o logo. Criou-se uma amizade muito grande, uma ternura por aquele filho que nunca tive." Conta Aníbal Lopes que quando se encontram ela diz: "Olha o pai do meu filho!" Sá Carneiro apreciou o texto da moção. "Perguntou quem o tinha feito, eu respondi: 'Foi o pequeno dos Olivais.' Disse-me logo que gostaria de o ter a trabalhar com ele." Chegado o congresso, no cinema Roma, Santana discursa. "Teve uma ovação estrondosa." Num dos intervalos, é apresentado a Sá Carneiro. De volta ao partido, o líder pede a Conceição Monteiro que traga "o pequeno dos Olivais" e convida-o para trabalhar na revisão constitucional. Há de sugeri-lo ainda para o breve governo Mota Pinto - Santana será assessor do ministro Álvaro Monjardino (tutela do Parlamento). Entretanto licenciados, os amigos Durão e Santana vão fazer mestrados no estrangeiro. Durão soma e segue, mas Santana não foi feito para um monástico exílio de estudo. Pelo meio, em Dezembro de 1979, há-de casar com uma antiga colega de Direito, Isabel Dias, de quem tem o primeiro filho, Gonçalo. Sá Carneiro, agora primeiro-ministro, guarda-lhe um lugar de assessor jurídico no seu gabinete. "Não foi por acaso, nem por falta de óptimos juristas", avalia Conceição Monteiro. "Tinha que haver uma empatia muito grande para o Francisco esperar por ele." E Santana veio da Alemanha, desistindo do mestrado. Esse ano de 80 será "o dos dez meses" de governação sá-carneirista, num Portugal belicoso, todo por fazer. "Sá Carneiro nunca viveu em democracia plena porque ainda existia o Conselho da Revolução... tinha aquela espada de Dâmocles em cima da cabeça", considera Conceição Monteiro. Os retratos da época fazem parte dos seus álbuns de família: "Aqui é uma entrega de terras no Alentejo... aqui é a Feira de Santarém... aqui é a visita aos Açores..." Em todas as partes, mais ou menos à vista, lá está Pedro, então barbudo. "Eu e ele íamos a todas. Vibrávamos muito com cada passo." Não houve tempo para muitos mais. Francisco Sá Carneiro morreu em Dezembro, na queda do Cessna em Camarate. A tragédia engrandeceu o mito e Agustina Bessa-Luís escreveu um romance, "Os Meninos de Oiro". Vinte e quatro anos depois, Pedro Miguel Santana Lopes - que entretanto foi deputado, eurodeputado, aprendiz de empresário de comunicação social, presidente de Distrital, secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, secretário de Estado da Cultura, comentador político, comentador desportivo, presidente do Sporting, presidente da Câmara da Figueira da Foz, presidente da Câmara de Lisboa, putativo candidato à Presidência da República, por mais de uma vez candidato a líder do PSD derrotado, por mais de uma vez desistente anunciado da política, inúmeras vezes exposto na imprensa cor-de-rosa com diferentes companheiras, e pai de cinco filhos - chega a primeiro-ministro quando e como nem ele próprio esperava: por substituição súbita. Continua a considerar-se um discípulo de Sá Carneiro. E o que é que isto quer dizer? Para Helena Roseta - sá-carneirista, hoje deputada do PS - há sobretudo diferenças entre ambos. "Sá Carneiro jamais aceitaria o poder outorgado, conquistou-o duramente. Era um social-democrata e Santana Lopes está muito longe de o ser. Sá Carneiro nunca disse que era um liberal, foi da Ala Liberal [durante a ditadura], porque era assim que se chamava. E nunca teve a visão de carreira pessoal que Santana Lopes tem." Segundo Roseta, "Santana está à direita de Sá Carneiro, sem dúvida" e "tem uma visão populista das coisas que ele não tinha - os discursos dele eram extremamente elaborados, não passava a vida a tirar coelhos da cartola". José Miguel Júdice, actual bastonário da Ordem dos Advogados, também é um sá-carneirista: "Procurei estar na política de forma parecida com a de Sá Carneiro. Filiei-me no partido um ano depois da morte dele, e os proponentes foram Conceição Monteiro e Pedro Santana Lopes." Ao contrário de Roseta, Júdice sublinha que "Sá Carneiro sempre venceu no apelo às massas contra as elites" e "tinha uma vertente populista muito forte, de chanceler, a ideia de que o primeiro-ministro é que devia liderar a governação" - "o Santana Lopes tem muito essa lógica, o que torna um pouco absurdo que tenha chegado a primeiro-ministro por um método parlamentarista, na óptica dele, as pessoas votam em primeiros-ministros." Em comum entre os dois, refere ainda "uma forma de estar aguerrida, corajosa, frontal, propícia a erros, quase com um lado de aventura, com algo de erotismo". Por verificar está o efeito da chegada ao poder. "Sá Carneiro surpreendeu todos no governo, com rigor e cautela. É como um Dom Juan que encontra a mulher da sua vida. Quando chegou onde queria, acalmou. Não estou a dizer que Santana Lopes venha a ser assim, mas ponha-se a hipótese. Não sei se queria chegar aqui, julgo que se veria mais Presidente. Nunca me falou de si como primeiro-ministro - talvez porque achasse que nunca teria essa possibilidade. É mais um caçador do que um pastor, mais um conquistador do que um organizador. Agora, vai ter que demonstrar o contrário." E quererá bater-se em eleições: "Herdou o poder. Isso não é o que ele gosta. É evidente que quer legitimar-se." Quanto a diferenças, há as de origem: "Sá Carneiro é um produto da alta burguesia do Porto." As geracionais - enquanto Sá Carneiro tinha uma sólida cultura de base, "Santana Lopes é um fruto da falta de qualidade que no final dos anos 60 atingiu o ensino" e "um produto da política de espectáculo". E as ideológicas: "Santana Lopes é muito mais um liberal e Sá Carneiro muito mais um social-democrata. O Santana Lopes situa-se mais à direita, sem dúvida. O país também está mais à direita..." Descreve Santana como "um sempre-em-pé, que quando perde vai à luta, respira e transpira política". Nesse sentido, compara-o a Mário Soares. "São dois animais políticos excepcionais". Pacheco Pereira, que esta semana deixou de ser eurodeputado do PSD, distingue em absoluto Santana Lopes e Sá Carneiro. "Não se percebe o legado teórico de Sá Carneiro sem se ter em conta que ele colocou o PSD entre o centro-esquerda e o centro-direita do espectro político, e negou sempre, explicitamente, que o PSD fosse um partido de direita. Sentir-se-ia incomodado com um PSD como partido de direita. Isso é uma diferença fundamental." Para além, disso, Sá Carneiro "era um intelectual no sentido nobre do termo", "um homem do Porto" com "uma ética do trabalho", "um princípio de absoluta honestidade intelectual, a recusa de uma política de oportunidades". Nesse sentido, "nada lhe repugnaria mais" do que "este 'continuum' entre o 'soundbyte mediático, a política, o futebol, o espectáculo, que é característico do populismo mediático dos nossos dias". Símbolo da "subjugação da política ao espectáculo" é, para Pacheco Pereira, "A Cadeira do Poder", concurso da SIC em que Santana Lopes fez de primeiro-ministro. Cruzando Roseta, Júdice e Pacheco temos um ponto consensual: Santana está à direita de Sá Carneiro. Paulo Portas, outro declarado sá-carneirista, não o subscreve: "A equação [à época de Sá Carneiro] era saber se o país podia ser governado sem a esquerda e se necessário contra a esquerda. Não se podem usar esses critérios para avaliar situações de hoje. Essa crítica é uma tentativa simples de reduzir espaço [a Santana Lopes]. A história eleitoral dele desmente isso. Ele tem essa capacidade de chegar ao eleitorado de centro-esquerda, e para o PSD essa zona é importante." Portas e Santana encontraram-se no sá-carneirismo, em 1980 e reencontram-se agora como líderes da coligação no governo. Amigos ou conhecidos de longa data? "Amigos. Tivesse ele pouca ou nenhuma importância política, gosto dele humanamente. Ao longo destes mais de 20 anos estivemos em campos diferentes, às vezes até opostos, e a minha amizade com ele sobreviveu." Um dos campos opostos foi o cavaquismo, quando Portas combatia o governo nas manchetes do "Independente" - Conceição Monteiro, por exemplo, deixou de lhe falar. Mas Santana não. "As coisas de que ele não gostava no 'Independente' dizia-me, e as coisas de que eu não gostava no cavaquismo dizia-lhe. Eu não o receio, e ele não me receia. Conhecemo-nos." Mais "difícil" foi a rivalidade na corrida à Câmara de Lisboa em 2001. "Candidatei-me achando que ele não se candidatava. Ele quis fazer uma coligação, estivemos perto, mas ele não me podia dar as garantias que eu precisava, como presidente do CDS-PP." Ou seja, alargar a coligação às legislativas. "Fomos cada um a votos. E eu diria que somos pessoas com um grão de sorte. Ele ganhou por mil votos e eu elegi um vereador à pele, que fazia a maioria. Foi uma conjunção dos astros." Uma fórmula que o supersticioso Santana talvez aprovasse (manteve-se indisponível para falar no contexto deste trabalho). Que julga Portas ter em comum com Santana, além de Sá Carneiro? "Determinação, optimismo, acho que sentido de humor, a par com algum sentido lúdico da política. Sentido de país, somos patriotas." Quanto às diferenças, insiste que não há sobreposição ideológica. "Temos ideologias diferentes. Estamos certos nos respectivos partidos. Ele está bem num partido que vai até ao centro-esquerda e eu estou bem num partido que vai até ao centro-direita. Não digo que ele esteja no centro-esquerda, mas para ele é importante essa abertura." Considera-o um atlantista ou um europeísta? "Acho que é um euro-atlântico, como Durão Barroso e eu." Joaquim Miranda, do PCP, que foi o eurodeputado português mais tempo em funções (18 anos), tem uma ideia diferente, da passagem de Santana pelo Parlamento Europeu no fim dos anos 80. "Ele assumiu-se sempre mais como um atlantista do que como um europeísta convicto." De resto, não se dava por ele. "Foi uma figura apagada, ao contrário de outras, como Lucas Pires, Maria de Lourdes Pintasilgo, João Cravinho, Vitorino. Estava pouco presente, não o vi intervir. Não deixou a mais pequena marca." OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

Ficheiros secretos à portuguesa

Glossário

É mais fácil descentralizar outras entidades nacionais que não os ministérios MANUEL PORTO

Etic

Aniversário

Pedro Santana Lopes

Os dias de Santana Lopes em Alvalade

Joaquim Benite

O homem que tinha uma prisão privada

As indomáveis irmãs Bush

Subcultura

Pelos cabelos

Atletas de Verão

Jóias nos olhos

Banhos com areia limpa

Leite coalhado

Espetadas de borrego com arroz de pinhão

CRÓNICAS

O problema da habitação

Index

CARTAS DA MAYA

Cartas da Maya

DESAFIOS

As idades do avô e do neto

Pedro Santana Lopes

Por AQUI CHEGOU

Domingo, 18 de Julho de 2004 %Alexandra Lucas Coelho João Navega e Pedro Santana Lopes nasceram em Junho de 1956 com dias de diferença. João a 24, dia de São João. Pedro a 29, dia de São Pedro. Fizeram-se grandes amigos aos 10 anos. Viviam no mesmo bairro (Olivais, em Lisboa), entraram para o mesmo liceu (Padre António Vieira), nunca se afastaram. "Sou o amigo mais antigo que ele tem", diz Navega. Este Verão, quis o acaso empossá-los com dias de diferença. Navega é desde quinta-feira presidente da Administração do Porto de Lisboa. Santana Lopes é desde ontem primeiro-ministro de Portugal. No tempo dos Olivais, metade disto já estava escrito, crê Navega. Ele não sabia o que ia ser, mas o amigo sabia: "Teríamos 14 ou 15 anos, e, naquelas conversas arrastadas nas noites de estudo, uma noite o Pedro disse: 'Gostava de ser primeiro-ministro.' Sempre levei isto a sério. Com toda a franqueza, acho que ele se acha um predestinado. E eu acho que ele é." Na noite dessa conversa, o poder pertencia a Marcello Caetano e os Olivais eram um bairro em expansão, com casas de seis assoalhadas a 1500$00 de renda, atribuídas pelo Estado. Como a que calhou à família de Aníbal Luís Lopes e Maria Ivone Risques Pereira de Sant'Ana, ele empregado de escritório com origem modesta, ela enfermeira de ascendência mais abastada, pais de seis filhos: Pedro, Paulo, Margarida, Teresa, João e Ana. Quando o primeiro nasceu, moravam num pequeno andar noutra periferia, Benfica. Aí passou Pedro Santana Lopes a infância, até aos oito anos. "Gostava muito de construções de Lego e punha-se à janela a ver os prédios a crescer", recorda o pai, 71 anos, homem sereno, quase fleumático, a quem o sanguíneo filho deve muito da cara que tem. No apartamento perto de Cascais para onde foi viver depois de enviuvar, rodeado de fotografias dos filhos e netos, Aníbal tem no colo dois telefones que não páram de tocar e o controle da televisão, para ver daqui a pouco o primogénito a sair de Belém, indigitado primeiro-ministro. Na época de Benfica, como sempre depois, os Lopes são católicos de ir à missa e colaborar na comunidade. É nesse convívio da igreja que Aníbal conhece o seu futuro patrão da Nacional Rádio, representante da Grundig. "Convidou-me para trabalhar com ele quando fazíamos parte da mesma equipa de casais na Paróquia de Nossa Senhora do Amparo. Foi lá que o Pedro fez a primeira comunhão com o Padre Proença." A avó materna, "por quem as crianças tinham adoração", contava "a história do Pedro querer ser padre". O facto, diz Aníbal, é que "nas férias ele se levantava para assistir à missa das oito". Como acólito. Depois foi catequista. Nos Olivais, para onde se mudam em 1964, encontra os padres Rocha e Janela. "Mas a grande marca é do padre Armindo, uma das pessoas que mais o influenciaram na vida." Armindo Garcia participou na célebre Vigília da Capela do Rato (1972), de protesto contra o regime. Chegou a ser detido. Pedro Santana Lopes conheceu-o seis anos antes, no Padre António Vieira, então um liceu só de rapazes. "Fui professor de Moral dele cinco anos", lembra o sacerdote. "Pertencia a uma turma especial de bons alunos." Entre os quais, Francisco Louçã, hoje líder do Bloco de Esquerda. Num liceu "envolvido por barracas", o padre Armindo procurou "incutir-lhes um sentido crítico quanto à situação social", uma "educação pré-política". Além das aulas, organizava campos de férias e excursões. Lembra-se de Pedro Miguel - como lhe chamavam - gastar "o dinheiro todo às segundas-feiras em jornais desportivos". Sem "entrar naquilo que divide os homens - a política", compara o padre Armindo: "O Louçã era de uma delicadeza, de uma harmonia... óptimo aluno. O Pedro era mais atrevido." Louçã não retém "nada que se destacasse em particular" no colega. "Era um aluno médio. Era vivo, uma companhia agradável, cuja preocupação principal era divertir-se, talvez dos mais activos nas festas. Já no 5º ano [actual 9º] havia muita participação política contra a guerra, e ele não se destacava." Não se recorda de Santana nas greves nem nas manifestações do liceu. Jogavam futebol no recreio, mas nem tem ideia dele ser "grande desportista". João Bonifácio Serra, hoje assessor político do Presidente Jorge Sampaio, era então professor de Organização Política da Nação no Padre António Vieira. "O Louçã tem uma passagem muito mais política, era um activista. O Pedro era um rapaz muito simpático e relativamente empenhado na cadeira, com bom relacionamento com toda a gente." Na refeição de finalistas foi o escolhido como representante dos alunos, pelo "à-vontade a falar", recorda. "Era um rapaz popular, não um líder." Com João Navega, Santana ia dos Olivais ao liceu muitas vezes a pé - e ainda é uma caminhada. "Íamos por aquela mata ao longo da Avenida do Brasil", lembra o amigo. "Com o dinheiro do bilhete [de autocarro] conseguíamos fazer mais qualquer coisa." Por exemplo, comprar "A Bola" - "teve sempre a paixão do futebol." Livros, Navega lembra-se de o ver marcado por um: "O Fio da Navalha", de Somerset Maugham. Aos 14, 15 anos, cirandam pela cidade. "Íamos ao cinema, à Xuventude de Galicia... tínhamos umas amigas espanholas. Quando se juntava um grupo, ele liderava. Era aquilo que é hoje, esconde dificilmente as emoções, é autêntico, por vezes difícil, de vontade muito firme." O pai Aníbal, que o aconselhou a ligar-se às associações académicas, "soube compreender muito bem a natureza dele", a mãe Ivone era "a alma da família" e "pai e mãe eram um raro exemplo de casal unido", conta Navega. Da fé do amigo, não duvida: "Puxava-me para ser catequista. É extremamente temente a Deus, de uma forma quase nervosa. Pode praticar pouco, mas por dentro é um tumulto interior. Às vezes zangávamo-nos e o Pedro era sempre capaz de pedir desculpa à saída da missa. Era uma pessoa que se compungia." O Padre Armindo é uma presença na vida de Santana até hoje. "Encontro o Pedro algumas vezes ao ano, sou uma pessoa com quem ele desabafa. Quando a mãe morreu, o pai começou a ajudar-me na paróquia [de Santo António do Estoril]. O Pedro veio agradecer-me por o pai estar desperto para a vida. Gosto da forma como sempre se relacionou com os pais. E os filhos estão sempre a telefonar ao pai." Basta uma hora em casa de Aníbal Lopes para confirmar que sim. Incluindo um telefonema do indigitado primeiro-ministro. "Somos capazes de estar 15 dias sem nos vermos, mas falar, falamos sempre." Pela mãe, recorda, "eles tinham uma adoração", e o Pedro queria-a sempre a rezar, de terço, nas orais. "Não era uma beata, era uma matriarca, cheia de força, disciplinadora mas bem-disposta." Género: "Na praia às 8h30, saída a um quarto para o meio-dia, almoço, sesta." Isto, nas férias. Que começaram por ser em Sarnadela, junto ao rio Alva, de onde é a família de Aníbal. "Metíamo-nos todos no comboio. Só tive carro com 34 anos, quando fomos para os Olivais." Com o desafogo de quem ia subindo na firma, passaram a veranear na Costa da Caparica e depois no Banzão, junto à Praia das Maçãs, onde alugaram casa ao ano. "Junto à dos Abecassis e à do Carmona Rodrigues, que eram grandes amigos deles." Carmona também andava no Padre António Vieira. Ele e Pedro viam-se no liceu e em férias. É uma relação que se prolonga no tempo, e pelo trabalho - como acontecerá com outros amigos e parentes (pai, irmãos, primos, ex-companheiras), chamados a colaborar quando Santana Lopes tentou ser "dinamizador" de projectos de comunicação social ("Sábado", Rádio Gest, "Liberal", fim dos anos 80), na secretaria de Estado da Cultura (1990-94) ou na Câmara de Lisboa (desde 2001). Santana levou Carmona Rodrigues para a Câmara de Lisboa. "Cedeu-o" para ministro das Obras Públicas, Transportes e Habitação - foi Carmona quem nomeou João Navega (antes presidente da Confederação do Comércio Português e administrador da "holding" Entreposto) para a Administração do Porto de Lisboa. E reclamou-o como seu sucessor na câmara. "A amizade é um valor muito grande", diz Carmona Rodrigues. "Tal como tem a família como valor primeiro, [Santana] estabeleceu um núcleo de amigos. De entre milhares de pessoas com quem contactou, escolheu umas." A quem é fiel e que lhe são fiéis. "Ele sabe que em qualquer altura pode contar comigo, e vice-versa. Estamos cá para qualquer coisa que seja precisa. Se ele tem desenvolvido iniciativas centradas nesse núcleo de pessoas, acho bem. Tem essa intuição [de escolher] e lança as pessoas com vontade. Não é um individualista, é um catalizador." Claro que entre os 10 e os 17 anos a vida era mais simples, sem encargos nem embargos. Chegando o Verão, ala três meses para a praia. Na equipa de futebol formada por Carmona, Pedro "era habilidoso... discutia com os companheiros, protestava com o árbitro..." De resto, tinham um grupo grande e misto. "Éramos dezenas, o grupo do 'muro verde' - uma esquina do Banzão onde nos encontrávamos. De manhã íamos à praia, à tarde ao pinhal, à noite ficávamos em casa de um e outro, ou nas garagens, a ouvir discos e a dançar." Houve a fase do "king" e da "sueca", a fase das bicicletas, a fase das "vespas" - aí, já iam a Cascais e à Ericeira. Namoradas, "sempre houve muitas". Maria do Rosário, empregada de uns vizinhos, viu-os crescer e lembra-se de Santana e Carmona sempre juntos. "O Carmona queria ser engenheiro. E ao Pedro, um dia perguntaram: 'Tu queres ir para quê?' E ele: 'Tirar direito, para ser político.' Com 12 aninhos dizia isto..." Em 1973, já espigadotes de 17 anos, Santana e Carmona foram em viagem de finalistas a Paris (três camionetas de rapazes). Além dos cartões-postais, viram "O Último Tango em Paris", "A Laranja Mecânica" e tiveram "oportunidade de conhecer umas estrangeiras" na cantina onde iam almoçar. No Verão seguinte, seguiram a revolução desde a Praia das Maçãs. "Lembro-me de estarmos agarrados à rádio, ele mais do que nós." É então que às referências centrais de Santana ("Mãe, pai, mãe da mãe...", diz Carmona), se vem juntar aquele homem com perfil de águia. "Sá Carneiro personificava para nós o Portugal moderno." Os "anos de ouro" do Banzão acabam aí, diz um nostálgico pai Aníbal. "Começou um vendaval..." Era o 25 de Abril. "Fui saneado de director-geral, o poder de compra diminuiu..." É o momento do arregaçar de mangas combativo, que até então ninguém observara no primogénito Lopes. Caloiro de Direito, com a faculdade em luta livre e por vezes armada (cadeiras, mocas), Santana desanca nos "vermelhos" - por lá também andava aquele do MRRP que daí a 20 anos será conhecido na Europa como José Barroso. E funda o Movimento Independente de Direito (MID), que os adversários rebaptizam de Direita. Está onde era de prever que estivesse, por tudo o que atrás está contado. Há-de deixar o MID para se filiar no PSD, em 1976 - na secção dos Olivais, onde continua a viver. Entre a militância e a faculdade, ajuda a família dando aulas nocturnas em Torres Vedras. Em 77 defende Francisco Sá Carneiro contra Sousa Franco, na luta pela liderança do partido. O primeiro perde e retira-se - quando voltar, no Verão do ano seguinte, já terá o rapaz dos Olivais a seu lado. 1978 é o ano em que, seguindo o conselho do pai, Santana chega a presidente da Associação de Estudantes. E é o ano em que fortalece a sua amizade com Durão. O Congresso do PSD está marcado para Julho e Pedro é delegado eleito por Lisboa. Nas reuniões em casa de Fernando Correia Afonso, destaca-se na preparação da célebre moção G, de apoio a Sá Carneiro. É então que Conceição Monteiro conhece o seu "menino". Escolhido para a redacção final, "o Pedro foi a revelação", conta a ex-secretária de Sá Carneiro. "Como é que um miúdo era capaz de fazer aquelas análises, e com uma dedicação a cem por cento... Adoptei-o logo. Criou-se uma amizade muito grande, uma ternura por aquele filho que nunca tive." Conta Aníbal Lopes que quando se encontram ela diz: "Olha o pai do meu filho!" Sá Carneiro apreciou o texto da moção. "Perguntou quem o tinha feito, eu respondi: 'Foi o pequeno dos Olivais.' Disse-me logo que gostaria de o ter a trabalhar com ele." Chegado o congresso, no cinema Roma, Santana discursa. "Teve uma ovação estrondosa." Num dos intervalos, é apresentado a Sá Carneiro. De volta ao partido, o líder pede a Conceição Monteiro que traga "o pequeno dos Olivais" e convida-o para trabalhar na revisão constitucional. Há de sugeri-lo ainda para o breve governo Mota Pinto - Santana será assessor do ministro Álvaro Monjardino (tutela do Parlamento). Entretanto licenciados, os amigos Durão e Santana vão fazer mestrados no estrangeiro. Durão soma e segue, mas Santana não foi feito para um monástico exílio de estudo. Pelo meio, em Dezembro de 1979, há-de casar com uma antiga colega de Direito, Isabel Dias, de quem tem o primeiro filho, Gonçalo. Sá Carneiro, agora primeiro-ministro, guarda-lhe um lugar de assessor jurídico no seu gabinete. "Não foi por acaso, nem por falta de óptimos juristas", avalia Conceição Monteiro. "Tinha que haver uma empatia muito grande para o Francisco esperar por ele." E Santana veio da Alemanha, desistindo do mestrado. Esse ano de 80 será "o dos dez meses" de governação sá-carneirista, num Portugal belicoso, todo por fazer. "Sá Carneiro nunca viveu em democracia plena porque ainda existia o Conselho da Revolução... tinha aquela espada de Dâmocles em cima da cabeça", considera Conceição Monteiro. Os retratos da época fazem parte dos seus álbuns de família: "Aqui é uma entrega de terras no Alentejo... aqui é a Feira de Santarém... aqui é a visita aos Açores..." Em todas as partes, mais ou menos à vista, lá está Pedro, então barbudo. "Eu e ele íamos a todas. Vibrávamos muito com cada passo." Não houve tempo para muitos mais. Francisco Sá Carneiro morreu em Dezembro, na queda do Cessna em Camarate. A tragédia engrandeceu o mito e Agustina Bessa-Luís escreveu um romance, "Os Meninos de Oiro". Vinte e quatro anos depois, Pedro Miguel Santana Lopes - que entretanto foi deputado, eurodeputado, aprendiz de empresário de comunicação social, presidente de Distrital, secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, secretário de Estado da Cultura, comentador político, comentador desportivo, presidente do Sporting, presidente da Câmara da Figueira da Foz, presidente da Câmara de Lisboa, putativo candidato à Presidência da República, por mais de uma vez candidato a líder do PSD derrotado, por mais de uma vez desistente anunciado da política, inúmeras vezes exposto na imprensa cor-de-rosa com diferentes companheiras, e pai de cinco filhos - chega a primeiro-ministro quando e como nem ele próprio esperava: por substituição súbita. Continua a considerar-se um discípulo de Sá Carneiro. E o que é que isto quer dizer? Para Helena Roseta - sá-carneirista, hoje deputada do PS - há sobretudo diferenças entre ambos. "Sá Carneiro jamais aceitaria o poder outorgado, conquistou-o duramente. Era um social-democrata e Santana Lopes está muito longe de o ser. Sá Carneiro nunca disse que era um liberal, foi da Ala Liberal [durante a ditadura], porque era assim que se chamava. E nunca teve a visão de carreira pessoal que Santana Lopes tem." Segundo Roseta, "Santana está à direita de Sá Carneiro, sem dúvida" e "tem uma visão populista das coisas que ele não tinha - os discursos dele eram extremamente elaborados, não passava a vida a tirar coelhos da cartola". José Miguel Júdice, actual bastonário da Ordem dos Advogados, também é um sá-carneirista: "Procurei estar na política de forma parecida com a de Sá Carneiro. Filiei-me no partido um ano depois da morte dele, e os proponentes foram Conceição Monteiro e Pedro Santana Lopes." Ao contrário de Roseta, Júdice sublinha que "Sá Carneiro sempre venceu no apelo às massas contra as elites" e "tinha uma vertente populista muito forte, de chanceler, a ideia de que o primeiro-ministro é que devia liderar a governação" - "o Santana Lopes tem muito essa lógica, o que torna um pouco absurdo que tenha chegado a primeiro-ministro por um método parlamentarista, na óptica dele, as pessoas votam em primeiros-ministros." Em comum entre os dois, refere ainda "uma forma de estar aguerrida, corajosa, frontal, propícia a erros, quase com um lado de aventura, com algo de erotismo". Por verificar está o efeito da chegada ao poder. "Sá Carneiro surpreendeu todos no governo, com rigor e cautela. É como um Dom Juan que encontra a mulher da sua vida. Quando chegou onde queria, acalmou. Não estou a dizer que Santana Lopes venha a ser assim, mas ponha-se a hipótese. Não sei se queria chegar aqui, julgo que se veria mais Presidente. Nunca me falou de si como primeiro-ministro - talvez porque achasse que nunca teria essa possibilidade. É mais um caçador do que um pastor, mais um conquistador do que um organizador. Agora, vai ter que demonstrar o contrário." E quererá bater-se em eleições: "Herdou o poder. Isso não é o que ele gosta. É evidente que quer legitimar-se." Quanto a diferenças, há as de origem: "Sá Carneiro é um produto da alta burguesia do Porto." As geracionais - enquanto Sá Carneiro tinha uma sólida cultura de base, "Santana Lopes é um fruto da falta de qualidade que no final dos anos 60 atingiu o ensino" e "um produto da política de espectáculo". E as ideológicas: "Santana Lopes é muito mais um liberal e Sá Carneiro muito mais um social-democrata. O Santana Lopes situa-se mais à direita, sem dúvida. O país também está mais à direita..." Descreve Santana como "um sempre-em-pé, que quando perde vai à luta, respira e transpira política". Nesse sentido, compara-o a Mário Soares. "São dois animais políticos excepcionais". Pacheco Pereira, que esta semana deixou de ser eurodeputado do PSD, distingue em absoluto Santana Lopes e Sá Carneiro. "Não se percebe o legado teórico de Sá Carneiro sem se ter em conta que ele colocou o PSD entre o centro-esquerda e o centro-direita do espectro político, e negou sempre, explicitamente, que o PSD fosse um partido de direita. Sentir-se-ia incomodado com um PSD como partido de direita. Isso é uma diferença fundamental." Para além, disso, Sá Carneiro "era um intelectual no sentido nobre do termo", "um homem do Porto" com "uma ética do trabalho", "um princípio de absoluta honestidade intelectual, a recusa de uma política de oportunidades". Nesse sentido, "nada lhe repugnaria mais" do que "este 'continuum' entre o 'soundbyte mediático, a política, o futebol, o espectáculo, que é característico do populismo mediático dos nossos dias". Símbolo da "subjugação da política ao espectáculo" é, para Pacheco Pereira, "A Cadeira do Poder", concurso da SIC em que Santana Lopes fez de primeiro-ministro. Cruzando Roseta, Júdice e Pacheco temos um ponto consensual: Santana está à direita de Sá Carneiro. Paulo Portas, outro declarado sá-carneirista, não o subscreve: "A equação [à época de Sá Carneiro] era saber se o país podia ser governado sem a esquerda e se necessário contra a esquerda. Não se podem usar esses critérios para avaliar situações de hoje. Essa crítica é uma tentativa simples de reduzir espaço [a Santana Lopes]. A história eleitoral dele desmente isso. Ele tem essa capacidade de chegar ao eleitorado de centro-esquerda, e para o PSD essa zona é importante." Portas e Santana encontraram-se no sá-carneirismo, em 1980 e reencontram-se agora como líderes da coligação no governo. Amigos ou conhecidos de longa data? "Amigos. Tivesse ele pouca ou nenhuma importância política, gosto dele humanamente. Ao longo destes mais de 20 anos estivemos em campos diferentes, às vezes até opostos, e a minha amizade com ele sobreviveu." Um dos campos opostos foi o cavaquismo, quando Portas combatia o governo nas manchetes do "Independente" - Conceição Monteiro, por exemplo, deixou de lhe falar. Mas Santana não. "As coisas de que ele não gostava no 'Independente' dizia-me, e as coisas de que eu não gostava no cavaquismo dizia-lhe. Eu não o receio, e ele não me receia. Conhecemo-nos." Mais "difícil" foi a rivalidade na corrida à Câmara de Lisboa em 2001. "Candidatei-me achando que ele não se candidatava. Ele quis fazer uma coligação, estivemos perto, mas ele não me podia dar as garantias que eu precisava, como presidente do CDS-PP." Ou seja, alargar a coligação às legislativas. "Fomos cada um a votos. E eu diria que somos pessoas com um grão de sorte. Ele ganhou por mil votos e eu elegi um vereador à pele, que fazia a maioria. Foi uma conjunção dos astros." Uma fórmula que o supersticioso Santana talvez aprovasse (manteve-se indisponível para falar no contexto deste trabalho). Que julga Portas ter em comum com Santana, além de Sá Carneiro? "Determinação, optimismo, acho que sentido de humor, a par com algum sentido lúdico da política. Sentido de país, somos patriotas." Quanto às diferenças, insiste que não há sobreposição ideológica. "Temos ideologias diferentes. Estamos certos nos respectivos partidos. Ele está bem num partido que vai até ao centro-esquerda e eu estou bem num partido que vai até ao centro-direita. Não digo que ele esteja no centro-esquerda, mas para ele é importante essa abertura." Considera-o um atlantista ou um europeísta? "Acho que é um euro-atlântico, como Durão Barroso e eu." Joaquim Miranda, do PCP, que foi o eurodeputado português mais tempo em funções (18 anos), tem uma ideia diferente, da passagem de Santana pelo Parlamento Europeu no fim dos anos 80. "Ele assumiu-se sempre mais como um atlantista do que como um europeísta convicto." De resto, não se dava por ele. "Foi uma figura apagada, ao contrário de outras, como Lucas Pires, Maria de Lourdes Pintasilgo, João Cravinho, Vitorino. Estava pouco presente, não o vi intervir. Não deixou a mais pequena marca." OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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É mais fácil descentralizar outras entidades nacionais que não os ministérios MANUEL PORTO

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