As estátuas e as rotundas são a desgraça nacional Helena Roseta

17-06-2004
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As Estátuas e as Rotundas São a Desgraça Nacional Helena Roseta

Domingo, 11 de Abril de 2004 %Ana Henriques P - Em que pé está a criação do fórum arquitectura e cidade, decidida no último congresso da Ordem dos Arquitectos, em Novembro passado? R - É um projecto a médio prazo e importantíssimo. No final de Maio vamos iniciar seminários sobre "A cidade que temos, a cidade que queremos", envolvendo uma série de entidades. Uma das possibilidades é no final dos seminários propormos a instituição do fórum. Portugal devia ter uma montra, uma instância, onde as questões da cidade, da arquitectura e da construção fossem debatidas. Vou dar apenas um exemplo inacreditável: decorreu agora o Mipim, que é um importante certame de construção civil em Cannes, e não havia lá nada sobre os estádios do Euro 2004. P - Porquê? R - Não existe uma parceria organizada das entidades para apostar na imagem de Portugal. P - Mas este projecto do fórum não é só para consumo interno? R - Não, não. É para projectar Portugal, para prestigiar o país. A construção civil é um sector que tem uma capacidade de reprodução económica brutal. Os investimentos têm uma capacidade de geração de emprego extremamente elevada. É um sector estratégico e um fórum destes é fundamental para que entidades que lidam com este sector possam gerar informação para os cidadãos se poderem pronunciar sobre os projectos que se colocam às cidades e zonas urbanas. P - Tem falado no Pavilhão de Portugal, no Parque das Nações, em Lisboa, para acolher este fórum. R - Esse é um caso de absoluto silêncio por parte das entidades governamentais e municipais. Pedi audiências ao primeiro-ministro, ao presidente da câmara e ao ministro das Cidades. Nenhum deles se dignou sequer a responder. P - Isso é um desrespeito institucional? R - Além disso, é uma forma de desleixo. Temos ali património da mais alta qualidade e não vejo interesse das entidades públicas em querer rentabilizá-lo. P - Há algum tempo realizou-se no Pavilhão de Portugal um evento da La Redoute... R - Aquilo está entregue à Parque Expo, que o rentabiliza como outro espaço qualquer. A sua rentabillização comercial é absurda, dado ter sido feito com dinheiros públicos - era suposto ser um equipamento público. Tanto quanto sei está a pensar-se numa utilização de acesso reservado: instalar lá a Agência Europeia de Segurança Marítima. O próprio Siza Vieira [arquitecto que desenhou o pavilhão] já considerou esse destino inapropriado porque se gastará imenso dinheiro a transformar um edifício pensado para ser um grande pavilhão de exposições num bloco de escritórios. Ainda bem que abandonaram a ideia de lá instalar o Conselho de Ministros, porque era um disparate. Temos um edifício mundialmente conhecido, temos projectos com interesse público para ocupar esse edifício e as entidades nem sequer respondem. P - Falou com a Parque Expo? R - Para lá colocarmos uma exposição de arquitectura, cedia-nos um bocadinho de espaço por mil contos por dia. Com essa filosofia e esses preços é muito difícil dar vida àquele pavilhão. Chegámos a sugerir que num dos pisos fosse colocada a colecção Berardo. Nem consegui apresentar a proposta, pois ninguém me recebeu. P - Como é que vê a evolução do Parque das Nações? R - O grande erro foi a teoria de que a Expo se pagaria a si própria. Claro que não pagou, a Parque Expo tem um grande passivo e a rentabilização passa pela densificação do espaço. Podem estar a matar a galinha dos ovos de ouro. A grande vantagem daquele espaço, que era um certo desafogo, uma grande qualidade do espaço público, uma grande liberdade de circulação, uma relação muito interessante com o estuário. Tudo pode estar a ir por água abaixo. P- O que é preciso fazer para evitar que isso aconteça? R- O que está a acontecer é levar ao limite os planos existentes, que permitem aquela densificação toda. Não há ali mudança de planos, nem ilegalidades. Acho que é preciso explicar aos cidadãos as consequências dos projectos antes de estarem executados. As pessoas não têm noção do que representa a volumetria de determinado projecto. Só quando aquilo está a ser construído é que ficam alarmadas. P - No Congresso do ano passado foi anunciado também a criação da figura de um provedor da arquitectura. R - Estaremos em condições de apresentar regulamentos para as suas competências em Setembro. O provedor da arquitectura vai funcionar na Ordem, tendo como função receber as queixas e reclamações de arquitectos e de cidadãos. Terá poder para fazer recomendações a todos os órgãos da Ordem e, eventualmente, para diligenciar junto de entidades externas. Pode ou não ser um arquitecto, mas faz sentido que seja. P - Há um grande atraso na aprovação da lei que impede não qualificados de fazer projectos de arquitectura. R - Há 30 anos que se espera. Em Maio passado o parlamento aprovou uma resolução por unanimidade e depois o Governo não avançou com proposta nenhuma. Neste momento estou a tentar concertar posições com outras ordens e associações profissionais para apresentar, por nossa própria iniciativa, um projecto de diploma ao Governo e ao parlamento. A grande dificuldade que o Governo tem aqui é de arbitragem entre interesses divergentes, nomeadamente no que diz respeito aos profissionais que não têm qualificações e querem continuar a fazer determinados projectos. Não podemos ter um discurso governamental a dizer que é preciso qualificar o sector da construção civil e depois falhar nesta questão que é básica. P - Qual é a ideia desse diploma? R - Definir quem faz o quê na área do projecto, da direcção da obra e da fiscalização. Temos [em vigor] um diploma que permite que não qualificados exerçam funções de arquitectura e de engenharia, embora haja quem diga que ele está tacitamente revogado. Somos o país da União Europeia com a mais alta taxa de acidentes mortais na construção civil. Isto passa muito pelo projecto e pela direcção de obra. P - Há autarquias que contratam arquitectos de renome para fazer passar projectos muito pesados, do ponto de vista da densidade de construção, ou polémicos. Como é que isso se resolve? R - Os arquitectos mais prestigiados têm aí o papel importante de abrir o espaço para a compreensão da melhor arquitectura. A arquitectura tem uma responsabilidade social, mas também tem uma componente artística. É preciso haver algum rasgo e algum risco. Independentemente disso, a encomenda pública deve seguir a regra do concurso. P - Mas nem sempre é isso que se tem passado em Lisboa. R - Lisboa é um caso particular. A Empresa Pública de Urbanização de Lisboa (EPUL) tem, por razões circunstanciais, poderes especiais: não é obrigada a seguir as regras do concurso público em matéria de projecto. Ao abrigo desse estatuto, a Câmara de Lisboa passa os projectos para a EPUL, que convida quem quer. Tem sido um erro tremendo manter esse estatuto de excepção. P - Considera Santana Lopes pior presidente de Câmara que o seu antecessor, João Soares? R - João Soares era um homem de acção, que gostava de concretizar resultados, mas de má comunicação. O actual presidente é aquilo a que os franceses chamam "l'effect d'annonce": anuncia mais do que faz. Só que é preciso mostrar resultados, e é aí que as coisas falham. P - O que fez João Soares por Lisboa? R - Tanta coisa! Todo o programa de habitação social, espaços públicos, parques de estacionamento... P - Está a ser parcial, por ele ser seu camarada de partido. R - Sou muito independente nessas coisas. Questões como a do Casal Ventoso, onde ninguém tinha até aí conseguido entrar, são emblemáticas. P - Mas os toxicodependentes voltaram. R - Sim, mas ele teve a coragem de entrar por ali adentro. Isso ninguém lhe pode tirar. O actual presidente da câmara não está a conseguir resolver as coisas que prometeu, arranjou a trapalhada do Parque Mayer e está a deixar-se embalar pelo efeito de anúncio. P - O que devia ser feito no Parque Mayer? R - Um plano de pormenor. Até hoje poucos planos de pormenor avançaram em Lisboa. O caso de Alcântara é típico: está tudo aos gritos por causa da proposta de Siza Vieira [para a construção de torres] mas o que falta é um plano de pormenor. É isso que define a malha da cidade, mais do que o Plano Director Municipal, que só tem as linhas gerais. P - E que usos deve ter o Parque Mayer? R - Não podem ser muito diferentes daqueles que para lá estão propostos. O perigo é que aquilo é um vale e é a confluência de uma encosta. É uma zona extremamente frágil do ponto de vista físico e portanto qualquer intervenção tem de ser feita com pinças. O que me assusta nas primeiras propostas de ocupação daquele espaço - depois não vi as propostas de Frank Gehry - era a enorme quantidade de parques de estacionamento nesta zona de alta sensibilidade. Já escavámos demasiado a cidade, temos de ter cuidado. O casino, que levou tanta gente a radicalizar posições, não me chocava nada, desde que não fosse ali. P - E no Jardim do Tabaco, como agora está previsto? A administração portuária parece estar algo reticente. R - As administrações portuárias fazerem o que querem sem dar explicações a ninguém, é outro caso extraordinário. O território é todo o mesmo e depois arranjam-se estatutos de excepção para várias entidades administrativas dirigirem um espaço que é o mesmo. Isto faz-me impressão. É o mesmo chão, a mesma cidade, o mesmo rio. Não podemos ter cada bocadinho entregue a uma instituição que faz o que quer, sem prestar contas. P - Há algum tempo disse que se lavava muito dinheiro na construção civil. Nada mudou... R - Foi aprovada pela Assembleia da República a transposição de uma directiva comunitária sobre branqueamento de capitais e uma das áreas é a do imobiliário. O grande drama é que as entidades fiscalizadoras em Portugal estão completamente exauridas de meios. A Inspecção Geral da Administração do Território tem pouco mais de duas dezenas de técnicos para inspeccionar todas as autarquias do país. Temos de confiar todos na Virgem Maria. P - O que pensa da estatuária em Lisboa? R - As estátuas e as rotundas são a desgraça nacional. Ainda não consegui perceber de onde surgiu a moda das rotundas - se é um problema dos engenheiros de tráfego se da vaidade dos autarcas. Mas têm aparecido as peças mais estranhas em cima delas. Se calhar precisamos de educar o gosto. P - O que diria Sá Carneiro se voltasse cá e visse a sua nova estátua? R - Não sei se não morria outra vez. Neste campo acredito também na encomenda pública, mas têm que ser júris qualificados a julgar. O problema é que fica tudo ao gosto do autarca que encomenda, e às tantas o artista faz exactamente aquilo que ele gostaria de comprar. Temos uma cadeia toda viciada. Acho que há uma grande incultura visual e estética em Portugal. Tenho uma grande tristeza quando vou a cidades de outros países em que se aposta em coisas altamente inovadoras e depois chego a Portugal e há rotundas com porquinhos, e tourozinhos e pastorinhos. P - Os ministérios devem sair do Terreiro do Paço? R - Para pôr lá o quê? Esplanadas ali é uma invenção dos demónios, é aberrante, porque se há sítio desabrido e desagradável é este. A vocação do Terreiro do Paço é ser a sala de visitas de Lisboa, para grandes acontecimentos e festas. Nas arcadas devia haver utilização do espaço público. Agora tirar os ministérios para pôr hotéis de charme parece-me uma ideia mirífica. Vai-se dar cabo da arquitectura interior, daqueles pés-direitos? P - Continuando em Lisboa, o que se está a passar em Monsanto? R - Está a ser comido aos bocadinhos. A transferência da Feira Popular para lá é um risco enorme. Há usos que são incompatíveis com uma estrutura verde como aquela, pelo barulho que geram, pela quantidade de gente que atraem. P - No Porto, há quem diga que a reabilitação urbana parou por culpa dos arquitectos. R - A reabilitação tem de ser um processo integrado. Há uma reabilitação física do tecido urbano, uma reabilitação económica, social e ambiental e ainda a manutenção. Em processos como os da Ribeira investiu-se muito na física mas está para lá da competência dos arquitectos fazer o resto. Quando isso não acontece, os residentes não conseguem pagar os custos da reabilitação, e acabam por sair do local. Neste impasse, casas reabilitadas acabam por não ser ocupadas e começa a haver degradação antes de se entrar na fase da manutenção. O processo mais bem conseguido em Portugal a este nível é o do centro histórico de Guimarães: pequenas reabilitações, muita interacção com a população, maior aposta nos espaços públicos do que nas casas particulares, que foram reabilitadas depois destes. Com as novas Sociedades de Reabilitação Urbana podemos correr o risco de repetir cenas deste género, porque elas estão pensadas em termos somente físicos. P - E o caso do edifício Coutinho, em Viana do Castelo? R - É uma problema de mudança de gosto. A certa altura os edifícios altos significam progresso, 20 anos depois já se acha que não e manda-se abaixo. Até que ponto se justifica? P - Os seus colegas de partido que ocupam cargos de vereadores na Câmara de Lisboa têm sido alvo de algumas críticas suas. Porquê? R - Não estou de acordo com as intervenções deles. Falta ao PS uma estratégia clara para a cidade de Lisboa. É preciso ir mais longe. Falta liderança em Lisboa e tem de ser alguém com provas dadas. O PS vai ter de resolver isso depois do congresso e vou participar nessa decisão. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

Os sacerdotes do livro

O Índex

CONVERSA COM VISTA PARA... HELDER MACEDO

A vingança construtiva do filho dos Rosenberg

Jogadores de uma só perna

Aniversário

Inovações

Balcãs

As estátuas e as rotundas são a desgraça nacional Helena Roseta

Da política à arquitectura

"Navegar" à borla

Depressão em jovens

Cuidado, há um jardim em construção

Doenças sexualmente transmissíveis

GRATINADO DA HORTA

Vegetais primaveris

Água amarga?

O jogo da minha vida

CRÓNICAS

A prioridade vital da morte

DESAFIOS

REUNIÕES COM AS TRÊS TRIBOS

As Estátuas e as Rotundas São a Desgraça Nacional Helena Roseta

Domingo, 11 de Abril de 2004 %Ana Henriques P - Em que pé está a criação do fórum arquitectura e cidade, decidida no último congresso da Ordem dos Arquitectos, em Novembro passado? R - É um projecto a médio prazo e importantíssimo. No final de Maio vamos iniciar seminários sobre "A cidade que temos, a cidade que queremos", envolvendo uma série de entidades. Uma das possibilidades é no final dos seminários propormos a instituição do fórum. Portugal devia ter uma montra, uma instância, onde as questões da cidade, da arquitectura e da construção fossem debatidas. Vou dar apenas um exemplo inacreditável: decorreu agora o Mipim, que é um importante certame de construção civil em Cannes, e não havia lá nada sobre os estádios do Euro 2004. P - Porquê? R - Não existe uma parceria organizada das entidades para apostar na imagem de Portugal. P - Mas este projecto do fórum não é só para consumo interno? R - Não, não. É para projectar Portugal, para prestigiar o país. A construção civil é um sector que tem uma capacidade de reprodução económica brutal. Os investimentos têm uma capacidade de geração de emprego extremamente elevada. É um sector estratégico e um fórum destes é fundamental para que entidades que lidam com este sector possam gerar informação para os cidadãos se poderem pronunciar sobre os projectos que se colocam às cidades e zonas urbanas. P - Tem falado no Pavilhão de Portugal, no Parque das Nações, em Lisboa, para acolher este fórum. R - Esse é um caso de absoluto silêncio por parte das entidades governamentais e municipais. Pedi audiências ao primeiro-ministro, ao presidente da câmara e ao ministro das Cidades. Nenhum deles se dignou sequer a responder. P - Isso é um desrespeito institucional? R - Além disso, é uma forma de desleixo. Temos ali património da mais alta qualidade e não vejo interesse das entidades públicas em querer rentabilizá-lo. P - Há algum tempo realizou-se no Pavilhão de Portugal um evento da La Redoute... R - Aquilo está entregue à Parque Expo, que o rentabiliza como outro espaço qualquer. A sua rentabillização comercial é absurda, dado ter sido feito com dinheiros públicos - era suposto ser um equipamento público. Tanto quanto sei está a pensar-se numa utilização de acesso reservado: instalar lá a Agência Europeia de Segurança Marítima. O próprio Siza Vieira [arquitecto que desenhou o pavilhão] já considerou esse destino inapropriado porque se gastará imenso dinheiro a transformar um edifício pensado para ser um grande pavilhão de exposições num bloco de escritórios. Ainda bem que abandonaram a ideia de lá instalar o Conselho de Ministros, porque era um disparate. Temos um edifício mundialmente conhecido, temos projectos com interesse público para ocupar esse edifício e as entidades nem sequer respondem. P - Falou com a Parque Expo? R - Para lá colocarmos uma exposição de arquitectura, cedia-nos um bocadinho de espaço por mil contos por dia. Com essa filosofia e esses preços é muito difícil dar vida àquele pavilhão. Chegámos a sugerir que num dos pisos fosse colocada a colecção Berardo. Nem consegui apresentar a proposta, pois ninguém me recebeu. P - Como é que vê a evolução do Parque das Nações? R - O grande erro foi a teoria de que a Expo se pagaria a si própria. Claro que não pagou, a Parque Expo tem um grande passivo e a rentabilização passa pela densificação do espaço. Podem estar a matar a galinha dos ovos de ouro. A grande vantagem daquele espaço, que era um certo desafogo, uma grande qualidade do espaço público, uma grande liberdade de circulação, uma relação muito interessante com o estuário. Tudo pode estar a ir por água abaixo. P- O que é preciso fazer para evitar que isso aconteça? R- O que está a acontecer é levar ao limite os planos existentes, que permitem aquela densificação toda. Não há ali mudança de planos, nem ilegalidades. Acho que é preciso explicar aos cidadãos as consequências dos projectos antes de estarem executados. As pessoas não têm noção do que representa a volumetria de determinado projecto. Só quando aquilo está a ser construído é que ficam alarmadas. P - No Congresso do ano passado foi anunciado também a criação da figura de um provedor da arquitectura. R - Estaremos em condições de apresentar regulamentos para as suas competências em Setembro. O provedor da arquitectura vai funcionar na Ordem, tendo como função receber as queixas e reclamações de arquitectos e de cidadãos. Terá poder para fazer recomendações a todos os órgãos da Ordem e, eventualmente, para diligenciar junto de entidades externas. Pode ou não ser um arquitecto, mas faz sentido que seja. P - Há um grande atraso na aprovação da lei que impede não qualificados de fazer projectos de arquitectura. R - Há 30 anos que se espera. Em Maio passado o parlamento aprovou uma resolução por unanimidade e depois o Governo não avançou com proposta nenhuma. Neste momento estou a tentar concertar posições com outras ordens e associações profissionais para apresentar, por nossa própria iniciativa, um projecto de diploma ao Governo e ao parlamento. A grande dificuldade que o Governo tem aqui é de arbitragem entre interesses divergentes, nomeadamente no que diz respeito aos profissionais que não têm qualificações e querem continuar a fazer determinados projectos. Não podemos ter um discurso governamental a dizer que é preciso qualificar o sector da construção civil e depois falhar nesta questão que é básica. P - Qual é a ideia desse diploma? R - Definir quem faz o quê na área do projecto, da direcção da obra e da fiscalização. Temos [em vigor] um diploma que permite que não qualificados exerçam funções de arquitectura e de engenharia, embora haja quem diga que ele está tacitamente revogado. Somos o país da União Europeia com a mais alta taxa de acidentes mortais na construção civil. Isto passa muito pelo projecto e pela direcção de obra. P - Há autarquias que contratam arquitectos de renome para fazer passar projectos muito pesados, do ponto de vista da densidade de construção, ou polémicos. Como é que isso se resolve? R - Os arquitectos mais prestigiados têm aí o papel importante de abrir o espaço para a compreensão da melhor arquitectura. A arquitectura tem uma responsabilidade social, mas também tem uma componente artística. É preciso haver algum rasgo e algum risco. Independentemente disso, a encomenda pública deve seguir a regra do concurso. P - Mas nem sempre é isso que se tem passado em Lisboa. R - Lisboa é um caso particular. A Empresa Pública de Urbanização de Lisboa (EPUL) tem, por razões circunstanciais, poderes especiais: não é obrigada a seguir as regras do concurso público em matéria de projecto. Ao abrigo desse estatuto, a Câmara de Lisboa passa os projectos para a EPUL, que convida quem quer. Tem sido um erro tremendo manter esse estatuto de excepção. P - Considera Santana Lopes pior presidente de Câmara que o seu antecessor, João Soares? R - João Soares era um homem de acção, que gostava de concretizar resultados, mas de má comunicação. O actual presidente é aquilo a que os franceses chamam "l'effect d'annonce": anuncia mais do que faz. Só que é preciso mostrar resultados, e é aí que as coisas falham. P - O que fez João Soares por Lisboa? R - Tanta coisa! Todo o programa de habitação social, espaços públicos, parques de estacionamento... P - Está a ser parcial, por ele ser seu camarada de partido. R - Sou muito independente nessas coisas. Questões como a do Casal Ventoso, onde ninguém tinha até aí conseguido entrar, são emblemáticas. P - Mas os toxicodependentes voltaram. R - Sim, mas ele teve a coragem de entrar por ali adentro. Isso ninguém lhe pode tirar. O actual presidente da câmara não está a conseguir resolver as coisas que prometeu, arranjou a trapalhada do Parque Mayer e está a deixar-se embalar pelo efeito de anúncio. P - O que devia ser feito no Parque Mayer? R - Um plano de pormenor. Até hoje poucos planos de pormenor avançaram em Lisboa. O caso de Alcântara é típico: está tudo aos gritos por causa da proposta de Siza Vieira [para a construção de torres] mas o que falta é um plano de pormenor. É isso que define a malha da cidade, mais do que o Plano Director Municipal, que só tem as linhas gerais. P - E que usos deve ter o Parque Mayer? R - Não podem ser muito diferentes daqueles que para lá estão propostos. O perigo é que aquilo é um vale e é a confluência de uma encosta. É uma zona extremamente frágil do ponto de vista físico e portanto qualquer intervenção tem de ser feita com pinças. O que me assusta nas primeiras propostas de ocupação daquele espaço - depois não vi as propostas de Frank Gehry - era a enorme quantidade de parques de estacionamento nesta zona de alta sensibilidade. Já escavámos demasiado a cidade, temos de ter cuidado. O casino, que levou tanta gente a radicalizar posições, não me chocava nada, desde que não fosse ali. P - E no Jardim do Tabaco, como agora está previsto? A administração portuária parece estar algo reticente. R - As administrações portuárias fazerem o que querem sem dar explicações a ninguém, é outro caso extraordinário. O território é todo o mesmo e depois arranjam-se estatutos de excepção para várias entidades administrativas dirigirem um espaço que é o mesmo. Isto faz-me impressão. É o mesmo chão, a mesma cidade, o mesmo rio. Não podemos ter cada bocadinho entregue a uma instituição que faz o que quer, sem prestar contas. P - Há algum tempo disse que se lavava muito dinheiro na construção civil. Nada mudou... R - Foi aprovada pela Assembleia da República a transposição de uma directiva comunitária sobre branqueamento de capitais e uma das áreas é a do imobiliário. O grande drama é que as entidades fiscalizadoras em Portugal estão completamente exauridas de meios. A Inspecção Geral da Administração do Território tem pouco mais de duas dezenas de técnicos para inspeccionar todas as autarquias do país. Temos de confiar todos na Virgem Maria. P - O que pensa da estatuária em Lisboa? R - As estátuas e as rotundas são a desgraça nacional. Ainda não consegui perceber de onde surgiu a moda das rotundas - se é um problema dos engenheiros de tráfego se da vaidade dos autarcas. Mas têm aparecido as peças mais estranhas em cima delas. Se calhar precisamos de educar o gosto. P - O que diria Sá Carneiro se voltasse cá e visse a sua nova estátua? R - Não sei se não morria outra vez. Neste campo acredito também na encomenda pública, mas têm que ser júris qualificados a julgar. O problema é que fica tudo ao gosto do autarca que encomenda, e às tantas o artista faz exactamente aquilo que ele gostaria de comprar. Temos uma cadeia toda viciada. Acho que há uma grande incultura visual e estética em Portugal. Tenho uma grande tristeza quando vou a cidades de outros países em que se aposta em coisas altamente inovadoras e depois chego a Portugal e há rotundas com porquinhos, e tourozinhos e pastorinhos. P - Os ministérios devem sair do Terreiro do Paço? R - Para pôr lá o quê? Esplanadas ali é uma invenção dos demónios, é aberrante, porque se há sítio desabrido e desagradável é este. A vocação do Terreiro do Paço é ser a sala de visitas de Lisboa, para grandes acontecimentos e festas. Nas arcadas devia haver utilização do espaço público. Agora tirar os ministérios para pôr hotéis de charme parece-me uma ideia mirífica. Vai-se dar cabo da arquitectura interior, daqueles pés-direitos? P - Continuando em Lisboa, o que se está a passar em Monsanto? R - Está a ser comido aos bocadinhos. A transferência da Feira Popular para lá é um risco enorme. Há usos que são incompatíveis com uma estrutura verde como aquela, pelo barulho que geram, pela quantidade de gente que atraem. P - No Porto, há quem diga que a reabilitação urbana parou por culpa dos arquitectos. R - A reabilitação tem de ser um processo integrado. Há uma reabilitação física do tecido urbano, uma reabilitação económica, social e ambiental e ainda a manutenção. Em processos como os da Ribeira investiu-se muito na física mas está para lá da competência dos arquitectos fazer o resto. Quando isso não acontece, os residentes não conseguem pagar os custos da reabilitação, e acabam por sair do local. Neste impasse, casas reabilitadas acabam por não ser ocupadas e começa a haver degradação antes de se entrar na fase da manutenção. O processo mais bem conseguido em Portugal a este nível é o do centro histórico de Guimarães: pequenas reabilitações, muita interacção com a população, maior aposta nos espaços públicos do que nas casas particulares, que foram reabilitadas depois destes. Com as novas Sociedades de Reabilitação Urbana podemos correr o risco de repetir cenas deste género, porque elas estão pensadas em termos somente físicos. P - E o caso do edifício Coutinho, em Viana do Castelo? R - É uma problema de mudança de gosto. A certa altura os edifícios altos significam progresso, 20 anos depois já se acha que não e manda-se abaixo. Até que ponto se justifica? P - Os seus colegas de partido que ocupam cargos de vereadores na Câmara de Lisboa têm sido alvo de algumas críticas suas. Porquê? R - Não estou de acordo com as intervenções deles. Falta ao PS uma estratégia clara para a cidade de Lisboa. É preciso ir mais longe. Falta liderança em Lisboa e tem de ser alguém com provas dadas. O PS vai ter de resolver isso depois do congresso e vou participar nessa decisão. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

Os sacerdotes do livro

O Índex

CONVERSA COM VISTA PARA... HELDER MACEDO

A vingança construtiva do filho dos Rosenberg

Jogadores de uma só perna

Aniversário

Inovações

Balcãs

As estátuas e as rotundas são a desgraça nacional Helena Roseta

Da política à arquitectura

"Navegar" à borla

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Cuidado, há um jardim em construção

Doenças sexualmente transmissíveis

GRATINADO DA HORTA

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O jogo da minha vida

CRÓNICAS

A prioridade vital da morte

DESAFIOS

REUNIÕES COM AS TRÊS TRIBOS

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