Espaço Público

03-07-2004
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%Helena Roseta

Quarta-feira, 16 de Junho de 2004 A vitória eleitoral do PS no passado dia 13 de Junho constitui uma responsabilidade histórica que não pode ser desperdiçada. Mérito do cabeça de lista, Sousa Franco, sem dúvida nenhuma. Mas mérito também, é inegável, do secretário- geral do PS. É minha convicção profunda que o actual problema do PS não é de liderança, é de aparelho. O seu modelo de organização, apesar de sucessivas reformas, continua excessivamente hierárquico e fechado. Os mesmos são sempre os mesmos. A maioria das pessoas que querem apoiar o PS não encontra modo de nele intervir. Na maioria das sedes, o debate democrático é escasso ou inexistente. As estruturas partidárias gastam demasiado tempo a discutir pessoas e lugares, em vez de debater ideias e propostas. Quem se atreve a discordar é muitas vezes maltratado. A imagem que damos é, na maior parte dos casos, a de um partido que só se mobiliza para elaborar listas ou para travar ferozes combates pelo poder interno. O exemplo degradante de Matosinhos não é, infelizmente, filho único. 2. Conheço alguns dos meandros que levam à tão criticada promiscuidade entre os partidos políticos e os negócios especulativos na área do imobiliário. Há razões que têm a ver com a falta de transparência de muitas decisões das autarquias relativamente a transformações do uso do solo, negociadas não se sabe como, das quais a opinião pública só se apercebe quando os factos estão consumados. Mas há também cumplicidades que são geradas muito mais cedo, através de compromissos criados em campanha eleitoral, muitas vezes não explícitos, mas que se traduzem em apoios financeiros a candidaturas partidárias. A lei do financiamento partidário e das campanhas eleitorais, aprovada em 2003, tenta pôr cobro a estes casos. Mas, para que a lei possa ter plena eficácia, é preciso que as estruturas partidárias sejam também reformadas. 3. Os estatutos do PS de 2003 estão muito aquém da lei de financiamento partidário. As responsabilidades financeiras são difusas e não pessoais, não estão previstas sanções em caso de incumprimento ou financiamentos proibidos, o controle pelas Comissões de Gestão estatutárias é escasso e pouco escrutinado por outros órgãos e pelos militantes em geral. Chegou a hora de o PS fazer uma profunda reforma interna em direcção à transparência e democraticidade do seu funcionamento, implicando uma separação de poderes, actualmente excessivamente concentrados nas estruturas intermédias, e uma clara abertura ao exterior. 4. Posso resumir os princípios chave dessa reforma nos seguintes pontos: - Quem tem o poder de decidir candidaturas não pode mexer em dinheiros; na prática, isto significa alterar as actuais competências das comissões políticas concelhias nestas matérias. O PS não pode correr o risco de ser surpreendido por "sacos azuis", negócios imobiliários, tráficos de influência ou outras manobras ilícitas levadas a cabo a qualquer nível. A actual concentração de poderes das concelhias facilita situações indesejáveis. Esta é uma questão a que não podemos fechar os olhos. Usarei uma metáfora que todos podem compreender. Mais importante do que andar atrás de ratos, é fechar as portas ao queijo. - O poder de decidir candidaturas não pode estar quase exclusivamente na mão de quem já é candidato; como é sabido, hoje é frequente que aqueles que detêm lugares nas estruturas intermédias se proponham a si próprios, fechando cada vez mais o partido para fora e caindo numa das piores características do estalinismo, que é precisamente a do domínio do partido pelo aparelho e da reprodução deste por si mesmo. - É preciso devolver às bases um maior poder de escrutínio e intervenção na vida partidária; os estatutos actuais do PS são, nalguns aspectos, menos democráticos que os de 1974; é preciso salvaguardar a possibilidade de os militantes de base poderem, a todo o tempo, por motivos ponderosos e desde que reúnam um certo número, desencadear reuniões dos órgãos deliberativos do partido, a nível local, concelhio, distrital e nacional. Actualmente só podem fazê-lo quanto à assembleia de militantes da sua secção. - É necessário repensar de alto a baixo o processo de selecção de candidatos, nomeadamente às autarquias. Tem de haver forma de qualquer militante ou simpatizante poder fazer chegar às estruturas partidárias propostas de candidatura, suportadas por currículos pessoais e cívicos. Deveriam formar-se comités eleitorais, incluindo pessoas não pertencentes a nenhum órgão partidário, para apreciar tais currículos. Se as candidaturas fossem por currículo e mérito, e não por fidelidades internas, como são hoje, deixava de ser necessária a quota para mulheres, por exemplo. Bastaria o mérito, desde que apreciado com independência. E decerto se promoveria uma renovação e refrescamento imprescindíveis na nossa vida política. 5. Dir-me-ão que estas propostas são utópicas. Ou que só são viáveis se se aplicarem a todos os partidos e não apenas ao PS. Respondo que a responsabilidade histórica está hoje do lado do PS. Ou se abre e muda, contribuindo para uma maior participação cívica e um maior reconhecimento dos cidadãos quanto aos seus valores e propostas, ou perde a oportunidade única que tem pela frente - as eleições autárquicas de 2005. Nesta perspectiva, é fundamental que o PS promova desde já uma profunda reflexão interna com vista a mudar as suas regras e comportamentos. E que Ferro Rodrigues anime essa reflexão, através de reuniões alargadas a militantes e simpatizantes em todo o país. É tempo de falar mais às pessoas do que às estruturas. É tempo de ouvir críticas, sugestões, propostas de mudança. É tempo de cortar o nó górdio que asfixia a vida partidária e pode contaminar a própria democracia. Deputada do PS OUTROS TÍTULOS EM ESPAÇO PÚBLICO EDITORIAL

Para que serve a barragem do Sabor?

OPINIÃO

As quotas na Medicina: contributos para uma discussão séria

O bolão

O sexto império

Mau perder

%Helena Roseta

Combate ao aparelho

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Quarta-feira, 16 de Junho de 2004 A vitória eleitoral do PS no passado dia 13 de Junho constitui uma responsabilidade histórica que não pode ser desperdiçada. Mérito do cabeça de lista, Sousa Franco, sem dúvida nenhuma. Mas mérito também, é inegável, do secretário- geral do PS. É minha convicção profunda que o actual problema do PS não é de liderança, é de aparelho. O seu modelo de organização, apesar de sucessivas reformas, continua excessivamente hierárquico e fechado. Os mesmos são sempre os mesmos. A maioria das pessoas que querem apoiar o PS não encontra modo de nele intervir. Na maioria das sedes, o debate democrático é escasso ou inexistente. As estruturas partidárias gastam demasiado tempo a discutir pessoas e lugares, em vez de debater ideias e propostas. Quem se atreve a discordar é muitas vezes maltratado. A imagem que damos é, na maior parte dos casos, a de um partido que só se mobiliza para elaborar listas ou para travar ferozes combates pelo poder interno. O exemplo degradante de Matosinhos não é, infelizmente, filho único. 2. Conheço alguns dos meandros que levam à tão criticada promiscuidade entre os partidos políticos e os negócios especulativos na área do imobiliário. Há razões que têm a ver com a falta de transparência de muitas decisões das autarquias relativamente a transformações do uso do solo, negociadas não se sabe como, das quais a opinião pública só se apercebe quando os factos estão consumados. Mas há também cumplicidades que são geradas muito mais cedo, através de compromissos criados em campanha eleitoral, muitas vezes não explícitos, mas que se traduzem em apoios financeiros a candidaturas partidárias. A lei do financiamento partidário e das campanhas eleitorais, aprovada em 2003, tenta pôr cobro a estes casos. Mas, para que a lei possa ter plena eficácia, é preciso que as estruturas partidárias sejam também reformadas. 3. Os estatutos do PS de 2003 estão muito aquém da lei de financiamento partidário. As responsabilidades financeiras são difusas e não pessoais, não estão previstas sanções em caso de incumprimento ou financiamentos proibidos, o controle pelas Comissões de Gestão estatutárias é escasso e pouco escrutinado por outros órgãos e pelos militantes em geral. Chegou a hora de o PS fazer uma profunda reforma interna em direcção à transparência e democraticidade do seu funcionamento, implicando uma separação de poderes, actualmente excessivamente concentrados nas estruturas intermédias, e uma clara abertura ao exterior. 4. Posso resumir os princípios chave dessa reforma nos seguintes pontos: - Quem tem o poder de decidir candidaturas não pode mexer em dinheiros; na prática, isto significa alterar as actuais competências das comissões políticas concelhias nestas matérias. O PS não pode correr o risco de ser surpreendido por "sacos azuis", negócios imobiliários, tráficos de influência ou outras manobras ilícitas levadas a cabo a qualquer nível. A actual concentração de poderes das concelhias facilita situações indesejáveis. Esta é uma questão a que não podemos fechar os olhos. Usarei uma metáfora que todos podem compreender. Mais importante do que andar atrás de ratos, é fechar as portas ao queijo. - O poder de decidir candidaturas não pode estar quase exclusivamente na mão de quem já é candidato; como é sabido, hoje é frequente que aqueles que detêm lugares nas estruturas intermédias se proponham a si próprios, fechando cada vez mais o partido para fora e caindo numa das piores características do estalinismo, que é precisamente a do domínio do partido pelo aparelho e da reprodução deste por si mesmo. - É preciso devolver às bases um maior poder de escrutínio e intervenção na vida partidária; os estatutos actuais do PS são, nalguns aspectos, menos democráticos que os de 1974; é preciso salvaguardar a possibilidade de os militantes de base poderem, a todo o tempo, por motivos ponderosos e desde que reúnam um certo número, desencadear reuniões dos órgãos deliberativos do partido, a nível local, concelhio, distrital e nacional. Actualmente só podem fazê-lo quanto à assembleia de militantes da sua secção. - É necessário repensar de alto a baixo o processo de selecção de candidatos, nomeadamente às autarquias. Tem de haver forma de qualquer militante ou simpatizante poder fazer chegar às estruturas partidárias propostas de candidatura, suportadas por currículos pessoais e cívicos. Deveriam formar-se comités eleitorais, incluindo pessoas não pertencentes a nenhum órgão partidário, para apreciar tais currículos. Se as candidaturas fossem por currículo e mérito, e não por fidelidades internas, como são hoje, deixava de ser necessária a quota para mulheres, por exemplo. Bastaria o mérito, desde que apreciado com independência. E decerto se promoveria uma renovação e refrescamento imprescindíveis na nossa vida política. 5. Dir-me-ão que estas propostas são utópicas. Ou que só são viáveis se se aplicarem a todos os partidos e não apenas ao PS. Respondo que a responsabilidade histórica está hoje do lado do PS. Ou se abre e muda, contribuindo para uma maior participação cívica e um maior reconhecimento dos cidadãos quanto aos seus valores e propostas, ou perde a oportunidade única que tem pela frente - as eleições autárquicas de 2005. Nesta perspectiva, é fundamental que o PS promova desde já uma profunda reflexão interna com vista a mudar as suas regras e comportamentos. E que Ferro Rodrigues anime essa reflexão, através de reuniões alargadas a militantes e simpatizantes em todo o país. É tempo de falar mais às pessoas do que às estruturas. É tempo de ouvir críticas, sugestões, propostas de mudança. É tempo de cortar o nó górdio que asfixia a vida partidária e pode contaminar a própria democracia. Deputada do PS OUTROS TÍTULOS EM ESPAÇO PÚBLICO EDITORIAL

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