Quem mandará na Europa?

14-12-2003
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Quem Mandará na Europa?

Por JOSÉ MANUEL FERNANDES

Sexta-feira, 12 de Dezembro de 2003 A cimeira europeia que hoje se inicia deverá dotar a União Europeia de um tratado constitucional. E, a não ser que na recta final das negociações surja um milagre, o resultado reflectirá o "diktat" da Alemanha e da França, dois países que nos últimos meses têm multiplicado iniciativas para fazer passar o recado de que não aceitarão o "desvirtuamento" do texto saído da Convenção. A ser assim, o melhor é que a cimeira se salde por um fracasso. Se nestes dois dias as diferentes vontades europeias que se opõem à arrogância franco-alemã não obrigarem estes dois países a aceitarem modificações importantes no texto saído da Convenção, isso será sinal de que Europa aceita o inaceitável: que dois países imponham a sua vontade sem olhar a meios. Hoje e no futuro, pois o projecto de tratado constitucional não faz mais do que reforçar o peso dos grandes e, entre os grandes, da França e da Alemanha. Ontem, num texto onde se alinhavam argumentos a favor da aprovação, sem condições de maior, do projecto de novo tratado, Álvaro de Vasconcelos, Guilherme de Oliveira Martins, José Luís da Cruz Vilaça e Vítor Martins escreviam que, "no imediato, a preservação e o reforço dos poderes da Comissão - guardiã do interesse comum da Comunidade - deverá, porém, constituir o necessário contrapeso ao poder dos grandes Estados". O que quer isto dizer? Que é efectivamente necessário um contrapeso ao poder dos grandes Estados. O que é que devemos perguntar? Se haverá ou não "preservação e reforço" dos poderes da Comissão. Ora a leitura do texto do projecto de tratado não permite, na minha opinião, retirar essa conclusão. Pelo contrário: figuras como a do presidente do conselho e uma Comissão com apenas 15 membros (o que faz com que muitos países fiquem de fora, mesmo que rotativamente) arriscam-se a fazer evoluir o centro do poder da Comissão para o conselho. Por outro lado, mesmo "preservando" os actuais poderes, é fácil verificar como a Alemanha e a França, dois dos poderosos, podem fazer deles gato-sapato: basta recordar o recente episódio da violação por esses dois países do Pacto de Estabilidade. O novo sistema de tomada da decisão - uma maioria de Estados correspondentes a 60 por cento da população - também reforça o poder dos grandes. No mesmo texto que já citei, os autores escreviam que "as decisões por maioria serão tomadas pela maioria dos Estados desde que representem 60 por cento da população (seria preferível a maioria da população, sem mais)". Sucede que é nesse "seria preferível" que está o busílis. Não para tomar decisões, já que aí será sempre necessária uma maioria de Estados, mas para as bloquear. Basta pensar que numa Europa a 25 haverá perto de 452 milhões de habitantes e que só a França e a Alemanha contam, em conjunto, mais de 142 milhões, perto de 32 por cento do total. Se se lhes juntar um outro "grande" (a Itália ou o Reino Unido) ou um "quase grande" (a Espanha ou a Polónia), forma-se um grupo de três países capazes de bloquearem uma decisão tomada pelos restantes 22 Estados. Não é uma perspectiva animadora, sobretudo se considerarmos que as possibilidades de bloqueio dos países "quatro grandes" mas periféricos diminuem fortemente. É por isso difícil subscrever a conclusão daqueles autores de que "esta solução é mais simples e equitativa que a complicada e desproporcionada fórmula de Nice". É efectivamente mais simples e até mais proporcionada, mas, ao estabelecer a regra dos 60 por cento, oferece aos grandes um poder de bloqueio excessivo. E isso não é equitativo. Muitas destas preocupações talvez não emergissem, se a França e a Alemanha não se tivessem comportado como se comportaram ao longo do último ano. Se Chirac não tivesse tratado os países do alargamento como tratou. Se Fischer não tivesse repetido frases ameaçadoras contra qualquer tentativa de modificação do projecto saído da Convenção. E se, recentemente, não se tivesse começado a falar, em Paris e Berlim, de uma união política entre os dois países. Tudo isso inquieta. E uma Europa comandada pelos senhores Chirac e Schroeder e posta ao seu serviço é, para mim, perspectiva bem mais assustadora do que Portugal perder um comissário, a nossa Constituição perder o primado face à Constituição europeia e muitos outros fantasmas que têm dominado o debate público. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE Constituição Europeia entre a crise e o adiamento

Sistema de votos, o tema explosivo

Portugal sem "linhas vermelhas"

PS e Governo em sintonia sobre projecto constitucional

Os protagonistas da nova Europa

EDITORIAL

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Sexta-feira, 12 de Dezembro de 2003 A cimeira europeia que hoje se inicia deverá dotar a União Europeia de um tratado constitucional. E, a não ser que na recta final das negociações surja um milagre, o resultado reflectirá o "diktat" da Alemanha e da França, dois países que nos últimos meses têm multiplicado iniciativas para fazer passar o recado de que não aceitarão o "desvirtuamento" do texto saído da Convenção. A ser assim, o melhor é que a cimeira se salde por um fracasso. Se nestes dois dias as diferentes vontades europeias que se opõem à arrogância franco-alemã não obrigarem estes dois países a aceitarem modificações importantes no texto saído da Convenção, isso será sinal de que Europa aceita o inaceitável: que dois países imponham a sua vontade sem olhar a meios. Hoje e no futuro, pois o projecto de tratado constitucional não faz mais do que reforçar o peso dos grandes e, entre os grandes, da França e da Alemanha. Ontem, num texto onde se alinhavam argumentos a favor da aprovação, sem condições de maior, do projecto de novo tratado, Álvaro de Vasconcelos, Guilherme de Oliveira Martins, José Luís da Cruz Vilaça e Vítor Martins escreviam que, "no imediato, a preservação e o reforço dos poderes da Comissão - guardiã do interesse comum da Comunidade - deverá, porém, constituir o necessário contrapeso ao poder dos grandes Estados". O que quer isto dizer? Que é efectivamente necessário um contrapeso ao poder dos grandes Estados. O que é que devemos perguntar? Se haverá ou não "preservação e reforço" dos poderes da Comissão. Ora a leitura do texto do projecto de tratado não permite, na minha opinião, retirar essa conclusão. Pelo contrário: figuras como a do presidente do conselho e uma Comissão com apenas 15 membros (o que faz com que muitos países fiquem de fora, mesmo que rotativamente) arriscam-se a fazer evoluir o centro do poder da Comissão para o conselho. Por outro lado, mesmo "preservando" os actuais poderes, é fácil verificar como a Alemanha e a França, dois dos poderosos, podem fazer deles gato-sapato: basta recordar o recente episódio da violação por esses dois países do Pacto de Estabilidade. O novo sistema de tomada da decisão - uma maioria de Estados correspondentes a 60 por cento da população - também reforça o poder dos grandes. No mesmo texto que já citei, os autores escreviam que "as decisões por maioria serão tomadas pela maioria dos Estados desde que representem 60 por cento da população (seria preferível a maioria da população, sem mais)". Sucede que é nesse "seria preferível" que está o busílis. Não para tomar decisões, já que aí será sempre necessária uma maioria de Estados, mas para as bloquear. Basta pensar que numa Europa a 25 haverá perto de 452 milhões de habitantes e que só a França e a Alemanha contam, em conjunto, mais de 142 milhões, perto de 32 por cento do total. Se se lhes juntar um outro "grande" (a Itália ou o Reino Unido) ou um "quase grande" (a Espanha ou a Polónia), forma-se um grupo de três países capazes de bloquearem uma decisão tomada pelos restantes 22 Estados. Não é uma perspectiva animadora, sobretudo se considerarmos que as possibilidades de bloqueio dos países "quatro grandes" mas periféricos diminuem fortemente. É por isso difícil subscrever a conclusão daqueles autores de que "esta solução é mais simples e equitativa que a complicada e desproporcionada fórmula de Nice". É efectivamente mais simples e até mais proporcionada, mas, ao estabelecer a regra dos 60 por cento, oferece aos grandes um poder de bloqueio excessivo. E isso não é equitativo. Muitas destas preocupações talvez não emergissem, se a França e a Alemanha não se tivessem comportado como se comportaram ao longo do último ano. Se Chirac não tivesse tratado os países do alargamento como tratou. Se Fischer não tivesse repetido frases ameaçadoras contra qualquer tentativa de modificação do projecto saído da Convenção. E se, recentemente, não se tivesse começado a falar, em Paris e Berlim, de uma união política entre os dois países. Tudo isso inquieta. E uma Europa comandada pelos senhores Chirac e Schroeder e posta ao seu serviço é, para mim, perspectiva bem mais assustadora do que Portugal perder um comissário, a nossa Constituição perder o primado face à Constituição europeia e muitos outros fantasmas que têm dominado o debate público. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE Constituição Europeia entre a crise e o adiamento

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