Uma viagem pela liberdade

25-12-2002
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Uma Viagem pela Liberdade

Sábado, 21 de Dezembro de 2002

%António Marujo

A pergunta e a resposta que ficam após a leitura desta obra, guardou-as Hans Küng para o fim: "Como se explica que nem os imperadores pagãos, nem os 'ditadores cristãos', nem os papas ávidos de poder, nem os inquisidores sinistros, nem os bispos mundanos, nem os teólogos fanáticos hajam logrado extinguir este espírito?" Mistério do cristianismo: "O que é extraordinário é que o espírito do Nazareno conseguiu sempre romper, apesar das falhas das pessoas, das instituições e das constituições, desde que os fiéis já não se contentavam com palavras e se punham a segui-lo de uma maneira muito prática. A verdade do cristianismo não é apenas verdade para conhecer, mas verdade que faz viver." (p. 732)

Espécie de segundo tomo de uma obra que pretende fazer a síntese dos três monoteísmos - depois de publicado "O Judaísmo" (ed. espanhola na Trotta) e antes da obra sobre o islão -, o teólogo alemão faz aqui um longo percurso por toda a história de vinte séculos de cristianismo. O próprio autor diz que a obra pretende sintetizar duas dimensões, "a da história e a da teologia sistemática", mas não é exagerado acrescentar que a "narrativa cronológica" e a "análise e discussão objectivas" se cruzam com a sociologia, a história das ideias ou a filosofia. Num percurso que resume todo ele o percurso individual de décadas de investigação do autor e que toma cinco paradigmas fundamentais: paradigma judeo-apocalíptico do cristianismo primitivo, ecuménico helenístico da antiguidade cristã, católico romano medieval, protestante evangélico da Reforma e paradigma da modernidade - fé na razão e no progresso.

A obra e o projecto em que ela se insere são ainda um passo mais na ideia central que Küng tem acarinhado nos últimos anos: o serviço das religiões para a formulação de uma nova ética mundial, baseada nos direitos humanos e na paz. Essa ideia é servida no livro também por um conjunto de perguntas feitas, a propósito de cada tema, às três religiões do monoteísmo. A viagem de "O Cristianismo" leva-nos a parar na actualidade que já antecipa o futuro: o paradigma ecuménico, que assume as atitudes fundamentais ortodoxa (verdade transmitida pela tradição de toda a Igreja), católica (continuidade da fé e da sua universalidade no espaço) e reformadora (retorno constante ao Evangelho). Uma perspectiva que reclama o que de melhor guardou cada uma das principais tradições cristãs. Até porque, como verifica o teólogo desde o início, o que hoje existe, "em lugar da substância cristã", é "o sistema romano, o fundamentalismo protestante ou o tradicionalismo ortodoxo", os quais não passam de "manifestações históricas do cristianismo".

Estas expressões concretas - que "nem sempre existiram e hão-de desaparecer um dia", pois "não pertencem à essência da realidade cristã" (8) - são o ponto de partida para a longa viagem de Küng pelos cinco paradigmas. Uma viagem que não toma o cristianismo como um conjunto de histórias criminais, "tão insípidas quanto os mais enfáticos 'hinos à Igreja'", mas se situa entre a sua imagem ideal e a imagem hostil, sem ignorar os "inúmeros desvarios e um sem-fim de desordens" (19).

Nessa viagem, Küng fala do cristianismo do primeiro paradigma como uma Igreja democrática, onde não há sacerdotes a oferecer sacrifícios, e que influencia o próprio nascimento do islão. A transformação no paradigma ecuménico helenístico da antiguidade cristã leva à institucionalização, mas assume a pluralidade. O teólogo diz que está no Oriente europeu a forma de cristianismo "mais próxima das origens" (268), uma ideia arrojada para quem admite logo a seguir que essa mesma forma enfrenta os riscos do liturgismo e da Igreja de Estado, afinal os dois maiores obstáculos a que as Igrejas ortodoxas se aproximem da modernidade.

Aponta depois os limites do paradigma católico romano medieval, que começa em Agostinho de Hipona e se acentua com a pretensão do bispo de Roma à primazia entre os bispos. Küng sossega alguns bons espíritos católicos, propondo não a abolição do papado, mas a sua reforma e sugere a exigência de Francisco de Assis como uma representação de "um vigoroso questionamento do sistema romano centralizado", válido ainda hoje. Lutero inicia com a Reforma protestante um novo paradigma, mas é Calvino quem faz do movimento uma potência mundial, que também já integra correntes fundamentalistas. Finalmente, no paradigma da modernidade: fé na razão e no progresso - o teólogo recorda as sucessivas querelas do cristianismo com as revoluções sociais, políticas, tecnológicas, industriais e científicas.

Em todo o trajecto está sempre presente a procura da essência. E essa vai Küng buscá-la à origem: "Nada mais se nos depara a não ser uma pessoa. Em tal pessoa e só nela, dispomos do centro permanente e sólido do cristianismo; partindo desta pessoa e só dela poderemos responder à questão da essência do cristianismo." (32) "O nome de Jesus, reconhecido ao longo dos séculos como o profeta e o enviado de Deus (...), é o tema original que nunca se perdeu completamente na tradição, na liturgia, na teologia e na piedade cristãs, mesmo nos piores momentos de decadência" (40-41).

Jesus, para Küng, é um judeu que se manifesta contra a violência, o legalismo e o ascetismo, e que não se afirma como condutor do povo como Moisés, como mestre moral à semelhança de Confúcio, como chefe de exército na esteira de Maomé ou como protótipo do iluminado como o foi Buda.

Sem nunca deixar de se afirmar cristão, Hans Küng faz, nesta viagem, um percurso fundamental - e indispensável - pela liberdade e contra a ignorância ou os dogmatismos.

Uma Viagem pela Liberdade

Sábado, 21 de Dezembro de 2002

%António Marujo

A pergunta e a resposta que ficam após a leitura desta obra, guardou-as Hans Küng para o fim: "Como se explica que nem os imperadores pagãos, nem os 'ditadores cristãos', nem os papas ávidos de poder, nem os inquisidores sinistros, nem os bispos mundanos, nem os teólogos fanáticos hajam logrado extinguir este espírito?" Mistério do cristianismo: "O que é extraordinário é que o espírito do Nazareno conseguiu sempre romper, apesar das falhas das pessoas, das instituições e das constituições, desde que os fiéis já não se contentavam com palavras e se punham a segui-lo de uma maneira muito prática. A verdade do cristianismo não é apenas verdade para conhecer, mas verdade que faz viver." (p. 732)

Espécie de segundo tomo de uma obra que pretende fazer a síntese dos três monoteísmos - depois de publicado "O Judaísmo" (ed. espanhola na Trotta) e antes da obra sobre o islão -, o teólogo alemão faz aqui um longo percurso por toda a história de vinte séculos de cristianismo. O próprio autor diz que a obra pretende sintetizar duas dimensões, "a da história e a da teologia sistemática", mas não é exagerado acrescentar que a "narrativa cronológica" e a "análise e discussão objectivas" se cruzam com a sociologia, a história das ideias ou a filosofia. Num percurso que resume todo ele o percurso individual de décadas de investigação do autor e que toma cinco paradigmas fundamentais: paradigma judeo-apocalíptico do cristianismo primitivo, ecuménico helenístico da antiguidade cristã, católico romano medieval, protestante evangélico da Reforma e paradigma da modernidade - fé na razão e no progresso.

A obra e o projecto em que ela se insere são ainda um passo mais na ideia central que Küng tem acarinhado nos últimos anos: o serviço das religiões para a formulação de uma nova ética mundial, baseada nos direitos humanos e na paz. Essa ideia é servida no livro também por um conjunto de perguntas feitas, a propósito de cada tema, às três religiões do monoteísmo. A viagem de "O Cristianismo" leva-nos a parar na actualidade que já antecipa o futuro: o paradigma ecuménico, que assume as atitudes fundamentais ortodoxa (verdade transmitida pela tradição de toda a Igreja), católica (continuidade da fé e da sua universalidade no espaço) e reformadora (retorno constante ao Evangelho). Uma perspectiva que reclama o que de melhor guardou cada uma das principais tradições cristãs. Até porque, como verifica o teólogo desde o início, o que hoje existe, "em lugar da substância cristã", é "o sistema romano, o fundamentalismo protestante ou o tradicionalismo ortodoxo", os quais não passam de "manifestações históricas do cristianismo".

Estas expressões concretas - que "nem sempre existiram e hão-de desaparecer um dia", pois "não pertencem à essência da realidade cristã" (8) - são o ponto de partida para a longa viagem de Küng pelos cinco paradigmas. Uma viagem que não toma o cristianismo como um conjunto de histórias criminais, "tão insípidas quanto os mais enfáticos 'hinos à Igreja'", mas se situa entre a sua imagem ideal e a imagem hostil, sem ignorar os "inúmeros desvarios e um sem-fim de desordens" (19).

Nessa viagem, Küng fala do cristianismo do primeiro paradigma como uma Igreja democrática, onde não há sacerdotes a oferecer sacrifícios, e que influencia o próprio nascimento do islão. A transformação no paradigma ecuménico helenístico da antiguidade cristã leva à institucionalização, mas assume a pluralidade. O teólogo diz que está no Oriente europeu a forma de cristianismo "mais próxima das origens" (268), uma ideia arrojada para quem admite logo a seguir que essa mesma forma enfrenta os riscos do liturgismo e da Igreja de Estado, afinal os dois maiores obstáculos a que as Igrejas ortodoxas se aproximem da modernidade.

Aponta depois os limites do paradigma católico romano medieval, que começa em Agostinho de Hipona e se acentua com a pretensão do bispo de Roma à primazia entre os bispos. Küng sossega alguns bons espíritos católicos, propondo não a abolição do papado, mas a sua reforma e sugere a exigência de Francisco de Assis como uma representação de "um vigoroso questionamento do sistema romano centralizado", válido ainda hoje. Lutero inicia com a Reforma protestante um novo paradigma, mas é Calvino quem faz do movimento uma potência mundial, que também já integra correntes fundamentalistas. Finalmente, no paradigma da modernidade: fé na razão e no progresso - o teólogo recorda as sucessivas querelas do cristianismo com as revoluções sociais, políticas, tecnológicas, industriais e científicas.

Em todo o trajecto está sempre presente a procura da essência. E essa vai Küng buscá-la à origem: "Nada mais se nos depara a não ser uma pessoa. Em tal pessoa e só nela, dispomos do centro permanente e sólido do cristianismo; partindo desta pessoa e só dela poderemos responder à questão da essência do cristianismo." (32) "O nome de Jesus, reconhecido ao longo dos séculos como o profeta e o enviado de Deus (...), é o tema original que nunca se perdeu completamente na tradição, na liturgia, na teologia e na piedade cristãs, mesmo nos piores momentos de decadência" (40-41).

Jesus, para Küng, é um judeu que se manifesta contra a violência, o legalismo e o ascetismo, e que não se afirma como condutor do povo como Moisés, como mestre moral à semelhança de Confúcio, como chefe de exército na esteira de Maomé ou como protótipo do iluminado como o foi Buda.

Sem nunca deixar de se afirmar cristão, Hans Küng faz, nesta viagem, um percurso fundamental - e indispensável - pela liberdade e contra a ignorância ou os dogmatismos.

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