Mestres, perseguidos e mártires

26-12-2002
marcar artigo

Mestres, Perseguidos e Mártires

Sábado, 21 de Dezembro de 2002

%António Marujo

Se a história do cristianismo está cheia de sombras e algozes, também nela pululam mártires, mestres e heróis. Mas a herança de vinte séculos tende, muitas vezes, a esquecer os vultos que criaram raízes do que hoje somos. Muitos deles afirmaram-se no campo da espiritualidade: a partir da sua relação com Deus, forjaram sínteses culturais e propostas de vida que influencia(ra)m modos de ser e de viver. "Dois Mil Anos: Vidas e Percursos" tenta recordar alguns desses nomes.

Desde logo o rosto do homem - Jesus Cristo - cuja fé e modo de se relacionar com Deus, há dois milénios, na Judeia, mudou a vida de um punhado de mulheres e homens e, através deles, influenciou o devir do mundo e muitas outras vidas. Entre elas estão as de Francisco de Assis (tratado por Cerqueira Gonçalves), um dos que melhor terá entendido a radicalidade cristã e proposto uma revolução ecológica antes do tempo, ou as de mulheres como Catarina de Sena e Edith Stein, Teresa de Jesus ou Teresa de Lisieux (Carlos Silva). Todas elas, separadas por seis séculos de diferença e contextos culturais e religiosos diversos, apreenderam e transmitiram a inteligência da fé ou a possibilidade do amor como força transformadora da realidade.

Também as vidas do reformador Lutero, cuja verdadeira dimensão é ainda desconhecida por tantos (Jerosch Herold), do missionário João de Brito que se assumiu como indiano (Nuno Gonçalves) ou dos papas João XXIII e Paulo VI e do seu arrojo de concretizar - não sem sofrimentos e contrariedades - o Concílio Vaticano II (Manuel Clemente) são aqui retomadas.

De gente que sofreu fisicamente tratam indirectamente outros dois livros: "Enigma Pombal" e "Monita Secreta - História de Um Manual Conspiracionista" remetem para as perseguições aos jesuítas e a eles o PÚBLICO já se referiu por ocasião do seu aparecimento (ver edições de 10 e 20 de Novembro). O primeiro tenta conhecer melhor o enigma por trás de Sebastião José de Carvalho e Melo, que decidiu expulsar os jesuítas de Portugal. A obra é mais um passo na investigação que o autor, António Lopes, vem fazendo há mais de uma década, em torno da figura do Marquês de Pombal, e acrescenta novos dados, preciosos, ao conhecimento que se tem. Já "Monita Secreta" traz à luz do dia e contextualiza um dos manuais usados contra a Companhia de Jesus, forjado por um antigo jesuíta. A ideia do autor, o polaco Jerôme Zahorowski, era apresentar um conjunto de instruções supostamente traçadas pelos superiores jesuítas para a conquista do poder e do dinheiro. O manual mistura práticas usuais com autênticos disparates; apesar disso, acabou por se tornar um libelo do antijesuitismo, cujo percurso, José Eduardo Franco e Christine Vogel, retratam na imprescindível introdução.

Impressionante é o levantamento feito por Andrea Riccardi. O presidente da Comunidade de Santo Egídio foi ao arquivo da Comissão Novos Mártires, formada no Vaticano antes do ano 2000 e escreveu "O Século do Martírio", onde retrata a violência que, ao longo do século XX, foi sofrida pelos cristãos. Não há zona do mundo que escape: desde as perseguições que atravessam o "século soviético" até aos recentes massacres de cristãos na Índia, Indonésia e Paquistão, passando pela Europa de Hitler, pelos países da Cortina de Ferro comunista, pela China e pelos comunismos asiáticos, pelos países em que o cristianismo é minoritário, pelas perseguições estatais (México e Espanha) ou pelos martírios das últimas décadas em África. Não faltam referências à África lusófona e a Timor Leste, aos bispos latino-americanos ou ao caso das mulheres, bem como aos mortos por causa do seu serviço aos pobres e doentes ou pelo seu combate pela justiça, contra as mafias ou o terrorismo.

Riccardi não toma partido, antes se limitando a contar as histórias dos diferentes martírios de cristãos (católicos, evangélicos, protestantes, ortodoxos) e enumerando os casos individuais e colectivos. Diz que se podem contabilizar talvez três milhões de pessoas que, apenas por terem fé, foram mortas durante o século XX (só bispos ortodoxos na Rússia terão sido cerca de 300, num total de pelo menos meio milhão de pessoas). São histórias que, para lá da cegueira ideológica ou religiosa dos lados envolvidos, demonstram o absurdo de qualquer perseguição e acrescentam mais um capítulo à violência que deixou marcas decisivas no século XX.

Mestres, Perseguidos e Mártires

Sábado, 21 de Dezembro de 2002

%António Marujo

Se a história do cristianismo está cheia de sombras e algozes, também nela pululam mártires, mestres e heróis. Mas a herança de vinte séculos tende, muitas vezes, a esquecer os vultos que criaram raízes do que hoje somos. Muitos deles afirmaram-se no campo da espiritualidade: a partir da sua relação com Deus, forjaram sínteses culturais e propostas de vida que influencia(ra)m modos de ser e de viver. "Dois Mil Anos: Vidas e Percursos" tenta recordar alguns desses nomes.

Desde logo o rosto do homem - Jesus Cristo - cuja fé e modo de se relacionar com Deus, há dois milénios, na Judeia, mudou a vida de um punhado de mulheres e homens e, através deles, influenciou o devir do mundo e muitas outras vidas. Entre elas estão as de Francisco de Assis (tratado por Cerqueira Gonçalves), um dos que melhor terá entendido a radicalidade cristã e proposto uma revolução ecológica antes do tempo, ou as de mulheres como Catarina de Sena e Edith Stein, Teresa de Jesus ou Teresa de Lisieux (Carlos Silva). Todas elas, separadas por seis séculos de diferença e contextos culturais e religiosos diversos, apreenderam e transmitiram a inteligência da fé ou a possibilidade do amor como força transformadora da realidade.

Também as vidas do reformador Lutero, cuja verdadeira dimensão é ainda desconhecida por tantos (Jerosch Herold), do missionário João de Brito que se assumiu como indiano (Nuno Gonçalves) ou dos papas João XXIII e Paulo VI e do seu arrojo de concretizar - não sem sofrimentos e contrariedades - o Concílio Vaticano II (Manuel Clemente) são aqui retomadas.

De gente que sofreu fisicamente tratam indirectamente outros dois livros: "Enigma Pombal" e "Monita Secreta - História de Um Manual Conspiracionista" remetem para as perseguições aos jesuítas e a eles o PÚBLICO já se referiu por ocasião do seu aparecimento (ver edições de 10 e 20 de Novembro). O primeiro tenta conhecer melhor o enigma por trás de Sebastião José de Carvalho e Melo, que decidiu expulsar os jesuítas de Portugal. A obra é mais um passo na investigação que o autor, António Lopes, vem fazendo há mais de uma década, em torno da figura do Marquês de Pombal, e acrescenta novos dados, preciosos, ao conhecimento que se tem. Já "Monita Secreta" traz à luz do dia e contextualiza um dos manuais usados contra a Companhia de Jesus, forjado por um antigo jesuíta. A ideia do autor, o polaco Jerôme Zahorowski, era apresentar um conjunto de instruções supostamente traçadas pelos superiores jesuítas para a conquista do poder e do dinheiro. O manual mistura práticas usuais com autênticos disparates; apesar disso, acabou por se tornar um libelo do antijesuitismo, cujo percurso, José Eduardo Franco e Christine Vogel, retratam na imprescindível introdução.

Impressionante é o levantamento feito por Andrea Riccardi. O presidente da Comunidade de Santo Egídio foi ao arquivo da Comissão Novos Mártires, formada no Vaticano antes do ano 2000 e escreveu "O Século do Martírio", onde retrata a violência que, ao longo do século XX, foi sofrida pelos cristãos. Não há zona do mundo que escape: desde as perseguições que atravessam o "século soviético" até aos recentes massacres de cristãos na Índia, Indonésia e Paquistão, passando pela Europa de Hitler, pelos países da Cortina de Ferro comunista, pela China e pelos comunismos asiáticos, pelos países em que o cristianismo é minoritário, pelas perseguições estatais (México e Espanha) ou pelos martírios das últimas décadas em África. Não faltam referências à África lusófona e a Timor Leste, aos bispos latino-americanos ou ao caso das mulheres, bem como aos mortos por causa do seu serviço aos pobres e doentes ou pelo seu combate pela justiça, contra as mafias ou o terrorismo.

Riccardi não toma partido, antes se limitando a contar as histórias dos diferentes martírios de cristãos (católicos, evangélicos, protestantes, ortodoxos) e enumerando os casos individuais e colectivos. Diz que se podem contabilizar talvez três milhões de pessoas que, apenas por terem fé, foram mortas durante o século XX (só bispos ortodoxos na Rússia terão sido cerca de 300, num total de pelo menos meio milhão de pessoas). São histórias que, para lá da cegueira ideológica ou religiosa dos lados envolvidos, demonstram o absurdo de qualquer perseguição e acrescentam mais um capítulo à violência que deixou marcas decisivas no século XX.

marcar artigo