Publico.pt

19-12-2002
marcar artigo

A direita não queria aquele 25 de Novembro Público - O dia 25 de Novembro foi decisivo para si? Sentiu que a sua vida podia mudar naquele dia?

Ramalho Eanes - Não equacionei a situação em termos pessoais, mas de país e o país estava numa bifurcação e era crucial para ele seguir uma ou outra via.

P. - Havia toda uma operação preparada...

R. - Havia, mas o planeamento fora feito um pouco teoricamente. A acção realiza-se num contexto concreto, em que muito do planeado não é executado e em que há que executar muito daquilo que não se previa, para que a acção responda à realidade do momento.

P. -Quando saiu de casa de manhã, naquele dia, pensou então que podia não regressar, eventualmente?

R. - No Verão dito "quente", isso passou a ser quase uma rotina - saía-se de casa e não se sabia o que ia acontecer. Eu trazia permanentemente no carro um saco com duas ou três mudas de roupa, um par de camuflados. Admitia que a qualquer altura houvesse uma situação que implicasse que não se voltasse a casa.

P. - Mas, naquele dia, desencadeava-se algo que se esperava há alguns meses, não era uma surpresa.

R. - Era aquilo que se admitia que pudesse acontecer, era a situação mais provável.

P. - Lembra-se de ter pensado "hoje é que é"?

R. - Quando me disseram de manhã que os pára-quedistas tinham ocupado as bases, quem tinha conhecimento da situação político-militar sabia que a partir dali se entrara num caminho irreversível.

P. - Acrescentou às duas mudas de roupa mais algumas?

R. - Não, acrescentei duas granadas de mão ofensivas.

P. - E como se despediu da sua mulher?

R. - Despedi-me como se nada se passasse. Nas alturas dramáticas, temos que desdramatizar.

P. - Pensou que podia não voltar a casa?

R. - Sim, admiti essa hipótese.

P. - E nos meses anteriores, em que tinha começado a conspirar?

R. - O que é dramático não é a acção, é a preparação para a acção, a incerteza da evolução da situação, porque cria uma grande tensão, há uma subjectividade perversa, dependente do nosso estado de espírito. Há dias em que temos tendência para dramatizar os novos dados, para vermos as coisas com cores mais carregadas. Dramáticos foram os meses que precederam o 25 de Novembro. Aquele dia era um pouco, mal comparado, aquilo que acontecia na guerra. Pensa-se "há-de ser o que Deus quiser", e nessa altura a tensão desce bastante e adquire-se uma certa calma, uma grande calma mesmo.

P. - Naqueles meses em que participou mais activamente na preparação do esquema militar para o 25 de Novembro, algum dia sentiu que podia perder a liberdade, ser preso? E sobretudo sentiu que podia ser instaurado em Portugal um regime socialista do tipo soviético?

R. - Para mim, não é aí que se centra o problema. O grande problema era o seguinte: os militares prepararam o 25 de Abril e tinham toda a liberdade moral e política para fazer uma de duas coisas: estabelecer uma ditadura limitada temporalmente, indiscutivelmente limitada, dinamizar a sociedade civil, tentar evitar que se repetissem os erros de colonização política que sempre ocorreram no tempo das ditas "democracias partidárias" ou das ditaduras. Ou então entregar o poder à sociedade e esta que o usasse, livremente.

Se se fizesse a primeira coisa, nem sequer seria uma inovação, já fora feito na Turquia - é verdade que aí foi preciso transformar um regime quase religioso num regime laico. Aqui era preciso desmontar uma longa ditadura, transformar uma sociedade que aceitou passivamente essa ditadura durante muito tempo, que foi menorizada por ela, para que ela pudesse ter uma relação diferente, harmoniosa, mas de sentido reivindicativo com o poder político. Os militares optaram pela segunda via, através de um programa, de um compromisso com a população: entregavam o poder à sociedade civil e esta que decidisse.

Mas os militares não podem, por razões de ética deontológica, atraiçoar as promessas que fazem à população, sobretudo em democracia, porque a população não só paga as armas, como lhas entrega, o que representa uma manifestação de confiança inteira. Essa opção foi traduzida num contrato, o programa do MFA. À legitimidade revolucionária oferecem-se duas vias: a que se traduz na introdução de modificações profundas na sociedade, e isso podia ter-se conseguido numa situação ditatorial; e aquela que só se chama "revolucionária", porque não há outro nome - ou seja, quando se faz e se diz um movimento em que a população vai fazer as modificações que quiser, por via eleitoral, não há bem uma legitimidade revolucionária, mas já uma legitimidade contratual. Era este sentimento deontológico de obrigação, de honra e lealdade que unia os militares do MFA e que leva as Forças Armadas a encontrar o seu povo.

P. - Mas quando é que esse contrato foi quebrado?

R. - Foi quebrado por razões que se prendem com a evolução da situação. Aquilo que se devia ter feito imediatamente era reconstituir o aparelho militar - afastando os restauracionistas, custasse o que custasse, porque eram obviamente um perigo. Reinstitucionalizar portanto o aparelho militar, fazendo com que ele se reconduzisse à sua ideologia formal, própria e indispensável em todas as Forças Armadas (como diz Eduardo Lourenço). Essa ideologia formal é disciplina-unidade-hierarquia. Não há forças armadas democráticas e antidemocráticas. Há forças armadas que servem regimes democráticos ou que suportam ditaduras. A instituição militar exige que os militares assumam responsabilidades que lhe foram atribuídas pelo povo ou pelo poder que legitimamente o representa. Devia-se ter tido isso em conta e não se teve. Houve desde logo uma grande contradição não superada, aceite à boa maneira portuguesa, pantanosa, de conflito com o general Spínola. Esse conflito fez com que nem o general Spínola, nem o MFA, nem ninguém comandasse as Forças Armadas. E isso fez com que a instituição militar não fosse capaz de respeitar o compromisso, a promessa que o MFA fizera ao povo. As portas de armas perderam a guarda, passaram a ser avenidas por onde entraram os partidos que criaram nas Forças Armadas os seus grupos. Aliás, isto já tinha acontecido na I República. A partir daí, não há forças armadas - há um conjunto de grupos militares que estão aliados às diferentes forças políticas.

Comecei a conspirar a seguir ao 11 de Março P. - Quando é que teve essa noção clara. Depois do 11 de Março?

R. - Não, antes do 11 de Março. Tive a noção clara de que as coisas não iam andar a partir do 28 de Setembro, quando o Spínola se demite.

P. - Mas ainda foi para a televisão...

R. - Sim, todos nós pensámos que havia ainda possibilidade de endireitar as coisas, de superar esse conflito que existia na instituição militar. Não aconteceu assim. A população, que tinha confiado nos militares, começou a afastar-se deles, passando a ver no mercado político uma oferta de diferentes legitimidades e cada uma delas com a sua componente militar. A população entendeu e muito bem que, se a única legitimidade era a que resultava desse contrato entre o MFA e a população, e se esse contrato caducara, não havia legitimidade nenhuma. E entendeu que todas as legitimidades tinham uma certa razoabilidade. A razoabilidade das legitimidades em discussão era subjectiva, cada um pensava, possivelmente, o melhor que podia para o país. O único projecto revolucionário consistente era o do PCP.

P. - Depois da derrota do general Spínola, no 11 de Março, houve uma manifestação de adesão ao MFA que foi de norte a sul, parecia que as pessoas se encontravam com aquela solução. Não teve dúvidas disso, pois não?

R. - As pessoas estavam tão ávidas de encontrar o caminho, a solução democrática, o caminho de liberdade em que seriam ouvidas, que elas próprias se pretenderam convencer de que chegara o momento da clarificação. Mas foi um engano. O 11 de Março não é ainda a clarificação - é o afastamento de um dos contendores.

P. - Quando começou a conspirar?

R. - Depois de sair da RTP, a seguir ao 11 de Março.

P. - O papel de destaque que assumiu no 25 de Novembro contrasta com aquilo que aconteceu no 25 de Abril, em que não participou, tal como não participou no 11 de Março.

R. - Comecei a participar na preparação do 25 de Abril. Fui mobilizado para Angola. Acabei por ir em Janeiro. Mas não tive dúvidas a partir de certa altura de que iria para lá antes de eclodir o movimento. Temos que ser muito sérios, quando empenhados em acções que implicam a vida dos outros, e, a partir da altura em que fui mobilizado, disse aos meus camaradas que deixava de participar. Participar é actuar, é marcar um tempo, e, no caso vertente, um tempo em que eu já não ia arriscar.

Em Angola tive contactos com os meus camaradas que estavam a preparar o 25 de Abril. Depois fui para o Norte e vim logo a seguir, porque estava previsto pelo próprio MFA que Firmino Miguel ficaria a dirigir o Exército, seria uma espécie de ministro do exército, e eu ficaria com ele como uma espécie de secretário de Estado. No 11 de Março eu estava na televisão e quem está na televisão, sobretudo num tempo daqueles, não tem tempo para nada. A televisão era tão exigente, era como que uma caixa de ressonância da actividade política. Era necessário dedicar-lhe não oito horas mas mais do que uma dezena de horas por dia.

P. - A televisão, nessa época, não era um instrumento da actividade política?

R. - Era e houve problemas graves, nomeadamente com o meu camarada Vasco Gonçalves. Disse a certa altura ao ministro com quem eu despachava semanalmente, Vítor Alves, que tinha a tutela da área, que não havia possibilidade de fazer funcionar a televisão com duas direcções: uma administração formal, a minha, e a do conselho consultivo, onde estavam representados os partidos políticos e o MFA (entendo que até seria bom que existisse agora, mas naquele tempo não). Os únicos homens que estavam ali todos os dias eram os representantes do PCP e alguns militares. Os outros iam de vez em quando. Acabou por não resultar.

Como era uma altura muito complicada, em que em boa verdade não havia legitimidade nenhuma operacional, os partidos, designadamente o PCP, pretenderam com a legitimidade utilizar a RTP, que era extremamente importante. Por isso, a certa altura disse ao general Vasco Gonçalves que assim não: ou aquela comissão, ou eu. Ele aceitou que a comissão fosse extinta, mas pretendeu que ficassem lá alguns elementos, o que não aconteceu, dada a minha discordância.

Melo Antunes quis a terceira via para Portugal P. - Quando acordou para a política?

R. - Muito tempo antes, ainda na Academia Militar, escrevi para a revista "Proelium". Se fosse hoje, teria tido provavelmente a instituição militar em cima de mim. Eu dizia qual a relação do militar com o Estado. Que o militar devia respeitar o Estado enquanto o Estado respeitasse a sociedade. Mas, quando isso deixasse de acontecer, o militar tinha um problema de consciência que tinha que resolver. Escrevi esse artigo, em 1970, e não me aconteceu nada. Depois houve o congresso dos combatentes. Com outros camaradas, disse que não era admissível que o poder manipulasse os combatentes através de um congresso.

Eu não era um homem com uma grande formação política, mas tinha alguma, como todos os militares da minha geração. Tínhamos participado numa guerra subversiva, que são guerras político-militares. Não havia militar nenhum naquele tempo que não tivesse lido Mao Tsetung, muitos trabalhos do Ho Chi Min, do Giap, e a bibliografia sobre guerra subversiva publicada pelos franceses que era extensíssima. Não era uma formação política completa, mas no MFA, na área a que eu pertencia, o único militar com formação política era Melo Antunes, que chegou a pugnar por uma terceira via socialista. Via que não é a do Blair, que é um caminho entre o socialismo científico, real, do Brejnev, e o socialismo estatalmente administrado, que era a social-democracia, que faliram. E ainda por cima era uma terceira via que muito tinha a ver com a harmonização da igualdade e liberdade e com a doutrina social da Igreja, não com as chamadas "democracias-cristãs".

Melo Antunes era o único homem que entendia que um país atrasado como o nosso não podia ir para o socialismo real, porque aí em nome da igualdade mata-se a liberdade. Mas também não podia seguir a social-democracia, porque não tinha sindicatos organizados com força suficiente, empresários em número e com força suficiente e, sobretudo, porque não tinha riqueza para distribuir. Era preciso avançar numa outra via, na via de um socialismo original. É evidente que ele nunca teorizou muito sobre isso. A verdade é que as preocupações de Melo Antunes aparecem hoje teorizadas, desenvolvidas, fundamentadas. Entre nós, ele era o único com uma bagagem política grande e eventualmente com um projecto original, de liberdade e igualdade. Quando se devolve a liberdade a alguém, mesmo que seja a uma comunidade, ela vai ter dificuldades em usá-la capazmente, porque é necessária uma certa aprendizagem. Melo Antunes tinha da situação nacional essa percepção clara.

A minha percepção é de que a instituição militar é uma instituição séria, mas que pode ser manipulada, como demonstrou o regime de Salazar. Só que, nessa época, a instituição militar sentia-se poderosa, necessária, indispensável, porque havia um império a defender e, sempre que houve impérios, houve uma presença real, significativa, da instituição militar na política.

Partidos tomaram de assalto o poder militar P. - Não acha que o primeiro fracasso do general Spínola ocorre logo a seguir ao 25 de Abril, quando ele tenta essa reinstitucionalização das Forças Armadas?

R. - O grande equívoco foi logo no dia 25 de Abril. Se o programa estava negociado com o general Spínola, estava negociado. Quando Spínola e Costa Gomes pretenderam modificar o MFA, deviam ter ouvido dizer "não".

P. - Não acha que essa divisão político-ideológica estava no MFA antes do 25 de Abril? No próprio dia, há uma corrente que se agrega em volta do general Spínola, outra em volta do general Costa Gomes e uma tentativa do general Spínola de promover a tal reinstitucionalização das Forças Armadas, o que é imediatamente olhado com desconfiança.

R. - O que eu entendo é que a reinstitucionalização das Forças Armadas nunca existiu. Teria eventualmente existido, se Spínola fosse chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, o que, aliás, estava estabelecido, e Costa Gomes o Presidente da República. Foi uma surpresa isto não ter acontecido assim. Agora, como é que o Spínola pode reinstitucionalizar as Forças Armadas, se o chefe é o Costa Gomes?

P. - Poder-se-á dizer que o culpado foi o Costa Gomes?

R. - Sim, em certa medida, mas teria ele condições? Não sei, as condições eram extremamente adversas. Se não tivesse havido divergências de concepção daquilo que deveria ser o desenvolvimento do programa do MFA, provavelmente as coisas teriam sido diferentes. O que aconteceu foi que, imediatamente a seguir ao 25 de Abril, as estratégias de Spínola e do MFA eram conflituantes, desenvolveu-se uma estratégia de conflito e nessa situação é muito difícil fazer seja o que for. Reinstitucionalizar as Forças Armadas, nessa altura, era oferecer a uma ou outra parte força para impor a sua interpretação. Poder-se-á dizer que a partir de certa altura nenhuma das partes estava interessada em que a outra conseguisse reinstitucionalizar o aparelho militar.

P. - Quem tomou o poder militar de assalto?

R. - Todos os partidos políticos.

P. - Houve uma espécie de delírio revolucionário?

R. - Não. As Forças Armadas serviram o poder durante muito tempo, em vez de serem um instrumento em que a população civil pudesse confiar. Foram um instrumento que o Estado, com grandes desconfianças, utilizou. Pensou-se em criar condições para impedir que isto voltasse a repetir-se. Mas quem conhece a instituição militar sabe que não é assim que se faz a limpeza das forças armadas. Aqueles que se entende que não são capazes de se ajustar são passados à reserva com todas as regalias a que têm direito. O que aconteceu é que não houve coragem, nem condições, nem vontade para fazer isso. Mas depois entendeu-se que as Forças Armadas assim estariam mal e entendeu-se garantir a sua lealdade criando uma estrutura paralela. Mas as coisas assim não funcionam, basta ver o que aconteceu na Rússia em 1917. A Rússia demorou gerações a ter um exército leal e responsável e só o teve por causa da guerra contra Hitler.

P. - A que estruturas paralelas se refere? Ao MFA e ao Conselho da Revolução?

R. - Não, estou a falar das estruturas políticas ligadas à 5ª Divisão.

Nem Otelo, nem o PCP mandaram os "páras" P. - Vamos voltar ao dia 25 de Novembro. Quando vai para o Regimento de Comandos da Amadora, tem a informação de que os pára-quedistas tinham ocupado as bases. Quem deu essa ordem?

R. - As informações que tinha é que Otelo tinha dado ou coberto essas ordens.

P. - E hoje, quem acha que as deu?

R. - Estou convencido de que as ordens saíram do Copcon.

P. - Não foi o PCP, como diz Freitas do Amaral, nas suas "Memórias"?

R. - Não é isso que se infere do relatório, nem das conversas com os envolvidos, nomeadamente o próprio Otelo - e ele sempre assumiu perante mim, sem desvios, as suas responsabilidades. Creio que mo teria dito, se tivesse sido ele a dar a ordem directamente. Também não estou a ver um partido a dar uma ordem, mesmo a militares que estivessem com ele. Para mim, isso não é historicamente verdade.

P. - Mas aquele tipo de acção era aquilo de que estavam à espera para desencadear o vosso plano?

R. - Do que estávamos à espera era de uma acção de força.

P. - De quem? De Spínola? Da direita?

R. - Da direita não. A direita tinha montado estruturas, MDLP, etc. Essas estruturas estavam muito dependentes de alguns militares, e as acções dos militares eram relativamente previsíveis. Menos previsíveis seriam as acções militares com ligação a forças políticas. A extrema-esquerda na altura disse, e com razão, que a burguesia só podia dirigir o país com a força da coerção. O pior é que, não tendo instrumentos de coerção, porque as Forças Armadas não estavam com ela, não tinha poder para fazer nada e era isso que se verificava, nomeadamente quando foi do cerco à Assembleia Constituinte.

O que se admitia era que a extrema-esquerda avançasse e, se avançasse, o PCP, por razões políticas naturais, não podia deixá-la só nessa investida, até por razões de sobrevivência. Imaginemos que a extrema-esquerda isolada ganhava, o que era possível, desde que o Otelo jogasse com ela e o Otelo estava-lhe muito próximo. Cortar também a cabeça ao PCP seria muito provavelmente um dos seus objectivos.

P. - Mas também se diz que Otelo foi ultrapassado dentro da sua própria casa, o Copcon.

R. - Acho que sim. Quando se sabe que naquela noite o Otelo foi para a Presidência e depois resolveu ir para casa, percebe-se que só não houve maior participação de forças adversas aos Nove porque a mobilização operacional das mesmas exigia que Otelo desse a cara. Cunhal - um homem em cuja sinceridade eu acredito, embora estejamos nos antípodas em termos ideológicos -, no livro "As Mentiras e as Verdades do 25 de Abril", diz que o PCP adoptou uma posição de contenção, afirmação que eu não contesto. Houve, no entanto, muitos elementos do PCP que, já depois do 25 de Novembro, continuaram muito empenhados - e isso é razoável. Se eu estivesse naquela área, provavelmente também não resistiria a tomar determinadas atitudes, mesmo um pouco à revelia do partido. Do que não tenho dúvidas é que a ordem para os pára-quedistas não saiu do PCP.

P. - O que é curioso, o que desencadeia a vossa acção é a ocupação das bases, mas os senhores não vão tentar desocupá-las - vão tentar é controlar duas ou três unidades em Lisboa que representam um certo espírito revolucionário.

R. - O que sempre admitimos é que haveria um movimento civil/militar para se apossar do poder. E sempre entendemos que esse movimento poderia começar em qualquer sítio, mas que se iria definir em Lisboa. Esta era a área onde havia as grandes unidades, os grandes depósitos de munições e armamento, os bancos, a televisão, etc. Na altura do planeamento houve entre nós quem quisesse que tomássemos a iniciativa e nos deslocássemos para Mafra, para a Escola Prática de Infantaria, Rio Maior e Santarém (Escola Prática de Cavalaria).

P. - E deixassem a "comuna de Lisboa"?

R. - Sim, mas na altura tal posição não venceu, pois, numa perspectiva política e logístico-militar, entregava-se ao adversário a área de maiores potencialidades, a Grande Lisboa.

P. - O coronel Vasco Lourenço disse que se esteve a milímetros dessa opção [pelo abandono de Lisboa] e que o próprio Melo Antunes estava de acordo, numa reunião nas Laranjeiras, poucos dias antes do 25 de Novembro.

R. - Não me recordo que o Melo Antunes a tenha defendido. Sei que eu, que era o encarregado da parte operacional do plano, discordei e tentei demonstrar que seria um erro crasso. Houve vozes a favor e vozes contra, mas ficou decidido que não se ia. O Jaime Neves estava muito preocupado e mesmo ansioso por passar à acção, porque todos os dias sentia perder um pouco o comando da sua unidade. O que foi dito então é que não se podia passar à acção e muito menos sair de Lisboa.

P. -Quem esteve presente nessa reunião, que foi decisiva?

R. - Muita gente. Estiveram os Nove, esteve o Jaime Neves.

P. - A direita e a extrema-direita militar também estão?

R. - Não.

P. - Jaime Neves queria uma acção que contivesse o PCP, ou que o esmagasse? Foi ele que disse a Costa Gomes, a seguir ao 25 de Novembro: "Nós não estamos satisfeitos"?

R. - É preciso não esquecer que foi o Jaime Neves quem foi receber o Cunhal ao aeroporto de Lisboa, em 27 de Abril de 1974. Ele é o operacional sentimental, sempre disponível para ir para a frente, nunca contabiliza riscos, é um comandante nato. Mas o PCP fez-lhe uma coisa que ele nunca perdoou: "retirou-lhe" o comando. Ele era um comandante a quem os homens adoravam, que tinha com eles uma relação estranhamente eficaz (que eu nunca tive) que é equívoca e comprometedora, mas muito mais rica. Sabem o que é para um homem desses um dia não poder entrar na unidade? Quem o conhece sabe que ele jamais perdoaria. É, aliás, o Otelo que, ao saber que foi o PCP a tomar a iniciativa de retirar ao Jaime Neves o comando do Regimento de Comando e depois de lhe ter dito "Jaiminho, perdeste a confiança dos teus homens", o repõe no comando do regimento, numa daquelas sessões à portuguesa, em que os militares que estavam afectos ao PCP se confessaram, fazendo autocrítica. Quando certas pessoas dizem que Jaime Neves é um anticomunista primário, afastam-se da verdade. Ele era por razões afectivo-pessoais um anticomunista.

P. - Mas, quando Jaime Neves pediu que se avançasse e Melo Antunes veio à televisão defender o PCP, ele estava isolado? Não representava outros sectores militares?

R. - Outros poderiam querer que ele os representasse, mas não representava. Naqueles dias, quem deu as ordens ao Jaime Neves para se expor fui eu, e ele aceitou tudo.

Tivemos contactos com o MDLP P. - Nunca pensaram nas consequências da vossa vitória no plano político? Chegou-se a pensar em ocupar sedes de partidos e de sindicatos. Não havia pessoas no movimento com convicções mais direitistas e menos democráticas?

R. - Não é verdade. Para todas as situações idênticas à que se viveu, há um plano de operações político-militar. Desde sempre foi grande propósito desse plano restituir o poder político à sociedade civil. E na sociedade civil os sindicatos também são indispensáveis.

P. - Porque é que foi Melo Antunes o escolhido para ir à televisão?

R. - Porque aquilo que o Melo Antunes dissesse o PCP aceitava, embora ele fosse muito anti-PCP. Houve um jornalista da imprensa estrangeira que disse que a democracia pluralista tinha nascido naquele momento e é verdade. Mas o Melo Antunes foi estigmatizado por aquela atitude e eu também, mais tarde.

P. - A pressão política para ilegalizar o PCP era muito forte?

R. - Não exageremos. Houve um movimento tendente a estigmatizar o PCP, e com uma certa razão, porque o PCP não percebeu bem, a certa altura, a sociedade em que estava inserido. Teve esse movimento manifestações diversas, radicais algumas, como o incêndio de sedes suas no Norte. Posso esclarecer que não foram da responsabilidade dos militares.

P. - Chegou a ser convidado para comandar uma parte do MDLP, não é verdade?

R. - Sim, a parte de Lisboa, mas não aceitei, até porque, além do mais, estava comprometido com o movimento liderado pelo Grupo dos Nove.

P. - Quando é que a acção dos Nove começou a ser planeada?

R. - Em Abril, Maio, talvez. Foi preciso contactar todas as unidades, para saber qual a situação, em termos de potencial militar, quais os camaradas com que podíamos contar, foi complicado.

P. - O que teria acontecido, se não tivesse havido a ocupação das bases pelos pára-quedistas?

R. - Naquela situação, teria havido outra coisa qualquer, dado o conflito entre as diferentes legitimidades, conflito que eu percebo e que digo que é razoável, a partir do momento em que o MFA se esqueceu de impor a sua legitimidade. E muitas das legitimidades eram defendidas por pessoas muito sérias, que estavam convencidas de que o que elas queriam era o melhor para o país. A partir daí, e não havendo nenhuma que tivesse uma força dominante, era evidente que haveria um conflito pelo poder. Não há situações de vazio de poder.

P. - Vamos a ver se entendemos: os senhores estavam à espera de qualquer coisa, mas quem é que disse que aquilo - a saída dos pára-quedistas - era a coisa de que estavam à espera, para avançarem para a Amadora?

R. - Esse processo tem a ver com a nomeação de Vasco Lourenço para o comando da Região Militar de Lisboa. É isso que desencadeia a acção dos pára-quedistas. Lendo aquela reacção, conclui-se que era uma primeira fase de um plano mais vasto a que era preciso responder. E a conversa com Costa Gomes vai nesse sentido.

P. - Nesse dia?

R. - Nesse dia à tarde. É-lhe apresentado o plano e é-lhe dito que nós estávamos em inferioridade clara. A nossa superioridade podia ser conseguida mediante a utilização da Força Aérea. "Se o senhor demora a decidir-se, como ainda há que montar o posto de comando, já não poderemos actuar senão à noite e arriscamos assim as possibilidades de sucesso." O general Costa Gomes continuava a querer que se esperasse pelo [então capitão e ex-ministro do Trabalho, conotado com o PCP] Costa Martins, que tinha ido negociar com os pára-quedistas. Ora, naquela altura já não havia negociação possível, era necessário avançar.

P. - É o senhor que manda sair o Jaime Neves para o GDACI e para a Ajuda?

R. - Quando chegámos à Amadora, para montar o posto de comando, era noite. Mas o que admitimos é que o adversário, sabendo que não tínhamos a superioridade, acreditaria que não iríamos desencadear qualquer acção nocturna. E era necessário utilizar o efeito de surpresa actuando sobre áreas críticas fundamentais. Actuou-se de imediato contra o GDACI, que era importante numa perspectiva do comando e comunicações; actuou-se sobre a televisão, na área de Coimbra, e sobre a rádio na área de Porto Alto. Para aí foram camaradas de Engenharia à paisana, nas suas viaturas pessoais, tecnicamente tão bons e de tal confiança que nunca admiti que falhassem.

Otelo e Jaime Neves foram decisivos P. - Quem mandou a força comandada pelo Jaime Neves para a Ajuda? O general Costa Gomes diz que foi ele.

R. - Não creio que o tenha dito. Fui eu. A Polícia Militar hesitava na atitude a tomar. Foi o comando da Amadora informado de que haviam convocado um plenário para decidir. Não podíamos esperar, dado não se ter ainda invertido a correlação de forças. Logo que os comandos saíram, comunicou-se a Belém, como sempre se fazia, quando se mandavam sair homens.

P. - Vasco Lourenço escreveu na revista "História" que o problema era saber se os três oficiais que comandavam a Polícia Militar iam à Presidência e que a meio do caminho eles disseram que se iam entregar a Belém, que o Vasco Lourenço lhe comunicou isso mesmo e que o senhor disse que já não tinha possibilidades de mandar parar a coluna.

R. - Não me recordo, mas o que posso dizer é que, ponto um - e isso consta do relatório -, eles admitiram que se iam entregar, eles iam fazer uma assembleia; ponto dois, isso não deve ter sido assim, necessariamente, porque eu tinha ligação rádio com eles e podia sempre actuar. Aliás, a prova é que, quando se cerca o Copcon, eu mando avançar a força e depois recebo do interior do Copcon a informação de que os fuzileiros se instalaram. Portanto, houve uma alteração significativa daquela situação pontual e o que eu fiz de imediato foi mandar comunicar à força que devia tardar o seu movimento e esperar que eu chegasse. Eu integrei essa força.

P. - Se os fuzileiros tivessem actuado, os resultados teriam sido diferentes?

R. - A situação teria sido diferente, se o Otelo, em vez de ir para casa, tivesse ficado a comandar o seu pessoal. Aí os fuzileiros possivelmente teriam entrado. Como diferente teria sido a situação, se o Jaime Neves (que é um grande comandante, o país nem sabe o que lhe deve), quando chega à Ajuda, é recebido a tiro e lhe matam um tenente, um homem novo, com grande prestígio, não comandasse bem os homens. Quem comanda homens sabe como é difícil parar o fogo. O controlo é então difícil e os efeitos por vezes terrivelmente nefastos. Ele, apesar de ter dois homens mortos, comandou o fogo dos seus homens e do outro lado houve apenas um morto. Foi de grande importância a acção de Jaime Neves.

P. - Não houve mais pessoas importantes, por exemplo, aquelas que convenceram os fuzileiros a não sair, nomeadamente alguns elementos do Conselho da Revolução ligados à Marinha, como Rosa Coutinho e Martins Guerreiro?

R. - Do Martins Guerreiro não sei. No dia 25 à noite contactei pessoalmente com ele para resolver a situação do Centro de Transmissões da Marinha (CTM). Disse-lhe que ele tinha não sei quantos minutos para actuar, e que, a não o fazer, eu mandaria atacar o CTM. Não chegou a ser atacado, foi o Martins Guerreiro que acabou por fazer com que as coisas se alterassem. Admito (isso não consta dos relatórios) que sim, que ele terá tido alguma influência, até porque o Martins Guerreiro é um homem inteligente, com grande sentido prático, não é nenhum aventureiro.

P. - Se tivesse havido resistência, o que teria acontecido?

R. - Uma guerra civil.

Aviões contra o Ralis e Tancos e armas para o PS P. - Chegou a ser pressionado pelos militares mais à direita para usar de meios aéreos contra o Ralis?

R. - Realmente esteve prevista uma acção contra o Ralis e outra contra Tancos, estava tudo pronto, planeamento e meios. Contra o Ralis, quando cheguei à conclusão de que seria necessário actuar, chamei os camaradas da Força Aérea e disse-lhes qual a acção que lhes estava destinada. Não foi com agrado e sem relutância que receberam a indicação. E percebe-se. Uma acção que implique mortos é sempre preocupante. Disse-lhes que a ser necessário, contava com a sua acção. Perguntaram-me se não haveria outras soluções, se não se poderia conseguir o mesmo efeito de outra maneira, porque a verdade é que eles não gostariam de intervir...

P. - Ou seja, não se pode falar de pressões que tenham sido exercidas sobre si...

R. - O que se pode dizer é que houve pressões da minha parte para eles estarem prontos. Obviamente, e desde o início que quisemos que não houvesse sangue e, sobretudo, pretendemos evitar a guerra civil, porque os homens da minha geração aprenderam muito com a guerra civil espanhola. Mas o que entendemos é que quando entrámos naquilo era para resolver a situação.

P. - A distribuição de armas aos civis faz parte desse quadro?

R. - Isso consta do plano de operações, claramente. Não é verdade que nesse plano alguma vez estivesse prevista a distribuição de armas a outros partidos que não o PS e o PSD. Acabaram por não ser distribuídas ao PSD. Ao PS foram distribuídas, e devo dizer que a responsabilidade da decisão na altura foi minha.

P. - Quantas? 150 G-3?

R. - Não sei quantas. Estava previsto que seriam muito mais do que 150 porque a ideia era que grupos de civis se juntassem à acção militar. Por exemplo, criar dificuldades à saída de militares de unidades adversas era missão atribuída pelo plano de operações a civis. A acção que planeámos executar era uma acção militar, sem dúvida, mas desenvolvida em benefício daquilo que se entendia serem os interesses da sociedade civil em vivência democrática.

P. - Portanto, naquele momento, pensava que a coisa iria ter maior amplitude, que não se iriam ficar por aquelas duas acções...

R. - Naquela altura, admitíamos tudo. É evidente que não sabíamos como os adversários iriam responder. Tínhamos feito um estudo da situação, tínhamos feito uma análise comparada de forças e sabíamos que eles tinham muita força, quer na área militar, quer civil.

P. - Vasco Lourenço já disse em várias ocasiões que desconhecia a distribuição de armas aos civis e, teoricamente, ele era seu superior na cadeia de comando.

R. - Só teoricamente. Ele tinha sido nomeado comandante da Região Militar e Costa Gomes delegou capacidade de decisão na Região Militar directamente em mim e na Amadora. Mas se ele não sabia, isso significa que não tinha lido bem a ordem de operações, que existe, está publicada no livro de Freire Antunes [ "Segredos do 25 de Novembro"]. Está lá e está correcta. Esclareço que não fui eu que a dei a Freire Antunes. Da ordem de operações consta a distribuição de armas aos civis.

P. - Qual o papel reservado ao PS pelo grupo dos Nove?

R. - As relações preferenciais do grupo era com o PS. Era o partido com maior implantação, representação democrática, com maior aproximação afectiva e não só com os militares. Tinha havido várias reuniões com elementos do partido para uma eventualidade de eles terem que participar numa acção deste tipo. Eles próprios se tinham comprometido a arranjar armas, e arranjaram, mas sem interesse ...

P. - Porquê? Não prestavam?

R. - Eram pistolas, armamento sem grande interesse operacional.

MRPP sim, Igreja não P. - Há também referência ao papel desempenhado pela célula do MRPP nos TLP.

R. - Isso foi importante, muitas das nossas informações foram fornecidas pelo MRPP, através do Arnaldo de Matos ou de pessoas por ele indicadas. Aliás, houve sempre uma grande precisão nas informações fornecidas por eles.

P. - Quer isso dizer que o MRPP esteve ligado operacionalmente ao 25 de Novembro?

R. - Eles vinham desde há muito tempo a fornecer-nos informações. Aliás, há uma grande ligação afectiva entre mim e

o Arnaldo de Matos, que foi meu alferes em Macau e em Moçambique.

P. - Será a essas ligações espúrias a que Vasco Lourenço se quer referir? O grupo militar contava com o MRPP, que era um grupo maoista, e também tinham ligações com o MDLP. A que ponto foram as ligações com o MDLP?

R. - As ligações com o MDLP eram muito reduzidas e visavam saber o que eles podiam ou queriam fazer. Realmente houve contactos para que, numa situação como aquela, eles pudessem accionar determinados meios, o que, tanto quanto sei, não se chegou a verificar

P. - Contactos entre quem e quem? Entre o major Vítor Alves e Alpoim Calvão em casa do Valentim Loureiro, por exemplo? Mas Vasco Lourenço contesta que isso tenha sido feito em nome dos Nove.

R. - O que julgo é que se confundem duas coisas muito diferentes. Alpoim Calvão é do meu curso e praticamente do curso de Vítor Alves. Essa reunião terá sido, provavelmente, apenas uma reunião entre amigos. As pessoas têm uma certa dificuldade em perceber as relações entre militares. Eu fui defender Otelo. E recebi muitas pressões para não o fazer. Eu disse sempre, sou amigo do Otelo, sempre recebi dele as melhores provas de amizade, e o facto de termos estado em posições diferentes isso teve a ver com o nosso entendimento daquilo que mais convinha ao país. Eu não o condeno, que o condenem outros, e não é isso que impede que eu vá defendê-lo, que eu vá dizer o que penso dele. De maneira que esses contactos poderão ter muito que ver com isso. Dentro do grupo dos Nove poderá ter havido contactos que eu desconheço, há outros que eu conheço. Eu próprio reconheço que estabeleci contactos com elementos do MDLP.

P. - Com Alpoim Calvão?

R. - Não, com Alpoim Calvão não, nessa fase. Tive relações com ele já depois de sair da presidência.

P. - E com o general Soares Carneiro?

R. - Com ele tive vários contactos.

P. - O General Soares Carneiro serviu de ponte entre o grupo dos Nove e o MDLP?

R. - Não, nunca se chegou a saber exactamente quais eram as ligações dele. Era um homem com uma certa influência na área militar e que se sabia que tinha algumas relações com o MDLP.

P. -Outra componente decisiva nesta altura era a Igreja. Enquanto grupo militar estabeleceram contactos com a hierarquia da Igreja?

R. - Não, é bom que se faça essa pergunta para que fique bem claro que não tínhamos quaisquer contactos com elementos da Igreja.

P. - As movimentações directamente patrocinadas pela Igreja no Verão quente, nomeadamente através da Sé de Braga, influenciaram positivamente a acção do Grupo dos Nove?

R. - Influenciaram positiva e negativamente. Positivamente na medida em que encurralaram, cercaram o PCP, tornando-o mais vulnerável, mas também negativamente na medida em que desencadearam uma onda de anticomunismo que depois do 25 de Novembro se manifestou e chegou a exigir a cabeça dos comunistas. Muitas vezes me perguntaram que contactos eu tive com o cónego Melo e eu dizia a rir que só conheci o Cónego Melo muito depois do 25 de Novembro, numa festa.

O 25 de Novembro dos Nove e os outros P. - Estamos na altura de tentar fazer a leitura do 25 de Novembro. Houve vários 25 de Novembro? É que, se calhar, não houve só um.

R. - O que eu digo é que o 25 de Novembro que está ligado ao grupo dos Nove e que teve o seu comando na Amadora pretendia dizer à população que os militares respeitam a sua palavra, que são dignos de ter as armas que a população lhes entrega, e que restituir o poder à sociedade civil era de alguma maneira retomar o programa do MFA no 25 de Abril. Este movimento teve por finalidade reactualizar o compromisso assumido no 25 de Abril. Dir-se-á que o programa do MFA não foi depois inteiramente cumprido. Evidentemente, já não podia sê-lo, porque as coisas tinham-se modificado entretanto. Mas foi cumprido no essencial. Logo depois do 25 de Novembro publicávamos um diploma em que o poder militar reconhecia a supremacia do poder civil e os militares decidiam por sua própria iniciativa que não estão ao serviço de qualquer partido, mas do país. A instituição militar afirmava que não era apolítica, mas que era apartidária. O país podia então dizer se queria ir para a direita, para a frente ou para a esquerda e que os militares respeitariam a sua opção.

Por outro lado, reinstitucionalizámos as forças armadas, em circunstâncias muito mais adversas do que aquelas que teria havido a seguir ao 25 de Abril. Muitos militares tinham quebrado objectivamente o vínculo de lealdade à instituição militar e criado amizades, relações, compromissos com forças políticas. Outros tinham-se habituado a um certo protagonismo e não estavam disponíveis para se submeterem de novo ao apagamento que a instituição militar exige, e bem, enquanto instrumento armado da sociedade civil e do Estado. Reinstitucionalizámos as forças armadas em situação de extrema dificuldade, que muito viria a aumentar porque partidos houve que tentaram interferir negativamente na instituição militar. Chamo a atenção para uma intervenção partidária em 1979/80 que foi extremamente grave, que foi anunciar que se pretendia escolher um candidato em contacto com a hierarquia militar. Isso era voltar ao antigamente, ao tempo de Salazar, em que a instituição militar sugeria um nome para Presidente da República.

P. - Não acha que esse episódio da AD e da escolha do general Soares Carneiro...

R. - Não estou a falar do general Soares Carneiro. Podiam os partidos políticos tê-lo escolhido, o que seria natural. Estou a falar do que os partidos disseram antes: vamos escolher um candidato em diálogo com a hierarquia militar. Isso era inaceitável por duas razões: a primeira era política porque significava comprometer a instituição militar com os partidos através de um eventual Presidente da República; a segunda era militar. Significava que os partidos, através de tal afirmação resolviam simultaneamente apelar à hierarquia militar e não a respeitar, dado ser eu o chefe do Estado Maior General das Forças Armadas (CEMGFA).

P. - Isso não poderá ter sido precisamente a expressão de uma certa direita que achou que o 25 de Novembro não correspondeu exactamente àquilo que pretendia?

R. - O que eu entendia na altura era que se pretendera mostrar à opinião pública que o Eanes é CEMGFA mas não comanda as Forças Armadas, não tem atrás dele o poder militar. Foi a leitura que eu fiz na altura e que mantenho.

P. - No fundo há um entendimento de que, com o 25 de Novembro, o PCP se legitimou na área do poder, não foi um derrotado.

R. - Aí há um grande equívoco, o PCP não tem que ser legitimado por ninguém...

P. - Mas, em Dezembro de 1975, o general Spínola escrevia do Brasil para cá a Alpoim Calvão uma carta que está publicada a defender a realização de um referendo nacional para se apurar se o PCP devia ou não ser considerado um partido democrático.

R. - Quem legitima os partidos é a sociedade civil, apoiando-os ou não. É a sociedade civil que entende que para manter uma certa moral é indispensável que haja um instrumento, um sistema político, com vários subsistemas, um deles é o militar. Ninguém tem o direito de legitimar seja o que for em matéria de partidos políticos.

P. - Se olharmos agora à distância de 25 anos, o 25 de Novembro que na altura foi visto como uma derrota do PCP, provavelmente foi afinal a legitimação do PCP e a derrota da extrema-esquerda.

R. - A nossa preocupação em relação à sociedade civil era tão grande que só actuámos contra homens da instituição militar, de quem éramos amigos, com uma grande dor de alma...

P. - Homens que representavam a ideia do poder popular...

R. - Homens que nós entendíamos que tinham contrariado militantemente a nossa obrigação moral em relação à sociedade civil. Não perseguimos um só elemento ou organização que fosse da sociedade civil. Não actuámos minimamente contra a sociedade civil. Já tinha havido eleições, os partidos que tinham participado estavam legitimados e só novas eleições podiam dizer se aqueles partidos mantinham a quota legitimária original ou outra. Não nos podíamos substituir à sociedade civil num juízo de legitimidade que só a ela competia. Não podíamos permitir que se perseguisse ninguém, não quisemos legitimar ninguém, o que quisemos foi impedir que abusivamente e em nome de uma vitória que nós pretendíamos que fosse inteiramente da sociedade civil alguém pudesse dizer 'estes são legítimos e aqueles não'.

P. - Há aí uma contradição com o que contou atrás, sobre o privilégio concedido ao PS quando lhe entregaram armas em detrimento doutros partidos...

R. - Não, não, nós fizemos isso numa situação de pré-confronto e, ao fim e ao cabo, a distribuição de armas não foi privilegiar, foi comprometer. Entendíamos que não tínhamos força suficiente para responder sozinhos, que havia acções complementares que podiam ser desempenhadas por elementos civis e estes, ao participarem, estavam a demonstrar que a nossa acção não era um movimento dos militares, era um movimento em que os militares estavam, obviamente, mas com a sociedade civil.

P. - Já agora, o facto de o PCP ter desmobilizado os militantes que estavam à volta dos quartéis, sobretudo aqueles que eram os vossos alvos, fez com que o PCP tivesse salvo a cabeça?

R. - Não, muitos dias depois militantes do PCP continuaram, por exemplo, no Montijo, a estimular, a distribuir armas. Nós tínhamos que combater o que se opunha, mas resolvido isso não íamos ilegalizar fosse quem fosse, isso seria substituir-nos à sociedade civil em democracia.

P. - Como explica então aquela sucessão de bombismo que se prolongou desde finais de 75 até à primavera de 76 e que culminou num julgamento bastante controverso. Acha que foi um fenómeno de delinquência puro e simples ou um fenómeno político?

R. - Foi um fenómeno muito complexo, com uma componente política muito acentuada. Julgo que houve muitos ajustes de contas e também que uma certa extrema-esquerda desesperada resolveu entrar nesse caminho.

P. - Estamos a falar de algo que aconteceu antes da extrema-esquerda aparecer.

R. - Para certa área da direita eu ainda hoje sou um demónio. O 25 de Novembro não foi o que desejavam. Tinham investido num outro 25 de Novembro. Eu não tinha relações com ela, nada que ver com a sua acção, e não possuo muito mais informações do que as que são do domínio público.

P. - Que outro 25 de Novembro era esse em que a direita tinha investido?

R. - Estou convencido, embora não tenha muitos dados, que era um 25 de Novembro para, se não fosse restaurar um regime anterior, criar um regime muito próximo desse.

P. - Disse o brigadeiro Pires Veloso (ao PÚBLICO de 14/11) que o verdadeiro 25 de Novembro foi dirigido não a partir de Lisboa, mas sim da Região Militar do Norte, com o apoio das Forças Armadas.

R. - Creio que a melhor e mais esclarecedora resposta se encontra em diversos documentos históricos, já do conhecimento do público, e a que a comunicação social dispensou cuidada atenção e largo espaço. Recordo os relatórios oficiais da comissão de inquérito ao 25 de Novembro e dos vários contra-relatórios, já publicados. Chamo também a atenção para o trabalho publicado pelo historiador Freire Antunes e intitulado "Segredos do 25 de Novembro", que apresenta larga documentação. Aliás, felizmente, ainda estão vivos quase todos os militares que, em Belém e na Amadora, e em muitas unidades do país participaram na operacionalização político-militar do 25 de Novembro. São pois um testemunho disponível, importante e seguramente esclarecedor. Se havia outros movimentos político-militares em preparação - e eu admito que sim - será bom que, finalmente, se assumam e revelem quais os seus propósitos e aliados políticos.

Spínola foi levado no 11 de Março e não comandava o MDLP P. - Envolve nesse outro 25 de Novembro o MDLP e o ELP?

R. - Não o MDLP como movimento que, em minha opinião, albergaria várias tendências que o próprio general Spínola não dominava completamente. Aliás ele nem sabia bem o que se tinha passado no 11 de Março. Spínola era um homem bom e no interrogatório a que foi sujeito quando regressou a Portugal faz um relato e refere determinadas personalidades. Uns dias depois pede para ser ouvido e diz que tem determinadas correcções a fazer porque tinha falado com os seus homens de cá e havia afirmações que fizera que não estavam correctas. Isto revela uma preocupação de justiça, mas também revela que ele no 11 de Março foi "levado". Não haveria um mas vários MDLP's e o MDLP do Spínola, não tenho dúvida, o que pretendia era restaurar uma situação democrática.

P. - Mas Alpoim Calvão refere o episódio das duas mil armas que o Holden Roberto entregou, que foram desembarcadas em Cádis, transportadas para Tuy, e que havia a intenção de as colocar dentro do país para criar um clima de sublevação. E essas armas foram desembarcadas depois do 25 de Novembro.

R. - O que eu sei é que o Alpoim Calvão resolveu desmobilizar depois do 25 de Novembro. O que julgo, e é uma leitura meramente pessoal, é que havia uma certa dinâmica de planeamento e execução, e que aquilo persistiu uma certa inércia do movimento durante algum tempo mesmo depois do 25 de Novembro. Eles não sabiam muito bem o que ia acontecer e possivelmente algumas das fontes que eles tinham cá tê-los-ão informado de que a nossa acção teria sido um golpe meloantunista - coisa complicada para a direita que fazia uma exploração perversa do pensamento de Melo Antunes. Só depois de Melo Antunes morrer se reconheceu generalizadamente que ele teve um papel extremamente importante em todo o processo.

P. - É por isso que não se entende a continuação do bombismo até 1976, até ao início do desmantelamento da rede bombista. Havia ali uma dimensão meramente delinquente?

R. - Não posso responder completamente à pergunta, o que julgo é que todas as organizações acabam sempre por ter contactos na marginalidade, que adquire uma certa autonomia. Julgo que havia algum comando, provavelmente outro comando...

P. - Ramiro Moreira foi preso e disse que havia toda uma retaguarda de protecção, do MDLP, do Conselho da Revolução, do Grupo dos Nove, etc.

R. - Havia um grupo a funcionar, agora que esse grupo tivesse ligação ao Grupo dos Nove duvido. Que essa ligação fosse anterior e que algum elemento do Grupo dos Nove tivesse tido dificuldade em quebrá-la, isso admito.

P. - Eles invocavam ligações ao [antigo conselheiro da Revolução] Canto e Castro e ao [antigo comandante da PSP do Porto] Mota Freitas.

R. - Canto e Castro era muito leviano, nomeadamente nas suas relações de amizade, mas fora isso era um homem perfeitamente correcto.

P. - Porque é que os crimes do Padre Max e do Ferreira Torres se transformaram em segredos de Estado?

R. - Em segredos de Estado não, se assim fosse eu teria tido conhecimento. Se não foram conhecidos foi por outras razões, não de Estado. Mas sobre isso sei apenas o que apareceu nos jornais. Nunca a Judiciária, nem a Procuradoria-Geral da República alguma vez me forneceram mais elementos do que aqueles que a comunicação social referiu.

P. - Porque é que o processo da rede bombista nunca transitou da justiça militar para a justiça civil?

R. -Nunca transitou? O que eu posso dizer é que isso não se deveu a nenhuma decisão minha. Embora eu não esconda que quando prenderam Mota Freitas eu tomei uma atitude, que julgo correcta na perspectiva militar: entendi que tendo ele sido um militar com um percurso extremamente interessante, devia ficar preso numa unidade. Na altura fui criticado por isso, mas decidi assim.

P. - Numa leitura política do seu comportamento naqueles anos em que foi chefe do estado Maior General das Forças Armadas e Presidente da República, diz-se que privilegiou claramente a direita. Hoje acha que sim?

R. - O que se tem dito e com razão é que na reinstitucionalização militar eu recuperei muitos homens que eram considerados de direita. Eu tentei restituir à instituição militar a sua ideologia formal, distintiva - hierarquia, unidade, disciplina. Isto exige quadros de grande competência, competência que procurei em muitos dos militares mais antigos, independentemente das suas posições, porque entendia que havia neles competência e lealdade. Acertei a 100 por cento? Infelizmente não. Alguns houve que, tão traumatizados estavam, não conseguiram ultrapassar isso. Mas, a verdade é que apesar de tudo a instituição militar teve um comportamento genericamente correcto.

Melo Antunes, Garcia dos Santos, Otelo, Cunhal

P. - Temos uma lista de nomes e gostaríamos que nos desse a sua opinião sobre o papel deles no 25 de Novembro: Costa Gomes, Otelo, Melo Antunes, Jaime Neves, Tomé Pinto, Rocha Vieira, Vasco Lourenço, Garcia dos Santos, Costa Brás, Dinis de Almeida, Morais e Silva, Costa Martins, Rosa Coutinho, Carlos Fabião, Pires Veloso, Gomes Mota, Vasco Gonçalves, Varela Gomes, Canto e Castro, Aventino Teixeira, Sá Carneiro, Mário Soares, Álvaro Cunhal e Freitas do Amaral.

R. - Desses nomes , e porque já disse o que penso de Jaime Neves, limitar-me-ei a falar de Melo Antunes. Foi uma peça fundamental em todo este processo pela sua sensatez, pelos seus conhecimentos, tolerância e capacidade negocial. E queria também falar de Garcia dos Santos. Para os militares, sobretudo os da minha geração, a honra é fundamental. Para nós, que não somos homens motivados por dinheiro, (mas por honrarias sim, no sentido das condecorações, que tinham um certo significado para nós), não há nada pior do que ser acusado de desonestidade e Garcia dos Santos arriscou-se a ser acusado de desonesto. Ele foi aos depósitos de material de transmissões de Linda-a-Velha e subtraíu material rádio, com o qual andou semanas e semanas no porta-bagagens [para montar o sistema de transmissões usado no golpe, como já fizera no 25 de Abril de 1974]. Podia ter acontecido que alguém desse por isso e ele podia ter sido acusado de desvio de material de guerra. Arriscou mais do que qualquer outro - a cabeça e a honorabilidade. E já agora, uma referência ao Otelo também. Já falei dele, mas posso acrescentar que foi sempre o homem das grandes intuições, sempre de uma grande infilosofia, no sentido unamuniano, o homem que não racionaliza as situações, vive-as, não está a pesar os pós e os contras, deixa-se conduzir pela afectividade. Foi também um pouco isso que aconteceu no 25 de Novembro. Houve da nossa parte uma preocupação enorme em evitar a guerra civil e em não provocar baixas, em resolver tudo de uma maneira tão pouco cara quanto possível. Mas se a posição dele não tem sido aquela que foi, se ele manda avançar as forças, é evidente que as baixas teriam sido inúmeras e não sei mesmo se não teríamos tido uma guerra civil.

P. - Mas mandou prendê-lo. Vasco Lourenço disse que o fez baseado numa informação que, verificou-se mais tarde, não tinha credibilidade.

R. - Eu mandei cercar o COPCON porque me foi dito que havia uma reunião em que estavam a estimular o Otelo a retomar a acção militar. Fui lá e quando cheguei o Otelo estava reunido com o seu pessoal. Disse-lhe que ordenaria a detenção dos seus oficiais. Respondeu ele que a reunião era normal e a minha informação errada. Resolvi apesar disso manter a ordem de detenção. Exigiu então Otelo que o detivesse também, dado ser ele o comandante e , por tal, o responsável principal. Respondi: "Não Otelo, eu compreendo ética e militarmente a tua posição mas não te prendo. Se te prendo, vais continuar a ser o mito que és. Não vais preso". Ele insistiu e eu mantive o que dissera.

P. - Mas porque é que ele foi preso depois?

R. - Infelizmente, por uma razão política, não militar, porque de imediato se pretendeu convencer a opinião pública de que não haveria força de coragem para o prender. Acabou-se por detê-lo por uns dias só para dizer que ele não podia continuar a ser uma bandeira. Foi preciso para normalizar a instituição militar.

P. - A esta distância como avalia o papel de Álvaro Cunhal nestes acontecimentos?

R. - Devo dizer que tenho por ele uma grande consideração e uma grande simpatia. Em dez anos de contactos, nunca me enganou uma vez que fosse. Tenho um grande apreço por Álvaro Cunhal. Embora discordando inteiramente dele, reconheço que é um homem de convicções e de uma grande seriedade, que não tem pejo nenhum em assumir a sua diferença, e julgo ainda que é um homem que sacrificou pessoalmente tudo por aquilo que ele julgava que eram os grandes interesses do país.

P. - Falou na questão da honorabilidade em relação a Garcia dos Santos, mas há um homem no PS [Edmundo Pedro] que ainda hoje coloca a questão nessa dimensão, a propósito da questão das armas.

R. - Deve discutir esse assunto com o Dr. Mário Soares.

P. - Porquê?

R. - Só digo que deve discutir a questão com ele.

P. - Nesta altura, as suas relações com o Dr. Mário Soares ainda eram boas?

R. - Eram.

P. - Qual foi o momento em que as coisas se estragaram?

R. - É muito difícil localizar no tempo, não queria avançar por aí.

Políticos não ligavam nada à Constituição P. - Há declarações suas, em 1976, a dizer que não aceitaria candidatar-se a presidente da República. O seu nome foi proposto e aceitou logo. Acha que era politicamente ingénuo quando chegou a Belém em 1976?

R. - Não, o que acontece é que - e eu já disse isso - havia uma luta política que não tinha regras. Hoje estamos numa democracia em que há regras claras que todos aceitam estejam no poder ou na oposição. Naquela altura a democracia não estava minimamente estabilizada e a luta tinha que ser travada na área política, não militar. Entendeu-se que entre os militares com maiores probabilidades de ser eleito estava eu e aceitei. Quando cheguei a Belém, eu era muito militar, na abordagem dos problemas, nas perspectivas, nas relações. Havia coisas que eu não aceitava. Se dias depois um partido decidia em contrário ao que se tinha combinado e me diziam que o partido se reunira e tinha decidido assim, eu tinha dificuldade em aceitar. Outro tanto acontecia com os Governos. Por exemplo: pretendia-se que um conselheiro da revolução ocupasse um lugar numa instituição internacional. Tratava-se da questão com o primeiro ministro, que informava que o Governo não concorda, mas não se vai opor. E dias depois, numa segunda-feira, o PR vê um telegrama que fora enviado sábado com instruções para dar a conhecer ao secretário-geral da instituição a posição do governo. A minha posição era de certa revolta e incompreensão quando o primeiro ministro se justificava depois, esclarecendo que o telegrama fora enviado à sua revelia e que se dispunha a anulá-lo, o que obviamente era interessante eticamente mas sem qualquer efeito prático.

P. - Nota-se em si uma certa amargura em relação à vida política.

R. - Eu sabia que isto era assim o que não admitia era que depois de uma luta perigosa de legitimidades ocorrida antes do 25 de Novembro houvesse quem à semelhança dos irmãos Passos, do Liberalismo, questionasse a própria legitimidade constitucional e ficasse sinceramente admirado quando eu lhe dizia que a Constituição da República Portuguesa era para cumprir independentemente da opinião que dela se tivesse.

P. - No seu primeiro mandato contou essencialmente com o apoio do PS, PSD e CDS. No segundo mandato, teve a simpatia da esquerda. Foi a esquerda que regrediu ideologicamente ou foi o senhor que se modificou?

R. - Julgo que em mim foram depositadas expectativas que julgo que eram infundadas. Admitiu-se que eu ia dizer sim senhor a uma maioria presidencial. É evidente que não o podia fazer. Eu tinha sido eleito a dizer que não estava com partido nenhum, aceitando ser Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas e presidente do Conselho da Revolução. É evidente que não me podia comprometer com partidos e ainda mais, comprometer-me com eles para alterar anti-constitucionalmente a Constituição que eu prometera cumprir, e que é em meu entender a única legitimidade que o país tinha aceite. Se me perguntassem se eu acharia bem que a Constituição tivesse sido referendada, eu acharia óptimo, mas não foi. Obviamente que não podia desviar-me daí e a esquerda percebeu que eu era um homem de palavra.

P. -É um homem de esquerda?

R. - Eu sou um homem de formação cristã e acho que a doutrina social da Igreja é de esquerda. Ela não fala apenas de liberdade, como indispensável, mas também da igualdade, que considera indispensável também. Sempre me situei mais ou menos nessa área.

P. - Perdeu o apoio de metade do PS mas também de muitas pessoas que foram seus aliados, e depois se tornaram seus adversários. Porquê?

R. - Nas relações interpessoais há sempre interferência de uma multiplicidade de factores e é muito difícil equacionar as coisas no branco ou no preto. Na vida política não se pode agradar a todos.

Venda do PRP e proposta de marechalato P. - No PRD tudo começou também com um grande fulgor, ainda sem o senhor lá estar, e depois ficou bastante isolado. Sente-se isolado em Portugal hoje?

R. - Não. Se estivesse aqui constatava as solicitações que tenho, tantas que às vezes é difícil responder-lhes. Eu próprio decidi afastar-me porque percebi que isso convinha de alguma maneira a uma certa clarificação. Aqui há sempre tendência para sacralizar primeiro e diabolizar depois, para ressacralizar outra vez, e eu decidi não pesar na vida política, a não ser que tivesse algo importante a dizer ou a fazer. Durante algum tempo mantive uma certa presença e resolvi depois acabar com isso para ter ocasião de fazer uma reflexão mais profunda e, porventura, vir a colaborar de outra maneira. Nasci aqui para o bem e para o mal e se puder contribuir para resolver os problemas atávicos desta sociedade, tenho o dever de o fazer.

P. - Não teria repetido o PRD?

R. - O PRD correspondeu a uma necessidade real de país. A vida política tinha atingido tal grau de corrupção que era necessário intervir e foi essa a finalidade. Depois houve desvios...

P. - Pelo contrário, o PRD terminou com um estendal de corrupção, comprado até pela extrema-direita.

R. - No PRD há dois tempos. Enquanto foi um pequeno grupo, funcionou bem, teve um papel extremamente importante até na Assembleia da República, para mostrar que o importante não é o partido mas o país. Houve homens com um papel exemplar.

P. - Por exemplo?

R. - Foram tantos que era injusto sublinhar nomes, mesmo a título de exemplo. Houve depois uma fase de agonia. Aquele partido foi feito em obediência a um grupo de cidadãos que subscreveram um documento para o legalizar, e só estes podiam sobre o destino final do partido. Não é decisão que deva caber no arbítrio de um tribunal, Constitucional que seja.

P. - E o senhor, porque não se manifestou?

R. - Entendi que não devia porque tinha algo a ver, era eticamente parte interessada.

P. - Mas sentiu-se violentado?

R. - Senti-me prostituído, que é pior. Assumi sobre isso uma posição pública quando num jantar em Fátima a questão me foi posta pela RTP.

P. - O eanismo existiu?

R. - Temos uma certa tendência para arranjar emblemas, há-os de tudo, e isso tem a ver com a nossa incapacidade para racionalizar bem as situações.

P. - Acha que o Estado, os partidos e os portugueses o têm tratado com justiça?

R. - Eu tive sempre uma perspectiva republicana da vida política. Coube-me um certo trabalho, uma certa missão de missão, que aceitei e assumi. Desempenhei-a com sucessos e com erros. Nunca contabilizei isso nem esperava que a Nação o contabilizasse. Parafraseando Eduardo Lourenço, a Nação nunca deve nada a ninguém, porque deve tudo a todos. Nunca entendi que tenha sido maltratado, e devo dizer que algumas das honrarias que me propuseram as recusei liminarmente.

P. - Há uma honraria que lhe propuseram não a si mas ao Estado. Ferreira do Amaral disse que o senhor devia ser marechal.

R. - Quem é que lhe disse que isso não foi proposto antes?

P. - E não aceitou?

R. - Obviamente o poder não iria propor isso sem fazer uma sondagem antes. De qualquer maneira é situação que nunca aceitaria por razões de natureza militar e ético-política.

A direita não queria aquele 25 de Novembro Público - O dia 25 de Novembro foi decisivo para si? Sentiu que a sua vida podia mudar naquele dia?

Ramalho Eanes - Não equacionei a situação em termos pessoais, mas de país e o país estava numa bifurcação e era crucial para ele seguir uma ou outra via.

P. - Havia toda uma operação preparada...

R. - Havia, mas o planeamento fora feito um pouco teoricamente. A acção realiza-se num contexto concreto, em que muito do planeado não é executado e em que há que executar muito daquilo que não se previa, para que a acção responda à realidade do momento.

P. -Quando saiu de casa de manhã, naquele dia, pensou então que podia não regressar, eventualmente?

R. - No Verão dito "quente", isso passou a ser quase uma rotina - saía-se de casa e não se sabia o que ia acontecer. Eu trazia permanentemente no carro um saco com duas ou três mudas de roupa, um par de camuflados. Admitia que a qualquer altura houvesse uma situação que implicasse que não se voltasse a casa.

P. - Mas, naquele dia, desencadeava-se algo que se esperava há alguns meses, não era uma surpresa.

R. - Era aquilo que se admitia que pudesse acontecer, era a situação mais provável.

P. - Lembra-se de ter pensado "hoje é que é"?

R. - Quando me disseram de manhã que os pára-quedistas tinham ocupado as bases, quem tinha conhecimento da situação político-militar sabia que a partir dali se entrara num caminho irreversível.

P. - Acrescentou às duas mudas de roupa mais algumas?

R. - Não, acrescentei duas granadas de mão ofensivas.

P. - E como se despediu da sua mulher?

R. - Despedi-me como se nada se passasse. Nas alturas dramáticas, temos que desdramatizar.

P. - Pensou que podia não voltar a casa?

R. - Sim, admiti essa hipótese.

P. - E nos meses anteriores, em que tinha começado a conspirar?

R. - O que é dramático não é a acção, é a preparação para a acção, a incerteza da evolução da situação, porque cria uma grande tensão, há uma subjectividade perversa, dependente do nosso estado de espírito. Há dias em que temos tendência para dramatizar os novos dados, para vermos as coisas com cores mais carregadas. Dramáticos foram os meses que precederam o 25 de Novembro. Aquele dia era um pouco, mal comparado, aquilo que acontecia na guerra. Pensa-se "há-de ser o que Deus quiser", e nessa altura a tensão desce bastante e adquire-se uma certa calma, uma grande calma mesmo.

P. - Naqueles meses em que participou mais activamente na preparação do esquema militar para o 25 de Novembro, algum dia sentiu que podia perder a liberdade, ser preso? E sobretudo sentiu que podia ser instaurado em Portugal um regime socialista do tipo soviético?

R. - Para mim, não é aí que se centra o problema. O grande problema era o seguinte: os militares prepararam o 25 de Abril e tinham toda a liberdade moral e política para fazer uma de duas coisas: estabelecer uma ditadura limitada temporalmente, indiscutivelmente limitada, dinamizar a sociedade civil, tentar evitar que se repetissem os erros de colonização política que sempre ocorreram no tempo das ditas "democracias partidárias" ou das ditaduras. Ou então entregar o poder à sociedade e esta que o usasse, livremente.

Se se fizesse a primeira coisa, nem sequer seria uma inovação, já fora feito na Turquia - é verdade que aí foi preciso transformar um regime quase religioso num regime laico. Aqui era preciso desmontar uma longa ditadura, transformar uma sociedade que aceitou passivamente essa ditadura durante muito tempo, que foi menorizada por ela, para que ela pudesse ter uma relação diferente, harmoniosa, mas de sentido reivindicativo com o poder político. Os militares optaram pela segunda via, através de um programa, de um compromisso com a população: entregavam o poder à sociedade civil e esta que decidisse.

Mas os militares não podem, por razões de ética deontológica, atraiçoar as promessas que fazem à população, sobretudo em democracia, porque a população não só paga as armas, como lhas entrega, o que representa uma manifestação de confiança inteira. Essa opção foi traduzida num contrato, o programa do MFA. À legitimidade revolucionária oferecem-se duas vias: a que se traduz na introdução de modificações profundas na sociedade, e isso podia ter-se conseguido numa situação ditatorial; e aquela que só se chama "revolucionária", porque não há outro nome - ou seja, quando se faz e se diz um movimento em que a população vai fazer as modificações que quiser, por via eleitoral, não há bem uma legitimidade revolucionária, mas já uma legitimidade contratual. Era este sentimento deontológico de obrigação, de honra e lealdade que unia os militares do MFA e que leva as Forças Armadas a encontrar o seu povo.

P. - Mas quando é que esse contrato foi quebrado?

R. - Foi quebrado por razões que se prendem com a evolução da situação. Aquilo que se devia ter feito imediatamente era reconstituir o aparelho militar - afastando os restauracionistas, custasse o que custasse, porque eram obviamente um perigo. Reinstitucionalizar portanto o aparelho militar, fazendo com que ele se reconduzisse à sua ideologia formal, própria e indispensável em todas as Forças Armadas (como diz Eduardo Lourenço). Essa ideologia formal é disciplina-unidade-hierarquia. Não há forças armadas democráticas e antidemocráticas. Há forças armadas que servem regimes democráticos ou que suportam ditaduras. A instituição militar exige que os militares assumam responsabilidades que lhe foram atribuídas pelo povo ou pelo poder que legitimamente o representa. Devia-se ter tido isso em conta e não se teve. Houve desde logo uma grande contradição não superada, aceite à boa maneira portuguesa, pantanosa, de conflito com o general Spínola. Esse conflito fez com que nem o general Spínola, nem o MFA, nem ninguém comandasse as Forças Armadas. E isso fez com que a instituição militar não fosse capaz de respeitar o compromisso, a promessa que o MFA fizera ao povo. As portas de armas perderam a guarda, passaram a ser avenidas por onde entraram os partidos que criaram nas Forças Armadas os seus grupos. Aliás, isto já tinha acontecido na I República. A partir daí, não há forças armadas - há um conjunto de grupos militares que estão aliados às diferentes forças políticas.

Comecei a conspirar a seguir ao 11 de Março P. - Quando é que teve essa noção clara. Depois do 11 de Março?

R. - Não, antes do 11 de Março. Tive a noção clara de que as coisas não iam andar a partir do 28 de Setembro, quando o Spínola se demite.

P. - Mas ainda foi para a televisão...

R. - Sim, todos nós pensámos que havia ainda possibilidade de endireitar as coisas, de superar esse conflito que existia na instituição militar. Não aconteceu assim. A população, que tinha confiado nos militares, começou a afastar-se deles, passando a ver no mercado político uma oferta de diferentes legitimidades e cada uma delas com a sua componente militar. A população entendeu e muito bem que, se a única legitimidade era a que resultava desse contrato entre o MFA e a população, e se esse contrato caducara, não havia legitimidade nenhuma. E entendeu que todas as legitimidades tinham uma certa razoabilidade. A razoabilidade das legitimidades em discussão era subjectiva, cada um pensava, possivelmente, o melhor que podia para o país. O único projecto revolucionário consistente era o do PCP.

P. - Depois da derrota do general Spínola, no 11 de Março, houve uma manifestação de adesão ao MFA que foi de norte a sul, parecia que as pessoas se encontravam com aquela solução. Não teve dúvidas disso, pois não?

R. - As pessoas estavam tão ávidas de encontrar o caminho, a solução democrática, o caminho de liberdade em que seriam ouvidas, que elas próprias se pretenderam convencer de que chegara o momento da clarificação. Mas foi um engano. O 11 de Março não é ainda a clarificação - é o afastamento de um dos contendores.

P. - Quando começou a conspirar?

R. - Depois de sair da RTP, a seguir ao 11 de Março.

P. - O papel de destaque que assumiu no 25 de Novembro contrasta com aquilo que aconteceu no 25 de Abril, em que não participou, tal como não participou no 11 de Março.

R. - Comecei a participar na preparação do 25 de Abril. Fui mobilizado para Angola. Acabei por ir em Janeiro. Mas não tive dúvidas a partir de certa altura de que iria para lá antes de eclodir o movimento. Temos que ser muito sérios, quando empenhados em acções que implicam a vida dos outros, e, a partir da altura em que fui mobilizado, disse aos meus camaradas que deixava de participar. Participar é actuar, é marcar um tempo, e, no caso vertente, um tempo em que eu já não ia arriscar.

Em Angola tive contactos com os meus camaradas que estavam a preparar o 25 de Abril. Depois fui para o Norte e vim logo a seguir, porque estava previsto pelo próprio MFA que Firmino Miguel ficaria a dirigir o Exército, seria uma espécie de ministro do exército, e eu ficaria com ele como uma espécie de secretário de Estado. No 11 de Março eu estava na televisão e quem está na televisão, sobretudo num tempo daqueles, não tem tempo para nada. A televisão era tão exigente, era como que uma caixa de ressonância da actividade política. Era necessário dedicar-lhe não oito horas mas mais do que uma dezena de horas por dia.

P. - A televisão, nessa época, não era um instrumento da actividade política?

R. - Era e houve problemas graves, nomeadamente com o meu camarada Vasco Gonçalves. Disse a certa altura ao ministro com quem eu despachava semanalmente, Vítor Alves, que tinha a tutela da área, que não havia possibilidade de fazer funcionar a televisão com duas direcções: uma administração formal, a minha, e a do conselho consultivo, onde estavam representados os partidos políticos e o MFA (entendo que até seria bom que existisse agora, mas naquele tempo não). Os únicos homens que estavam ali todos os dias eram os representantes do PCP e alguns militares. Os outros iam de vez em quando. Acabou por não resultar.

Como era uma altura muito complicada, em que em boa verdade não havia legitimidade nenhuma operacional, os partidos, designadamente o PCP, pretenderam com a legitimidade utilizar a RTP, que era extremamente importante. Por isso, a certa altura disse ao general Vasco Gonçalves que assim não: ou aquela comissão, ou eu. Ele aceitou que a comissão fosse extinta, mas pretendeu que ficassem lá alguns elementos, o que não aconteceu, dada a minha discordância.

Melo Antunes quis a terceira via para Portugal P. - Quando acordou para a política?

R. - Muito tempo antes, ainda na Academia Militar, escrevi para a revista "Proelium". Se fosse hoje, teria tido provavelmente a instituição militar em cima de mim. Eu dizia qual a relação do militar com o Estado. Que o militar devia respeitar o Estado enquanto o Estado respeitasse a sociedade. Mas, quando isso deixasse de acontecer, o militar tinha um problema de consciência que tinha que resolver. Escrevi esse artigo, em 1970, e não me aconteceu nada. Depois houve o congresso dos combatentes. Com outros camaradas, disse que não era admissível que o poder manipulasse os combatentes através de um congresso.

Eu não era um homem com uma grande formação política, mas tinha alguma, como todos os militares da minha geração. Tínhamos participado numa guerra subversiva, que são guerras político-militares. Não havia militar nenhum naquele tempo que não tivesse lido Mao Tsetung, muitos trabalhos do Ho Chi Min, do Giap, e a bibliografia sobre guerra subversiva publicada pelos franceses que era extensíssima. Não era uma formação política completa, mas no MFA, na área a que eu pertencia, o único militar com formação política era Melo Antunes, que chegou a pugnar por uma terceira via socialista. Via que não é a do Blair, que é um caminho entre o socialismo científico, real, do Brejnev, e o socialismo estatalmente administrado, que era a social-democracia, que faliram. E ainda por cima era uma terceira via que muito tinha a ver com a harmonização da igualdade e liberdade e com a doutrina social da Igreja, não com as chamadas "democracias-cristãs".

Melo Antunes era o único homem que entendia que um país atrasado como o nosso não podia ir para o socialismo real, porque aí em nome da igualdade mata-se a liberdade. Mas também não podia seguir a social-democracia, porque não tinha sindicatos organizados com força suficiente, empresários em número e com força suficiente e, sobretudo, porque não tinha riqueza para distribuir. Era preciso avançar numa outra via, na via de um socialismo original. É evidente que ele nunca teorizou muito sobre isso. A verdade é que as preocupações de Melo Antunes aparecem hoje teorizadas, desenvolvidas, fundamentadas. Entre nós, ele era o único com uma bagagem política grande e eventualmente com um projecto original, de liberdade e igualdade. Quando se devolve a liberdade a alguém, mesmo que seja a uma comunidade, ela vai ter dificuldades em usá-la capazmente, porque é necessária uma certa aprendizagem. Melo Antunes tinha da situação nacional essa percepção clara.

A minha percepção é de que a instituição militar é uma instituição séria, mas que pode ser manipulada, como demonstrou o regime de Salazar. Só que, nessa época, a instituição militar sentia-se poderosa, necessária, indispensável, porque havia um império a defender e, sempre que houve impérios, houve uma presença real, significativa, da instituição militar na política.

Partidos tomaram de assalto o poder militar P. - Não acha que o primeiro fracasso do general Spínola ocorre logo a seguir ao 25 de Abril, quando ele tenta essa reinstitucionalização das Forças Armadas?

R. - O grande equívoco foi logo no dia 25 de Abril. Se o programa estava negociado com o general Spínola, estava negociado. Quando Spínola e Costa Gomes pretenderam modificar o MFA, deviam ter ouvido dizer "não".

P. - Não acha que essa divisão político-ideológica estava no MFA antes do 25 de Abril? No próprio dia, há uma corrente que se agrega em volta do general Spínola, outra em volta do general Costa Gomes e uma tentativa do general Spínola de promover a tal reinstitucionalização das Forças Armadas, o que é imediatamente olhado com desconfiança.

R. - O que eu entendo é que a reinstitucionalização das Forças Armadas nunca existiu. Teria eventualmente existido, se Spínola fosse chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, o que, aliás, estava estabelecido, e Costa Gomes o Presidente da República. Foi uma surpresa isto não ter acontecido assim. Agora, como é que o Spínola pode reinstitucionalizar as Forças Armadas, se o chefe é o Costa Gomes?

P. - Poder-se-á dizer que o culpado foi o Costa Gomes?

R. - Sim, em certa medida, mas teria ele condições? Não sei, as condições eram extremamente adversas. Se não tivesse havido divergências de concepção daquilo que deveria ser o desenvolvimento do programa do MFA, provavelmente as coisas teriam sido diferentes. O que aconteceu foi que, imediatamente a seguir ao 25 de Abril, as estratégias de Spínola e do MFA eram conflituantes, desenvolveu-se uma estratégia de conflito e nessa situação é muito difícil fazer seja o que for. Reinstitucionalizar as Forças Armadas, nessa altura, era oferecer a uma ou outra parte força para impor a sua interpretação. Poder-se-á dizer que a partir de certa altura nenhuma das partes estava interessada em que a outra conseguisse reinstitucionalizar o aparelho militar.

P. - Quem tomou o poder militar de assalto?

R. - Todos os partidos políticos.

P. - Houve uma espécie de delírio revolucionário?

R. - Não. As Forças Armadas serviram o poder durante muito tempo, em vez de serem um instrumento em que a população civil pudesse confiar. Foram um instrumento que o Estado, com grandes desconfianças, utilizou. Pensou-se em criar condições para impedir que isto voltasse a repetir-se. Mas quem conhece a instituição militar sabe que não é assim que se faz a limpeza das forças armadas. Aqueles que se entende que não são capazes de se ajustar são passados à reserva com todas as regalias a que têm direito. O que aconteceu é que não houve coragem, nem condições, nem vontade para fazer isso. Mas depois entendeu-se que as Forças Armadas assim estariam mal e entendeu-se garantir a sua lealdade criando uma estrutura paralela. Mas as coisas assim não funcionam, basta ver o que aconteceu na Rússia em 1917. A Rússia demorou gerações a ter um exército leal e responsável e só o teve por causa da guerra contra Hitler.

P. - A que estruturas paralelas se refere? Ao MFA e ao Conselho da Revolução?

R. - Não, estou a falar das estruturas políticas ligadas à 5ª Divisão.

Nem Otelo, nem o PCP mandaram os "páras" P. - Vamos voltar ao dia 25 de Novembro. Quando vai para o Regimento de Comandos da Amadora, tem a informação de que os pára-quedistas tinham ocupado as bases. Quem deu essa ordem?

R. - As informações que tinha é que Otelo tinha dado ou coberto essas ordens.

P. - E hoje, quem acha que as deu?

R. - Estou convencido de que as ordens saíram do Copcon.

P. - Não foi o PCP, como diz Freitas do Amaral, nas suas "Memórias"?

R. - Não é isso que se infere do relatório, nem das conversas com os envolvidos, nomeadamente o próprio Otelo - e ele sempre assumiu perante mim, sem desvios, as suas responsabilidades. Creio que mo teria dito, se tivesse sido ele a dar a ordem directamente. Também não estou a ver um partido a dar uma ordem, mesmo a militares que estivessem com ele. Para mim, isso não é historicamente verdade.

P. - Mas aquele tipo de acção era aquilo de que estavam à espera para desencadear o vosso plano?

R. - Do que estávamos à espera era de uma acção de força.

P. - De quem? De Spínola? Da direita?

R. - Da direita não. A direita tinha montado estruturas, MDLP, etc. Essas estruturas estavam muito dependentes de alguns militares, e as acções dos militares eram relativamente previsíveis. Menos previsíveis seriam as acções militares com ligação a forças políticas. A extrema-esquerda na altura disse, e com razão, que a burguesia só podia dirigir o país com a força da coerção. O pior é que, não tendo instrumentos de coerção, porque as Forças Armadas não estavam com ela, não tinha poder para fazer nada e era isso que se verificava, nomeadamente quando foi do cerco à Assembleia Constituinte.

O que se admitia era que a extrema-esquerda avançasse e, se avançasse, o PCP, por razões políticas naturais, não podia deixá-la só nessa investida, até por razões de sobrevivência. Imaginemos que a extrema-esquerda isolada ganhava, o que era possível, desde que o Otelo jogasse com ela e o Otelo estava-lhe muito próximo. Cortar também a cabeça ao PCP seria muito provavelmente um dos seus objectivos.

P. - Mas também se diz que Otelo foi ultrapassado dentro da sua própria casa, o Copcon.

R. - Acho que sim. Quando se sabe que naquela noite o Otelo foi para a Presidência e depois resolveu ir para casa, percebe-se que só não houve maior participação de forças adversas aos Nove porque a mobilização operacional das mesmas exigia que Otelo desse a cara. Cunhal - um homem em cuja sinceridade eu acredito, embora estejamos nos antípodas em termos ideológicos -, no livro "As Mentiras e as Verdades do 25 de Abril", diz que o PCP adoptou uma posição de contenção, afirmação que eu não contesto. Houve, no entanto, muitos elementos do PCP que, já depois do 25 de Novembro, continuaram muito empenhados - e isso é razoável. Se eu estivesse naquela área, provavelmente também não resistiria a tomar determinadas atitudes, mesmo um pouco à revelia do partido. Do que não tenho dúvidas é que a ordem para os pára-quedistas não saiu do PCP.

P. - O que é curioso, o que desencadeia a vossa acção é a ocupação das bases, mas os senhores não vão tentar desocupá-las - vão tentar é controlar duas ou três unidades em Lisboa que representam um certo espírito revolucionário.

R. - O que sempre admitimos é que haveria um movimento civil/militar para se apossar do poder. E sempre entendemos que esse movimento poderia começar em qualquer sítio, mas que se iria definir em Lisboa. Esta era a área onde havia as grandes unidades, os grandes depósitos de munições e armamento, os bancos, a televisão, etc. Na altura do planeamento houve entre nós quem quisesse que tomássemos a iniciativa e nos deslocássemos para Mafra, para a Escola Prática de Infantaria, Rio Maior e Santarém (Escola Prática de Cavalaria).

P. - E deixassem a "comuna de Lisboa"?

R. - Sim, mas na altura tal posição não venceu, pois, numa perspectiva política e logístico-militar, entregava-se ao adversário a área de maiores potencialidades, a Grande Lisboa.

P. - O coronel Vasco Lourenço disse que se esteve a milímetros dessa opção [pelo abandono de Lisboa] e que o próprio Melo Antunes estava de acordo, numa reunião nas Laranjeiras, poucos dias antes do 25 de Novembro.

R. - Não me recordo que o Melo Antunes a tenha defendido. Sei que eu, que era o encarregado da parte operacional do plano, discordei e tentei demonstrar que seria um erro crasso. Houve vozes a favor e vozes contra, mas ficou decidido que não se ia. O Jaime Neves estava muito preocupado e mesmo ansioso por passar à acção, porque todos os dias sentia perder um pouco o comando da sua unidade. O que foi dito então é que não se podia passar à acção e muito menos sair de Lisboa.

P. -Quem esteve presente nessa reunião, que foi decisiva?

R. - Muita gente. Estiveram os Nove, esteve o Jaime Neves.

P. - A direita e a extrema-direita militar também estão?

R. - Não.

P. - Jaime Neves queria uma acção que contivesse o PCP, ou que o esmagasse? Foi ele que disse a Costa Gomes, a seguir ao 25 de Novembro: "Nós não estamos satisfeitos"?

R. - É preciso não esquecer que foi o Jaime Neves quem foi receber o Cunhal ao aeroporto de Lisboa, em 27 de Abril de 1974. Ele é o operacional sentimental, sempre disponível para ir para a frente, nunca contabiliza riscos, é um comandante nato. Mas o PCP fez-lhe uma coisa que ele nunca perdoou: "retirou-lhe" o comando. Ele era um comandante a quem os homens adoravam, que tinha com eles uma relação estranhamente eficaz (que eu nunca tive) que é equívoca e comprometedora, mas muito mais rica. Sabem o que é para um homem desses um dia não poder entrar na unidade? Quem o conhece sabe que ele jamais perdoaria. É, aliás, o Otelo que, ao saber que foi o PCP a tomar a iniciativa de retirar ao Jaime Neves o comando do Regimento de Comando e depois de lhe ter dito "Jaiminho, perdeste a confiança dos teus homens", o repõe no comando do regimento, numa daquelas sessões à portuguesa, em que os militares que estavam afectos ao PCP se confessaram, fazendo autocrítica. Quando certas pessoas dizem que Jaime Neves é um anticomunista primário, afastam-se da verdade. Ele era por razões afectivo-pessoais um anticomunista.

P. - Mas, quando Jaime Neves pediu que se avançasse e Melo Antunes veio à televisão defender o PCP, ele estava isolado? Não representava outros sectores militares?

R. - Outros poderiam querer que ele os representasse, mas não representava. Naqueles dias, quem deu as ordens ao Jaime Neves para se expor fui eu, e ele aceitou tudo.

Tivemos contactos com o MDLP P. - Nunca pensaram nas consequências da vossa vitória no plano político? Chegou-se a pensar em ocupar sedes de partidos e de sindicatos. Não havia pessoas no movimento com convicções mais direitistas e menos democráticas?

R. - Não é verdade. Para todas as situações idênticas à que se viveu, há um plano de operações político-militar. Desde sempre foi grande propósito desse plano restituir o poder político à sociedade civil. E na sociedade civil os sindicatos também são indispensáveis.

P. - Porque é que foi Melo Antunes o escolhido para ir à televisão?

R. - Porque aquilo que o Melo Antunes dissesse o PCP aceitava, embora ele fosse muito anti-PCP. Houve um jornalista da imprensa estrangeira que disse que a democracia pluralista tinha nascido naquele momento e é verdade. Mas o Melo Antunes foi estigmatizado por aquela atitude e eu também, mais tarde.

P. - A pressão política para ilegalizar o PCP era muito forte?

R. - Não exageremos. Houve um movimento tendente a estigmatizar o PCP, e com uma certa razão, porque o PCP não percebeu bem, a certa altura, a sociedade em que estava inserido. Teve esse movimento manifestações diversas, radicais algumas, como o incêndio de sedes suas no Norte. Posso esclarecer que não foram da responsabilidade dos militares.

P. - Chegou a ser convidado para comandar uma parte do MDLP, não é verdade?

R. - Sim, a parte de Lisboa, mas não aceitei, até porque, além do mais, estava comprometido com o movimento liderado pelo Grupo dos Nove.

P. - Quando é que a acção dos Nove começou a ser planeada?

R. - Em Abril, Maio, talvez. Foi preciso contactar todas as unidades, para saber qual a situação, em termos de potencial militar, quais os camaradas com que podíamos contar, foi complicado.

P. - O que teria acontecido, se não tivesse havido a ocupação das bases pelos pára-quedistas?

R. - Naquela situação, teria havido outra coisa qualquer, dado o conflito entre as diferentes legitimidades, conflito que eu percebo e que digo que é razoável, a partir do momento em que o MFA se esqueceu de impor a sua legitimidade. E muitas das legitimidades eram defendidas por pessoas muito sérias, que estavam convencidas de que o que elas queriam era o melhor para o país. A partir daí, e não havendo nenhuma que tivesse uma força dominante, era evidente que haveria um conflito pelo poder. Não há situações de vazio de poder.

P. - Vamos a ver se entendemos: os senhores estavam à espera de qualquer coisa, mas quem é que disse que aquilo - a saída dos pára-quedistas - era a coisa de que estavam à espera, para avançarem para a Amadora?

R. - Esse processo tem a ver com a nomeação de Vasco Lourenço para o comando da Região Militar de Lisboa. É isso que desencadeia a acção dos pára-quedistas. Lendo aquela reacção, conclui-se que era uma primeira fase de um plano mais vasto a que era preciso responder. E a conversa com Costa Gomes vai nesse sentido.

P. - Nesse dia?

R. - Nesse dia à tarde. É-lhe apresentado o plano e é-lhe dito que nós estávamos em inferioridade clara. A nossa superioridade podia ser conseguida mediante a utilização da Força Aérea. "Se o senhor demora a decidir-se, como ainda há que montar o posto de comando, já não poderemos actuar senão à noite e arriscamos assim as possibilidades de sucesso." O general Costa Gomes continuava a querer que se esperasse pelo [então capitão e ex-ministro do Trabalho, conotado com o PCP] Costa Martins, que tinha ido negociar com os pára-quedistas. Ora, naquela altura já não havia negociação possível, era necessário avançar.

P. - É o senhor que manda sair o Jaime Neves para o GDACI e para a Ajuda?

R. - Quando chegámos à Amadora, para montar o posto de comando, era noite. Mas o que admitimos é que o adversário, sabendo que não tínhamos a superioridade, acreditaria que não iríamos desencadear qualquer acção nocturna. E era necessário utilizar o efeito de surpresa actuando sobre áreas críticas fundamentais. Actuou-se de imediato contra o GDACI, que era importante numa perspectiva do comando e comunicações; actuou-se sobre a televisão, na área de Coimbra, e sobre a rádio na área de Porto Alto. Para aí foram camaradas de Engenharia à paisana, nas suas viaturas pessoais, tecnicamente tão bons e de tal confiança que nunca admiti que falhassem.

Otelo e Jaime Neves foram decisivos P. - Quem mandou a força comandada pelo Jaime Neves para a Ajuda? O general Costa Gomes diz que foi ele.

R. - Não creio que o tenha dito. Fui eu. A Polícia Militar hesitava na atitude a tomar. Foi o comando da Amadora informado de que haviam convocado um plenário para decidir. Não podíamos esperar, dado não se ter ainda invertido a correlação de forças. Logo que os comandos saíram, comunicou-se a Belém, como sempre se fazia, quando se mandavam sair homens.

P. - Vasco Lourenço escreveu na revista "História" que o problema era saber se os três oficiais que comandavam a Polícia Militar iam à Presidência e que a meio do caminho eles disseram que se iam entregar a Belém, que o Vasco Lourenço lhe comunicou isso mesmo e que o senhor disse que já não tinha possibilidades de mandar parar a coluna.

R. - Não me recordo, mas o que posso dizer é que, ponto um - e isso consta do relatório -, eles admitiram que se iam entregar, eles iam fazer uma assembleia; ponto dois, isso não deve ter sido assim, necessariamente, porque eu tinha ligação rádio com eles e podia sempre actuar. Aliás, a prova é que, quando se cerca o Copcon, eu mando avançar a força e depois recebo do interior do Copcon a informação de que os fuzileiros se instalaram. Portanto, houve uma alteração significativa daquela situação pontual e o que eu fiz de imediato foi mandar comunicar à força que devia tardar o seu movimento e esperar que eu chegasse. Eu integrei essa força.

P. - Se os fuzileiros tivessem actuado, os resultados teriam sido diferentes?

R. - A situação teria sido diferente, se o Otelo, em vez de ir para casa, tivesse ficado a comandar o seu pessoal. Aí os fuzileiros possivelmente teriam entrado. Como diferente teria sido a situação, se o Jaime Neves (que é um grande comandante, o país nem sabe o que lhe deve), quando chega à Ajuda, é recebido a tiro e lhe matam um tenente, um homem novo, com grande prestígio, não comandasse bem os homens. Quem comanda homens sabe como é difícil parar o fogo. O controlo é então difícil e os efeitos por vezes terrivelmente nefastos. Ele, apesar de ter dois homens mortos, comandou o fogo dos seus homens e do outro lado houve apenas um morto. Foi de grande importância a acção de Jaime Neves.

P. - Não houve mais pessoas importantes, por exemplo, aquelas que convenceram os fuzileiros a não sair, nomeadamente alguns elementos do Conselho da Revolução ligados à Marinha, como Rosa Coutinho e Martins Guerreiro?

R. - Do Martins Guerreiro não sei. No dia 25 à noite contactei pessoalmente com ele para resolver a situação do Centro de Transmissões da Marinha (CTM). Disse-lhe que ele tinha não sei quantos minutos para actuar, e que, a não o fazer, eu mandaria atacar o CTM. Não chegou a ser atacado, foi o Martins Guerreiro que acabou por fazer com que as coisas se alterassem. Admito (isso não consta dos relatórios) que sim, que ele terá tido alguma influência, até porque o Martins Guerreiro é um homem inteligente, com grande sentido prático, não é nenhum aventureiro.

P. - Se tivesse havido resistência, o que teria acontecido?

R. - Uma guerra civil.

Aviões contra o Ralis e Tancos e armas para o PS P. - Chegou a ser pressionado pelos militares mais à direita para usar de meios aéreos contra o Ralis?

R. - Realmente esteve prevista uma acção contra o Ralis e outra contra Tancos, estava tudo pronto, planeamento e meios. Contra o Ralis, quando cheguei à conclusão de que seria necessário actuar, chamei os camaradas da Força Aérea e disse-lhes qual a acção que lhes estava destinada. Não foi com agrado e sem relutância que receberam a indicação. E percebe-se. Uma acção que implique mortos é sempre preocupante. Disse-lhes que a ser necessário, contava com a sua acção. Perguntaram-me se não haveria outras soluções, se não se poderia conseguir o mesmo efeito de outra maneira, porque a verdade é que eles não gostariam de intervir...

P. - Ou seja, não se pode falar de pressões que tenham sido exercidas sobre si...

R. - O que se pode dizer é que houve pressões da minha parte para eles estarem prontos. Obviamente, e desde o início que quisemos que não houvesse sangue e, sobretudo, pretendemos evitar a guerra civil, porque os homens da minha geração aprenderam muito com a guerra civil espanhola. Mas o que entendemos é que quando entrámos naquilo era para resolver a situação.

P. - A distribuição de armas aos civis faz parte desse quadro?

R. - Isso consta do plano de operações, claramente. Não é verdade que nesse plano alguma vez estivesse prevista a distribuição de armas a outros partidos que não o PS e o PSD. Acabaram por não ser distribuídas ao PSD. Ao PS foram distribuídas, e devo dizer que a responsabilidade da decisão na altura foi minha.

P. - Quantas? 150 G-3?

R. - Não sei quantas. Estava previsto que seriam muito mais do que 150 porque a ideia era que grupos de civis se juntassem à acção militar. Por exemplo, criar dificuldades à saída de militares de unidades adversas era missão atribuída pelo plano de operações a civis. A acção que planeámos executar era uma acção militar, sem dúvida, mas desenvolvida em benefício daquilo que se entendia serem os interesses da sociedade civil em vivência democrática.

P. - Portanto, naquele momento, pensava que a coisa iria ter maior amplitude, que não se iriam ficar por aquelas duas acções...

R. - Naquela altura, admitíamos tudo. É evidente que não sabíamos como os adversários iriam responder. Tínhamos feito um estudo da situação, tínhamos feito uma análise comparada de forças e sabíamos que eles tinham muita força, quer na área militar, quer civil.

P. - Vasco Lourenço já disse em várias ocasiões que desconhecia a distribuição de armas aos civis e, teoricamente, ele era seu superior na cadeia de comando.

R. - Só teoricamente. Ele tinha sido nomeado comandante da Região Militar e Costa Gomes delegou capacidade de decisão na Região Militar directamente em mim e na Amadora. Mas se ele não sabia, isso significa que não tinha lido bem a ordem de operações, que existe, está publicada no livro de Freire Antunes [ "Segredos do 25 de Novembro"]. Está lá e está correcta. Esclareço que não fui eu que a dei a Freire Antunes. Da ordem de operações consta a distribuição de armas aos civis.

P. - Qual o papel reservado ao PS pelo grupo dos Nove?

R. - As relações preferenciais do grupo era com o PS. Era o partido com maior implantação, representação democrática, com maior aproximação afectiva e não só com os militares. Tinha havido várias reuniões com elementos do partido para uma eventualidade de eles terem que participar numa acção deste tipo. Eles próprios se tinham comprometido a arranjar armas, e arranjaram, mas sem interesse ...

P. - Porquê? Não prestavam?

R. - Eram pistolas, armamento sem grande interesse operacional.

MRPP sim, Igreja não P. - Há também referência ao papel desempenhado pela célula do MRPP nos TLP.

R. - Isso foi importante, muitas das nossas informações foram fornecidas pelo MRPP, através do Arnaldo de Matos ou de pessoas por ele indicadas. Aliás, houve sempre uma grande precisão nas informações fornecidas por eles.

P. - Quer isso dizer que o MRPP esteve ligado operacionalmente ao 25 de Novembro?

R. - Eles vinham desde há muito tempo a fornecer-nos informações. Aliás, há uma grande ligação afectiva entre mim e

o Arnaldo de Matos, que foi meu alferes em Macau e em Moçambique.

P. - Será a essas ligações espúrias a que Vasco Lourenço se quer referir? O grupo militar contava com o MRPP, que era um grupo maoista, e também tinham ligações com o MDLP. A que ponto foram as ligações com o MDLP?

R. - As ligações com o MDLP eram muito reduzidas e visavam saber o que eles podiam ou queriam fazer. Realmente houve contactos para que, numa situação como aquela, eles pudessem accionar determinados meios, o que, tanto quanto sei, não se chegou a verificar

P. - Contactos entre quem e quem? Entre o major Vítor Alves e Alpoim Calvão em casa do Valentim Loureiro, por exemplo? Mas Vasco Lourenço contesta que isso tenha sido feito em nome dos Nove.

R. - O que julgo é que se confundem duas coisas muito diferentes. Alpoim Calvão é do meu curso e praticamente do curso de Vítor Alves. Essa reunião terá sido, provavelmente, apenas uma reunião entre amigos. As pessoas têm uma certa dificuldade em perceber as relações entre militares. Eu fui defender Otelo. E recebi muitas pressões para não o fazer. Eu disse sempre, sou amigo do Otelo, sempre recebi dele as melhores provas de amizade, e o facto de termos estado em posições diferentes isso teve a ver com o nosso entendimento daquilo que mais convinha ao país. Eu não o condeno, que o condenem outros, e não é isso que impede que eu vá defendê-lo, que eu vá dizer o que penso dele. De maneira que esses contactos poderão ter muito que ver com isso. Dentro do grupo dos Nove poderá ter havido contactos que eu desconheço, há outros que eu conheço. Eu próprio reconheço que estabeleci contactos com elementos do MDLP.

P. - Com Alpoim Calvão?

R. - Não, com Alpoim Calvão não, nessa fase. Tive relações com ele já depois de sair da presidência.

P. - E com o general Soares Carneiro?

R. - Com ele tive vários contactos.

P. - O General Soares Carneiro serviu de ponte entre o grupo dos Nove e o MDLP?

R. - Não, nunca se chegou a saber exactamente quais eram as ligações dele. Era um homem com uma certa influência na área militar e que se sabia que tinha algumas relações com o MDLP.

P. -Outra componente decisiva nesta altura era a Igreja. Enquanto grupo militar estabeleceram contactos com a hierarquia da Igreja?

R. - Não, é bom que se faça essa pergunta para que fique bem claro que não tínhamos quaisquer contactos com elementos da Igreja.

P. - As movimentações directamente patrocinadas pela Igreja no Verão quente, nomeadamente através da Sé de Braga, influenciaram positivamente a acção do Grupo dos Nove?

R. - Influenciaram positiva e negativamente. Positivamente na medida em que encurralaram, cercaram o PCP, tornando-o mais vulnerável, mas também negativamente na medida em que desencadearam uma onda de anticomunismo que depois do 25 de Novembro se manifestou e chegou a exigir a cabeça dos comunistas. Muitas vezes me perguntaram que contactos eu tive com o cónego Melo e eu dizia a rir que só conheci o Cónego Melo muito depois do 25 de Novembro, numa festa.

O 25 de Novembro dos Nove e os outros P. - Estamos na altura de tentar fazer a leitura do 25 de Novembro. Houve vários 25 de Novembro? É que, se calhar, não houve só um.

R. - O que eu digo é que o 25 de Novembro que está ligado ao grupo dos Nove e que teve o seu comando na Amadora pretendia dizer à população que os militares respeitam a sua palavra, que são dignos de ter as armas que a população lhes entrega, e que restituir o poder à sociedade civil era de alguma maneira retomar o programa do MFA no 25 de Abril. Este movimento teve por finalidade reactualizar o compromisso assumido no 25 de Abril. Dir-se-á que o programa do MFA não foi depois inteiramente cumprido. Evidentemente, já não podia sê-lo, porque as coisas tinham-se modificado entretanto. Mas foi cumprido no essencial. Logo depois do 25 de Novembro publicávamos um diploma em que o poder militar reconhecia a supremacia do poder civil e os militares decidiam por sua própria iniciativa que não estão ao serviço de qualquer partido, mas do país. A instituição militar afirmava que não era apolítica, mas que era apartidária. O país podia então dizer se queria ir para a direita, para a frente ou para a esquerda e que os militares respeitariam a sua opção.

Por outro lado, reinstitucionalizámos as forças armadas, em circunstâncias muito mais adversas do que aquelas que teria havido a seguir ao 25 de Abril. Muitos militares tinham quebrado objectivamente o vínculo de lealdade à instituição militar e criado amizades, relações, compromissos com forças políticas. Outros tinham-se habituado a um certo protagonismo e não estavam disponíveis para se submeterem de novo ao apagamento que a instituição militar exige, e bem, enquanto instrumento armado da sociedade civil e do Estado. Reinstitucionalizámos as forças armadas em situação de extrema dificuldade, que muito viria a aumentar porque partidos houve que tentaram interferir negativamente na instituição militar. Chamo a atenção para uma intervenção partidária em 1979/80 que foi extremamente grave, que foi anunciar que se pretendia escolher um candidato em contacto com a hierarquia militar. Isso era voltar ao antigamente, ao tempo de Salazar, em que a instituição militar sugeria um nome para Presidente da República.

P. - Não acha que esse episódio da AD e da escolha do general Soares Carneiro...

R. - Não estou a falar do general Soares Carneiro. Podiam os partidos políticos tê-lo escolhido, o que seria natural. Estou a falar do que os partidos disseram antes: vamos escolher um candidato em diálogo com a hierarquia militar. Isso era inaceitável por duas razões: a primeira era política porque significava comprometer a instituição militar com os partidos através de um eventual Presidente da República; a segunda era militar. Significava que os partidos, através de tal afirmação resolviam simultaneamente apelar à hierarquia militar e não a respeitar, dado ser eu o chefe do Estado Maior General das Forças Armadas (CEMGFA).

P. - Isso não poderá ter sido precisamente a expressão de uma certa direita que achou que o 25 de Novembro não correspondeu exactamente àquilo que pretendia?

R. - O que eu entendia na altura era que se pretendera mostrar à opinião pública que o Eanes é CEMGFA mas não comanda as Forças Armadas, não tem atrás dele o poder militar. Foi a leitura que eu fiz na altura e que mantenho.

P. - No fundo há um entendimento de que, com o 25 de Novembro, o PCP se legitimou na área do poder, não foi um derrotado.

R. - Aí há um grande equívoco, o PCP não tem que ser legitimado por ninguém...

P. - Mas, em Dezembro de 1975, o general Spínola escrevia do Brasil para cá a Alpoim Calvão uma carta que está publicada a defender a realização de um referendo nacional para se apurar se o PCP devia ou não ser considerado um partido democrático.

R. - Quem legitima os partidos é a sociedade civil, apoiando-os ou não. É a sociedade civil que entende que para manter uma certa moral é indispensável que haja um instrumento, um sistema político, com vários subsistemas, um deles é o militar. Ninguém tem o direito de legitimar seja o que for em matéria de partidos políticos.

P. - Se olharmos agora à distância de 25 anos, o 25 de Novembro que na altura foi visto como uma derrota do PCP, provavelmente foi afinal a legitimação do PCP e a derrota da extrema-esquerda.

R. - A nossa preocupação em relação à sociedade civil era tão grande que só actuámos contra homens da instituição militar, de quem éramos amigos, com uma grande dor de alma...

P. - Homens que representavam a ideia do poder popular...

R. - Homens que nós entendíamos que tinham contrariado militantemente a nossa obrigação moral em relação à sociedade civil. Não perseguimos um só elemento ou organização que fosse da sociedade civil. Não actuámos minimamente contra a sociedade civil. Já tinha havido eleições, os partidos que tinham participado estavam legitimados e só novas eleições podiam dizer se aqueles partidos mantinham a quota legitimária original ou outra. Não nos podíamos substituir à sociedade civil num juízo de legitimidade que só a ela competia. Não podíamos permitir que se perseguisse ninguém, não quisemos legitimar ninguém, o que quisemos foi impedir que abusivamente e em nome de uma vitória que nós pretendíamos que fosse inteiramente da sociedade civil alguém pudesse dizer 'estes são legítimos e aqueles não'.

P. - Há aí uma contradição com o que contou atrás, sobre o privilégio concedido ao PS quando lhe entregaram armas em detrimento doutros partidos...

R. - Não, não, nós fizemos isso numa situação de pré-confronto e, ao fim e ao cabo, a distribuição de armas não foi privilegiar, foi comprometer. Entendíamos que não tínhamos força suficiente para responder sozinhos, que havia acções complementares que podiam ser desempenhadas por elementos civis e estes, ao participarem, estavam a demonstrar que a nossa acção não era um movimento dos militares, era um movimento em que os militares estavam, obviamente, mas com a sociedade civil.

P. - Já agora, o facto de o PCP ter desmobilizado os militantes que estavam à volta dos quartéis, sobretudo aqueles que eram os vossos alvos, fez com que o PCP tivesse salvo a cabeça?

R. - Não, muitos dias depois militantes do PCP continuaram, por exemplo, no Montijo, a estimular, a distribuir armas. Nós tínhamos que combater o que se opunha, mas resolvido isso não íamos ilegalizar fosse quem fosse, isso seria substituir-nos à sociedade civil em democracia.

P. - Como explica então aquela sucessão de bombismo que se prolongou desde finais de 75 até à primavera de 76 e que culminou num julgamento bastante controverso. Acha que foi um fenómeno de delinquência puro e simples ou um fenómeno político?

R. - Foi um fenómeno muito complexo, com uma componente política muito acentuada. Julgo que houve muitos ajustes de contas e também que uma certa extrema-esquerda desesperada resolveu entrar nesse caminho.

P. - Estamos a falar de algo que aconteceu antes da extrema-esquerda aparecer.

R. - Para certa área da direita eu ainda hoje sou um demónio. O 25 de Novembro não foi o que desejavam. Tinham investido num outro 25 de Novembro. Eu não tinha relações com ela, nada que ver com a sua acção, e não possuo muito mais informações do que as que são do domínio público.

P. - Que outro 25 de Novembro era esse em que a direita tinha investido?

R. - Estou convencido, embora não tenha muitos dados, que era um 25 de Novembro para, se não fosse restaurar um regime anterior, criar um regime muito próximo desse.

P. - Disse o brigadeiro Pires Veloso (ao PÚBLICO de 14/11) que o verdadeiro 25 de Novembro foi dirigido não a partir de Lisboa, mas sim da Região Militar do Norte, com o apoio das Forças Armadas.

R. - Creio que a melhor e mais esclarecedora resposta se encontra em diversos documentos históricos, já do conhecimento do público, e a que a comunicação social dispensou cuidada atenção e largo espaço. Recordo os relatórios oficiais da comissão de inquérito ao 25 de Novembro e dos vários contra-relatórios, já publicados. Chamo também a atenção para o trabalho publicado pelo historiador Freire Antunes e intitulado "Segredos do 25 de Novembro", que apresenta larga documentação. Aliás, felizmente, ainda estão vivos quase todos os militares que, em Belém e na Amadora, e em muitas unidades do país participaram na operacionalização político-militar do 25 de Novembro. São pois um testemunho disponível, importante e seguramente esclarecedor. Se havia outros movimentos político-militares em preparação - e eu admito que sim - será bom que, finalmente, se assumam e revelem quais os seus propósitos e aliados políticos.

Spínola foi levado no 11 de Março e não comandava o MDLP P. - Envolve nesse outro 25 de Novembro o MDLP e o ELP?

R. - Não o MDLP como movimento que, em minha opinião, albergaria várias tendências que o próprio general Spínola não dominava completamente. Aliás ele nem sabia bem o que se tinha passado no 11 de Março. Spínola era um homem bom e no interrogatório a que foi sujeito quando regressou a Portugal faz um relato e refere determinadas personalidades. Uns dias depois pede para ser ouvido e diz que tem determinadas correcções a fazer porque tinha falado com os seus homens de cá e havia afirmações que fizera que não estavam correctas. Isto revela uma preocupação de justiça, mas também revela que ele no 11 de Março foi "levado". Não haveria um mas vários MDLP's e o MDLP do Spínola, não tenho dúvida, o que pretendia era restaurar uma situação democrática.

P. - Mas Alpoim Calvão refere o episódio das duas mil armas que o Holden Roberto entregou, que foram desembarcadas em Cádis, transportadas para Tuy, e que havia a intenção de as colocar dentro do país para criar um clima de sublevação. E essas armas foram desembarcadas depois do 25 de Novembro.

R. - O que eu sei é que o Alpoim Calvão resolveu desmobilizar depois do 25 de Novembro. O que julgo, e é uma leitura meramente pessoal, é que havia uma certa dinâmica de planeamento e execução, e que aquilo persistiu uma certa inércia do movimento durante algum tempo mesmo depois do 25 de Novembro. Eles não sabiam muito bem o que ia acontecer e possivelmente algumas das fontes que eles tinham cá tê-los-ão informado de que a nossa acção teria sido um golpe meloantunista - coisa complicada para a direita que fazia uma exploração perversa do pensamento de Melo Antunes. Só depois de Melo Antunes morrer se reconheceu generalizadamente que ele teve um papel extremamente importante em todo o processo.

P. - É por isso que não se entende a continuação do bombismo até 1976, até ao início do desmantelamento da rede bombista. Havia ali uma dimensão meramente delinquente?

R. - Não posso responder completamente à pergunta, o que julgo é que todas as organizações acabam sempre por ter contactos na marginalidade, que adquire uma certa autonomia. Julgo que havia algum comando, provavelmente outro comando...

P. - Ramiro Moreira foi preso e disse que havia toda uma retaguarda de protecção, do MDLP, do Conselho da Revolução, do Grupo dos Nove, etc.

R. - Havia um grupo a funcionar, agora que esse grupo tivesse ligação ao Grupo dos Nove duvido. Que essa ligação fosse anterior e que algum elemento do Grupo dos Nove tivesse tido dificuldade em quebrá-la, isso admito.

P. - Eles invocavam ligações ao [antigo conselheiro da Revolução] Canto e Castro e ao [antigo comandante da PSP do Porto] Mota Freitas.

R. - Canto e Castro era muito leviano, nomeadamente nas suas relações de amizade, mas fora isso era um homem perfeitamente correcto.

P. - Porque é que os crimes do Padre Max e do Ferreira Torres se transformaram em segredos de Estado?

R. - Em segredos de Estado não, se assim fosse eu teria tido conhecimento. Se não foram conhecidos foi por outras razões, não de Estado. Mas sobre isso sei apenas o que apareceu nos jornais. Nunca a Judiciária, nem a Procuradoria-Geral da República alguma vez me forneceram mais elementos do que aqueles que a comunicação social referiu.

P. - Porque é que o processo da rede bombista nunca transitou da justiça militar para a justiça civil?

R. -Nunca transitou? O que eu posso dizer é que isso não se deveu a nenhuma decisão minha. Embora eu não esconda que quando prenderam Mota Freitas eu tomei uma atitude, que julgo correcta na perspectiva militar: entendi que tendo ele sido um militar com um percurso extremamente interessante, devia ficar preso numa unidade. Na altura fui criticado por isso, mas decidi assim.

P. - Numa leitura política do seu comportamento naqueles anos em que foi chefe do estado Maior General das Forças Armadas e Presidente da República, diz-se que privilegiou claramente a direita. Hoje acha que sim?

R. - O que se tem dito e com razão é que na reinstitucionalização militar eu recuperei muitos homens que eram considerados de direita. Eu tentei restituir à instituição militar a sua ideologia formal, distintiva - hierarquia, unidade, disciplina. Isto exige quadros de grande competência, competência que procurei em muitos dos militares mais antigos, independentemente das suas posições, porque entendia que havia neles competência e lealdade. Acertei a 100 por cento? Infelizmente não. Alguns houve que, tão traumatizados estavam, não conseguiram ultrapassar isso. Mas, a verdade é que apesar de tudo a instituição militar teve um comportamento genericamente correcto.

Melo Antunes, Garcia dos Santos, Otelo, Cunhal

P. - Temos uma lista de nomes e gostaríamos que nos desse a sua opinião sobre o papel deles no 25 de Novembro: Costa Gomes, Otelo, Melo Antunes, Jaime Neves, Tomé Pinto, Rocha Vieira, Vasco Lourenço, Garcia dos Santos, Costa Brás, Dinis de Almeida, Morais e Silva, Costa Martins, Rosa Coutinho, Carlos Fabião, Pires Veloso, Gomes Mota, Vasco Gonçalves, Varela Gomes, Canto e Castro, Aventino Teixeira, Sá Carneiro, Mário Soares, Álvaro Cunhal e Freitas do Amaral.

R. - Desses nomes , e porque já disse o que penso de Jaime Neves, limitar-me-ei a falar de Melo Antunes. Foi uma peça fundamental em todo este processo pela sua sensatez, pelos seus conhecimentos, tolerância e capacidade negocial. E queria também falar de Garcia dos Santos. Para os militares, sobretudo os da minha geração, a honra é fundamental. Para nós, que não somos homens motivados por dinheiro, (mas por honrarias sim, no sentido das condecorações, que tinham um certo significado para nós), não há nada pior do que ser acusado de desonestidade e Garcia dos Santos arriscou-se a ser acusado de desonesto. Ele foi aos depósitos de material de transmissões de Linda-a-Velha e subtraíu material rádio, com o qual andou semanas e semanas no porta-bagagens [para montar o sistema de transmissões usado no golpe, como já fizera no 25 de Abril de 1974]. Podia ter acontecido que alguém desse por isso e ele podia ter sido acusado de desvio de material de guerra. Arriscou mais do que qualquer outro - a cabeça e a honorabilidade. E já agora, uma referência ao Otelo também. Já falei dele, mas posso acrescentar que foi sempre o homem das grandes intuições, sempre de uma grande infilosofia, no sentido unamuniano, o homem que não racionaliza as situações, vive-as, não está a pesar os pós e os contras, deixa-se conduzir pela afectividade. Foi também um pouco isso que aconteceu no 25 de Novembro. Houve da nossa parte uma preocupação enorme em evitar a guerra civil e em não provocar baixas, em resolver tudo de uma maneira tão pouco cara quanto possível. Mas se a posição dele não tem sido aquela que foi, se ele manda avançar as forças, é evidente que as baixas teriam sido inúmeras e não sei mesmo se não teríamos tido uma guerra civil.

P. - Mas mandou prendê-lo. Vasco Lourenço disse que o fez baseado numa informação que, verificou-se mais tarde, não tinha credibilidade.

R. - Eu mandei cercar o COPCON porque me foi dito que havia uma reunião em que estavam a estimular o Otelo a retomar a acção militar. Fui lá e quando cheguei o Otelo estava reunido com o seu pessoal. Disse-lhe que ordenaria a detenção dos seus oficiais. Respondeu ele que a reunião era normal e a minha informação errada. Resolvi apesar disso manter a ordem de detenção. Exigiu então Otelo que o detivesse também, dado ser ele o comandante e , por tal, o responsável principal. Respondi: "Não Otelo, eu compreendo ética e militarmente a tua posição mas não te prendo. Se te prendo, vais continuar a ser o mito que és. Não vais preso". Ele insistiu e eu mantive o que dissera.

P. - Mas porque é que ele foi preso depois?

R. - Infelizmente, por uma razão política, não militar, porque de imediato se pretendeu convencer a opinião pública de que não haveria força de coragem para o prender. Acabou-se por detê-lo por uns dias só para dizer que ele não podia continuar a ser uma bandeira. Foi preciso para normalizar a instituição militar.

P. - A esta distância como avalia o papel de Álvaro Cunhal nestes acontecimentos?

R. - Devo dizer que tenho por ele uma grande consideração e uma grande simpatia. Em dez anos de contactos, nunca me enganou uma vez que fosse. Tenho um grande apreço por Álvaro Cunhal. Embora discordando inteiramente dele, reconheço que é um homem de convicções e de uma grande seriedade, que não tem pejo nenhum em assumir a sua diferença, e julgo ainda que é um homem que sacrificou pessoalmente tudo por aquilo que ele julgava que eram os grandes interesses do país.

P. - Falou na questão da honorabilidade em relação a Garcia dos Santos, mas há um homem no PS [Edmundo Pedro] que ainda hoje coloca a questão nessa dimensão, a propósito da questão das armas.

R. - Deve discutir esse assunto com o Dr. Mário Soares.

P. - Porquê?

R. - Só digo que deve discutir a questão com ele.

P. - Nesta altura, as suas relações com o Dr. Mário Soares ainda eram boas?

R. - Eram.

P. - Qual foi o momento em que as coisas se estragaram?

R. - É muito difícil localizar no tempo, não queria avançar por aí.

Políticos não ligavam nada à Constituição P. - Há declarações suas, em 1976, a dizer que não aceitaria candidatar-se a presidente da República. O seu nome foi proposto e aceitou logo. Acha que era politicamente ingénuo quando chegou a Belém em 1976?

R. - Não, o que acontece é que - e eu já disse isso - havia uma luta política que não tinha regras. Hoje estamos numa democracia em que há regras claras que todos aceitam estejam no poder ou na oposição. Naquela altura a democracia não estava minimamente estabilizada e a luta tinha que ser travada na área política, não militar. Entendeu-se que entre os militares com maiores probabilidades de ser eleito estava eu e aceitei. Quando cheguei a Belém, eu era muito militar, na abordagem dos problemas, nas perspectivas, nas relações. Havia coisas que eu não aceitava. Se dias depois um partido decidia em contrário ao que se tinha combinado e me diziam que o partido se reunira e tinha decidido assim, eu tinha dificuldade em aceitar. Outro tanto acontecia com os Governos. Por exemplo: pretendia-se que um conselheiro da revolução ocupasse um lugar numa instituição internacional. Tratava-se da questão com o primeiro ministro, que informava que o Governo não concorda, mas não se vai opor. E dias depois, numa segunda-feira, o PR vê um telegrama que fora enviado sábado com instruções para dar a conhecer ao secretário-geral da instituição a posição do governo. A minha posição era de certa revolta e incompreensão quando o primeiro ministro se justificava depois, esclarecendo que o telegrama fora enviado à sua revelia e que se dispunha a anulá-lo, o que obviamente era interessante eticamente mas sem qualquer efeito prático.

P. - Nota-se em si uma certa amargura em relação à vida política.

R. - Eu sabia que isto era assim o que não admitia era que depois de uma luta perigosa de legitimidades ocorrida antes do 25 de Novembro houvesse quem à semelhança dos irmãos Passos, do Liberalismo, questionasse a própria legitimidade constitucional e ficasse sinceramente admirado quando eu lhe dizia que a Constituição da República Portuguesa era para cumprir independentemente da opinião que dela se tivesse.

P. - No seu primeiro mandato contou essencialmente com o apoio do PS, PSD e CDS. No segundo mandato, teve a simpatia da esquerda. Foi a esquerda que regrediu ideologicamente ou foi o senhor que se modificou?

R. - Julgo que em mim foram depositadas expectativas que julgo que eram infundadas. Admitiu-se que eu ia dizer sim senhor a uma maioria presidencial. É evidente que não o podia fazer. Eu tinha sido eleito a dizer que não estava com partido nenhum, aceitando ser Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas e presidente do Conselho da Revolução. É evidente que não me podia comprometer com partidos e ainda mais, comprometer-me com eles para alterar anti-constitucionalmente a Constituição que eu prometera cumprir, e que é em meu entender a única legitimidade que o país tinha aceite. Se me perguntassem se eu acharia bem que a Constituição tivesse sido referendada, eu acharia óptimo, mas não foi. Obviamente que não podia desviar-me daí e a esquerda percebeu que eu era um homem de palavra.

P. -É um homem de esquerda?

R. - Eu sou um homem de formação cristã e acho que a doutrina social da Igreja é de esquerda. Ela não fala apenas de liberdade, como indispensável, mas também da igualdade, que considera indispensável também. Sempre me situei mais ou menos nessa área.

P. - Perdeu o apoio de metade do PS mas também de muitas pessoas que foram seus aliados, e depois se tornaram seus adversários. Porquê?

R. - Nas relações interpessoais há sempre interferência de uma multiplicidade de factores e é muito difícil equacionar as coisas no branco ou no preto. Na vida política não se pode agradar a todos.

Venda do PRP e proposta de marechalato P. - No PRD tudo começou também com um grande fulgor, ainda sem o senhor lá estar, e depois ficou bastante isolado. Sente-se isolado em Portugal hoje?

R. - Não. Se estivesse aqui constatava as solicitações que tenho, tantas que às vezes é difícil responder-lhes. Eu próprio decidi afastar-me porque percebi que isso convinha de alguma maneira a uma certa clarificação. Aqui há sempre tendência para sacralizar primeiro e diabolizar depois, para ressacralizar outra vez, e eu decidi não pesar na vida política, a não ser que tivesse algo importante a dizer ou a fazer. Durante algum tempo mantive uma certa presença e resolvi depois acabar com isso para ter ocasião de fazer uma reflexão mais profunda e, porventura, vir a colaborar de outra maneira. Nasci aqui para o bem e para o mal e se puder contribuir para resolver os problemas atávicos desta sociedade, tenho o dever de o fazer.

P. - Não teria repetido o PRD?

R. - O PRD correspondeu a uma necessidade real de país. A vida política tinha atingido tal grau de corrupção que era necessário intervir e foi essa a finalidade. Depois houve desvios...

P. - Pelo contrário, o PRD terminou com um estendal de corrupção, comprado até pela extrema-direita.

R. - No PRD há dois tempos. Enquanto foi um pequeno grupo, funcionou bem, teve um papel extremamente importante até na Assembleia da República, para mostrar que o importante não é o partido mas o país. Houve homens com um papel exemplar.

P. - Por exemplo?

R. - Foram tantos que era injusto sublinhar nomes, mesmo a título de exemplo. Houve depois uma fase de agonia. Aquele partido foi feito em obediência a um grupo de cidadãos que subscreveram um documento para o legalizar, e só estes podiam sobre o destino final do partido. Não é decisão que deva caber no arbítrio de um tribunal, Constitucional que seja.

P. - E o senhor, porque não se manifestou?

R. - Entendi que não devia porque tinha algo a ver, era eticamente parte interessada.

P. - Mas sentiu-se violentado?

R. - Senti-me prostituído, que é pior. Assumi sobre isso uma posição pública quando num jantar em Fátima a questão me foi posta pela RTP.

P. - O eanismo existiu?

R. - Temos uma certa tendência para arranjar emblemas, há-os de tudo, e isso tem a ver com a nossa incapacidade para racionalizar bem as situações.

P. - Acha que o Estado, os partidos e os portugueses o têm tratado com justiça?

R. - Eu tive sempre uma perspectiva republicana da vida política. Coube-me um certo trabalho, uma certa missão de missão, que aceitei e assumi. Desempenhei-a com sucessos e com erros. Nunca contabilizei isso nem esperava que a Nação o contabilizasse. Parafraseando Eduardo Lourenço, a Nação nunca deve nada a ninguém, porque deve tudo a todos. Nunca entendi que tenha sido maltratado, e devo dizer que algumas das honrarias que me propuseram as recusei liminarmente.

P. - Há uma honraria que lhe propuseram não a si mas ao Estado. Ferreira do Amaral disse que o senhor devia ser marechal.

R. - Quem é que lhe disse que isso não foi proposto antes?

P. - E não aceitou?

R. - Obviamente o poder não iria propor isso sem fazer uma sondagem antes. De qualquer maneira é situação que nunca aceitaria por razões de natureza militar e ético-política.

marcar artigo