A democracia do pedibola

21-03-2003
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A democracia do pedibola

Se tento resistir à mitomania do pedibola (neologismo ingloriamente tentado por Aquilino Ribeiro), que faz, de milhões de portugueses, treinadores de bancada, às segundas, quartas e sextas, e virtuais membros do painel de comentadores televisivos bolopolíticos, às terças, quintas e sábados, nem por isso me sinto indiferente face ao processo das recentes eleições da dita nação benfiquista, onde, em nome de seis milhões de adeptos, que vão de Guterres a Xanana Gusmão, cerca de vinte e tal mil votantes, fizeram um democratíssimo golpe de Estado constitucional .

Com efeito, no último Outono do milénio, este nobre povo verificou que a questão Vilarinho vs. Vale e Azevedo até ofuscou o magno caso de Sampaio vs. Ferreira do Amaral, que já antes tinha sido ocultado pelas grandes manifestações de massas que acolheram o Marco do Big Brother nas discotecas do Norte.

Mas o tal “foot” na “ball” não tem culpa. Apesar do chamado sistema, sempre tem mais opinião pública que a politiqueirice, até porque o adepto que paga as quotas, além de ter amor à camisola, pode participar nas decisões das associações a que livremente adere.

Uma quase maioria absoluta de portugueses lê três jornais diários desportivos e assiste inebriadamente a regulares debates televisivos sobre as relações entre o “acaso” de uma bola agitada por quarenta e quatro pés num relvado e a planeada “necessidade” de milhões de contos de investimento em máquinas humanas. Do mesmo modo, o bom povo discute mais as vírgulas e os parágrafos regulamentadores das SAD e da Comissão do Mercado de Valores Imobiliários que os parlamentares meandros do Orçamento de Estado.

Acresce que as visitas de Paulo Portas aos mercados do peixe e às feiras dos coiratos, as jantaradas de Carlos Carvalhas com o respectivo sindicato dos aposentados da Reforma Agrária, as provas de vinho de Marques Mendes no Bombarral, ou os beijinhos de Ferro Rodrigues nas velhotas dos centros de dia, tornaram-se coisa ridícula, pois a grande bipolarização do próximo século andará entre os políticos patrocinados por José Eduardo Moniz e os que receberem a unção de Emídio Rangel, cada qual a promover a sua manipulação informativa, antes de perorar catedraticamente sobre deontologia jornalística em artigos e entrevistas.

Neste sentido, qualquer marciano imparcial que ouse aterrar neste país à beira mar plantado, para fazer um relatório sobre a nossa situação político-cultural, tem de concluir que esta nação valente e imortal, apesar da pós-modernidade carrilhista, incapaz de comprar acções da EDP, e das ferroadas doutorais de Vasco Pulido Valente no ministro Severiano, que não tutela a GALP, caiu nas teias dos jogos de fortuna e azar, alguns dos quais, como o Big Brother, até ofendem directamente os princípios constitucionais que garantem a dignidade da pessoa humana, ao transmitirem em directo torturas psicológicas.

Tentando não ceder à tentação dessa “grafomania” dos que enchem jornais com “andaços pegadiços”, como dizia o velho António Cabral nas suas memórias, e seguindo a lição de Sainte-Beuve, segundo a qual, mesmo no jornalismo de ideias, importa desenvolver qualquer questão que surja na tela do debate, direi que, das eleições ocorridas na nação benfiquista, podemos extrair alguns importantes avisos para a democracia portuguesa.

Gostaria de assinalar que mesmo as coisas más têm pedações de bem e que, neste caso, o modelo de organização benfiquista, reflecte aquela centenária democracia da sociedade civil instaurada pelo associativismo da autenticidade liberal que, nascida durante a monarquia constitucional, foi capaz de resistir a quarenta e oito anos de autoritarismo e às próprias fúrias vanguardistas do gonçalvismo. Basta recordar que os presidentes do Benfica, Sporting e Porto, em 1975, ameaçando os donos do poder de então, chegaram a programar a mudança das respectivas equipas para o Brasil, numa altura em que o PREC até intercalava os relatos de futebol com as lavagens ao cérebro da dinamização cultural ...

Na verdade, o derrubado cônsul benfiquista sentia-se como peixe na água nos domínios da chamada democracia directa. Como Robespierre, clamava o “quem não é pela revolução deve ir para a guilhotina”, e, inchado pela arrogância, assumia o napoleónico estadão de quem esperava o plebiscitário de massas ululantes. Arrogantemente coberto pelas encenações taveirais da televisão de Carnaxide, até confundiu a democracia com sondajocracia, não percebendo que o antigo, mas não antiquado demoliberalismo, nascido do sufrágio universal, directo e secreto, pode levar os que não têm voz a transformar o voto num instrumento de silenciosa revolta individual.

E na noite de 27 para 28 de Outubro do ano 2000, aconteceu o libertacionismo, praticando-se tanto a superioridade moral como a eficácia transicionológica do modelo representativo clássico.

O Vinte Cinco de Abril benfiquista que aconteceu não foi o do Primeiro de Maio de 1974, o do 28 de Setembro do mesmo ano ou o do Onze de Março de 1975, mas antes o de 25 de Abril de 1975, onde, pela via eleitoral, se geraram mudanças efectivas, contra a comunicação social hegemónica e outros vanguardistas controleiros do processo revolucionário em curso, coisa que os politiqueiros formados nas reuniões gerais de alunos e na militância do MES e da extrema-esquerda parecem esquecer.

Continuando a extrapolar para o mundo da macropolítica, direi que esses golpes de Estado constitucionais são idênticos aos que levaram a Aliança Democrática a vencer a pausa pintasilguista do eanismo e do soarismo; Cavaco Silva a derrubar o Bloco Central; ou Guterres a tirar-nos do Estado Laranja. Resta saber se haverá um Vilarinho na política à portuguesa, isto é, se o futuro vencedor do actual situacionismo não será alguém que, por enquanto, não aparece como protagonista da oposição.

BEM COMUM DA SEMANA

Da Serra de Ossa aos para-olímpicos

Há uma parte invisível no grande iceberg da política portuguesa, constituída pelas múltiplas organizações que se mobilizam por interesses morais, como os defensores da Serra de Ossa ou os cidadãos que pugnam pela paisagem da margem esquerda do Rio Lima. Quando estes defensores do universal pela diferença se aliarem numa rede de micropoderes, locais, regionais e globais, os arrogantes Titanics politiqueiros serão abalroados e melhor nos poderemos orgulhar dos feitos dos nossos para-olímpicos na Sydney, esses que não tiveram subsídios estaduais para a alta competição, mas apenas a humildade do sonho.

MAL COMUM DA SEMANA

Um assassinato de Estado em Barcelos

A democracia do pedibola

Se tento resistir à mitomania do pedibola (neologismo ingloriamente tentado por Aquilino Ribeiro), que faz, de milhões de portugueses, treinadores de bancada, às segundas, quartas e sextas, e virtuais membros do painel de comentadores televisivos bolopolíticos, às terças, quintas e sábados, nem por isso me sinto indiferente face ao processo das recentes eleições da dita nação benfiquista, onde, em nome de seis milhões de adeptos, que vão de Guterres a Xanana Gusmão, cerca de vinte e tal mil votantes, fizeram um democratíssimo golpe de Estado constitucional .

Com efeito, no último Outono do milénio, este nobre povo verificou que a questão Vilarinho vs. Vale e Azevedo até ofuscou o magno caso de Sampaio vs. Ferreira do Amaral, que já antes tinha sido ocultado pelas grandes manifestações de massas que acolheram o Marco do Big Brother nas discotecas do Norte.

Mas o tal “foot” na “ball” não tem culpa. Apesar do chamado sistema, sempre tem mais opinião pública que a politiqueirice, até porque o adepto que paga as quotas, além de ter amor à camisola, pode participar nas decisões das associações a que livremente adere.

Uma quase maioria absoluta de portugueses lê três jornais diários desportivos e assiste inebriadamente a regulares debates televisivos sobre as relações entre o “acaso” de uma bola agitada por quarenta e quatro pés num relvado e a planeada “necessidade” de milhões de contos de investimento em máquinas humanas. Do mesmo modo, o bom povo discute mais as vírgulas e os parágrafos regulamentadores das SAD e da Comissão do Mercado de Valores Imobiliários que os parlamentares meandros do Orçamento de Estado.

Acresce que as visitas de Paulo Portas aos mercados do peixe e às feiras dos coiratos, as jantaradas de Carlos Carvalhas com o respectivo sindicato dos aposentados da Reforma Agrária, as provas de vinho de Marques Mendes no Bombarral, ou os beijinhos de Ferro Rodrigues nas velhotas dos centros de dia, tornaram-se coisa ridícula, pois a grande bipolarização do próximo século andará entre os políticos patrocinados por José Eduardo Moniz e os que receberem a unção de Emídio Rangel, cada qual a promover a sua manipulação informativa, antes de perorar catedraticamente sobre deontologia jornalística em artigos e entrevistas.

Neste sentido, qualquer marciano imparcial que ouse aterrar neste país à beira mar plantado, para fazer um relatório sobre a nossa situação político-cultural, tem de concluir que esta nação valente e imortal, apesar da pós-modernidade carrilhista, incapaz de comprar acções da EDP, e das ferroadas doutorais de Vasco Pulido Valente no ministro Severiano, que não tutela a GALP, caiu nas teias dos jogos de fortuna e azar, alguns dos quais, como o Big Brother, até ofendem directamente os princípios constitucionais que garantem a dignidade da pessoa humana, ao transmitirem em directo torturas psicológicas.

Tentando não ceder à tentação dessa “grafomania” dos que enchem jornais com “andaços pegadiços”, como dizia o velho António Cabral nas suas memórias, e seguindo a lição de Sainte-Beuve, segundo a qual, mesmo no jornalismo de ideias, importa desenvolver qualquer questão que surja na tela do debate, direi que, das eleições ocorridas na nação benfiquista, podemos extrair alguns importantes avisos para a democracia portuguesa.

Gostaria de assinalar que mesmo as coisas más têm pedações de bem e que, neste caso, o modelo de organização benfiquista, reflecte aquela centenária democracia da sociedade civil instaurada pelo associativismo da autenticidade liberal que, nascida durante a monarquia constitucional, foi capaz de resistir a quarenta e oito anos de autoritarismo e às próprias fúrias vanguardistas do gonçalvismo. Basta recordar que os presidentes do Benfica, Sporting e Porto, em 1975, ameaçando os donos do poder de então, chegaram a programar a mudança das respectivas equipas para o Brasil, numa altura em que o PREC até intercalava os relatos de futebol com as lavagens ao cérebro da dinamização cultural ...

Na verdade, o derrubado cônsul benfiquista sentia-se como peixe na água nos domínios da chamada democracia directa. Como Robespierre, clamava o “quem não é pela revolução deve ir para a guilhotina”, e, inchado pela arrogância, assumia o napoleónico estadão de quem esperava o plebiscitário de massas ululantes. Arrogantemente coberto pelas encenações taveirais da televisão de Carnaxide, até confundiu a democracia com sondajocracia, não percebendo que o antigo, mas não antiquado demoliberalismo, nascido do sufrágio universal, directo e secreto, pode levar os que não têm voz a transformar o voto num instrumento de silenciosa revolta individual.

E na noite de 27 para 28 de Outubro do ano 2000, aconteceu o libertacionismo, praticando-se tanto a superioridade moral como a eficácia transicionológica do modelo representativo clássico.

O Vinte Cinco de Abril benfiquista que aconteceu não foi o do Primeiro de Maio de 1974, o do 28 de Setembro do mesmo ano ou o do Onze de Março de 1975, mas antes o de 25 de Abril de 1975, onde, pela via eleitoral, se geraram mudanças efectivas, contra a comunicação social hegemónica e outros vanguardistas controleiros do processo revolucionário em curso, coisa que os politiqueiros formados nas reuniões gerais de alunos e na militância do MES e da extrema-esquerda parecem esquecer.

Continuando a extrapolar para o mundo da macropolítica, direi que esses golpes de Estado constitucionais são idênticos aos que levaram a Aliança Democrática a vencer a pausa pintasilguista do eanismo e do soarismo; Cavaco Silva a derrubar o Bloco Central; ou Guterres a tirar-nos do Estado Laranja. Resta saber se haverá um Vilarinho na política à portuguesa, isto é, se o futuro vencedor do actual situacionismo não será alguém que, por enquanto, não aparece como protagonista da oposição.

BEM COMUM DA SEMANA

Da Serra de Ossa aos para-olímpicos

Há uma parte invisível no grande iceberg da política portuguesa, constituída pelas múltiplas organizações que se mobilizam por interesses morais, como os defensores da Serra de Ossa ou os cidadãos que pugnam pela paisagem da margem esquerda do Rio Lima. Quando estes defensores do universal pela diferença se aliarem numa rede de micropoderes, locais, regionais e globais, os arrogantes Titanics politiqueiros serão abalroados e melhor nos poderemos orgulhar dos feitos dos nossos para-olímpicos na Sydney, esses que não tiveram subsídios estaduais para a alta competição, mas apenas a humildade do sonho.

MAL COMUM DA SEMANA

Um assassinato de Estado em Barcelos

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