Suplemento Pública

26-10-2004
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Eleições no PS

Por OS NOMES DA ROSA

Domingo, 19 de Setembro de 2004 Um foi campeão nacional de natação, é um caçador destemido. Outro é um animal feroz, amante da esgrima. Outro ainda, gosta de correr riscos. Um tem como avô um chefe da Carbonária, fundador da República. Outro andou na escola que o avô criou, é filho de duas pessoas conhecidas na nossa terra. Outro ainda, herdou do avô fortuna feita do comércio do volfrâmio e, do pai, que criou o PPD na Covilhã, o gosto pela política. Um foi editor para não ser outra coisa, porque a sombra do pai lhe tolhia os gestos, lutou contra a guerra colonial. Outro esteve no mato, na guerra, de onde escrevia poemas. Outro ainda gosta de Armani, quase não bebe e é pouco amigo de noitadas. Um gosta de pescar à noite, de tangos. Um é engenheiro, outro andou no Liceu Francês e, outro ainda, foi expulso da Faculdade de Direito. Quem é quem? Têm 47, 55 e 68 anos. Disputam no próximo fim-de-semana a liderança do Partido Socialista. São os nomes da rosa Manuel Alegre O homem com "biografia a mais" Gosta de dançar tango, de entrar pelo mar dentro para pescar, de touradas. Foi campeão nacional de natação, fez teatro na universidade, já arrecadou inúmeros prémios literários. Está prestes a ser avô de gémeos. É um homem "destemido", garantem os amigos. Nunca tirou a carta de condução. Maria José Oliveira Não existia ainda nada de concreto, mas as palavras de Manuel Alegre, repetidas vezes sem conta na comunicação social, eram já um prenúncio de que não renunciaria à disputa pela liderança do Partido Socialista. "Às vezes, somos invadidos pelos próprios acontecimentos." Ainda que, no início, não conseguisse disfarçar um certo incómodo - o dissabor de ter sido quase "empurrado" para um combate que poderia ter travado há cerca de 20 anos, como chegou a lembrar. Agora, o homem que os amigos dizem ser tímido, baralha os dados: oculta essa timidez que lhe vem da infância com uma determinação aparentemente inquebrantável. "Somos invadidos pelos próprios acontecimentos", disse. Como quem escreve Manuel Alegre de Melo Duarte (Águeda, 12 de Maio de 1936) tem "biografia a mais". É um facto. Assumido pelo próprio e notório aos olhos de todos quanto seguem de perto o seu percurso. Há a literatura (a sua e a dos outros), mas também a música, os tangos, o teatro, a pesca, a caça, os touros, as viagens, a gastronomia. E a política, para cuja precoce descoberta muito contribuiu a mãe, Mariana, que passava os serões a contar a Manuel e à sua irmã, Teresa, as histórias do avô, Geraldo Pais, chefe da Carbonária, fundador da República, amigo de Afonso Costa. "Biografia a mais", escreveu o deputado à Constituinte e autor do preâmbulo da Constituição, o fundador da Frente Patriótica de Libertação Nacional (FPLN), a "voz" por que muitos aguardavam até às três da manhã de Lisboa, meia-noite em Argel, escutando "A Voz da Liberdade". "Biografia a mais", admitiu Alegre já depois do turbilhão da luta antifascista, do serviço militar nos Açores, onde a contestação ao regime era-lhe de tal forma emergente que descambou no devaneio de tentar ocupar a ilha Terceira (1961/62). Durante a estadia nos Açores casou com Isabel Sousa Pires (o seu primeiro casamento) por procuração, porque ela continuava a estudar em Coimbra. Depois houve Angola, o confronto com o horror da guerra colonial e a instigação a uma revolta militar que lhe valeu meio ano de encarceramento em Luanda (1963). O regresso a Coimbra, o curso inacabado na Faculdade de Direito e os passos tolhidos pela PIDE. No dia em que passou à clandestinidade - em 64 partiria para um exílio de dez anos, vivido entre Paris e Argel -, a irmã, três anos mais nova, fez das tripas coração e lá conseguiu ir ao baile da academia. Festejava-se a Queima das Fitas. "E fui e dancei e ninguém desconfiou que o meu irmão estava naquele momento a entrar na clandestinidade", recorda a ex-vereadora da Cultura da Câmara de Coimbra Teresa Alegre Portugal. "Biografia a mais", finalmente, escreveu o poeta cujas palavras foram distinguidas com tantos prémios (entre eles, o Prémio Pessoa 1999) e cantadas por Maria Bethânia, Amália, Zeca, Adriano Correia de Oliveira, Carlos do Carmo, Luís Cília, entre muitos outros. "Metade da música já vem embalada" na escrita de Alegre, diz José Niza, o médico-compositor que primeiro musicou os poemas do autor. Foi no meio do mato que o fez, durante a guerra colonial, a passo com os versos que lhe enviava Adriano Correia de Oliveira. Niza ainda se lembra, como se tivesse sido ontem, o dia em que foi esperar ao aeroporto um dos homens que mais havia combatido a ditadura a partir do exterior. Acompanhava-o Salgado Zenha. Que, mal viu Manuel Alegre, terá dito: "O rapaz tem boa figura." Depois foi a surpresa e a comoção do autor de "O Canto e as Armas" quando Niza lhe passou para as mãos a vasta colecção de vinis de artistas que cantavam os seus poemas. Alegre ouviu pela primeira vez algumas canções. Alegre e Niza voltariam a reencontrar-se em 76, no Festival da Canção. Socialistas e comunistas disputavam o poder também através da música: de um lado estava um poema inédito de Alegre (então já filiado no PS, desde 74), uma composição de Niza e a voz de Carlos do Carmo; do outro, estavam Ary dos Santos e Fernando Tordo. Venceu "A flor de verde pinho". Metade do dinheiro que Alegre e Niza receberam como prémio foi direitinho para as mãos de Mário Soares, então em campanha para as primeiras legislativas pós-25 de Abril. Manuel Alegre nunca esquecerá Paris (revisitá-lo-á por diversas vezes na sua obra literária). Houve sempre Paris, cidade-refúgio da maior parte dos "foragidos" da ditadura, centro nevrálgico de tantas conspirações. Foi o tempo das tertúlias políticas com muitos camaradas exilados, mas também os anos de consumo frenético de Rimbaud, Aragon, Éluard, Breton. Em Paris, sente na pele a revolta da Primavera de Praga e rompe com o PCP. O mesmo partido que virá a expulsar o seu grande amigo e co-fundador da FPLN Fernando Piteira Santos. Mas o final de 60 coincide também com o encontro com Mafalda (a actual mulher, que à data trabalhava em Paris), uma bela rapariga de cabelos compridos, loiros e lisos. É um "boy meets girl" quase cinematográfico: conhecem-se numa fila para comprar bilhetes num cinema de Paris e acabam por partir juntos para Argel. Aqui nascerá o primeiro de três filhos: Francisco Duarte, 30 anos, diplomata a viver em Nova Iorque, prestes a ser pai de gémeos. Já em Portugal, nasceram Afonso, licenciado em Direito, e Joana, 18 anos, estudante de Relações Internacionais. Aos filhos incutiu-lhes desde cedo o gosto pelo desporto. Tal como lhe haviam feito o pai, Lourenço de Faria, atleta internacional de salto à vara, e o avô, Mário Duarte, reputado atleta de Aveiro (o estádio municipal tem o seu nome), ambos monárquicos. Alegre foi campeão nacional de natação pela Académica e para tal muito contribuíram as tardes de treino no rio Águeda - "duas cabeceiras de madeira no leito do rio", lembra o amigo Paulo Sucena. "Manelzinho", assim lhe chamavam, era ainda uma criança quando emergiu nele a atracção pela caça. Muito por culpa do pai, que era um excelente caçador. Um dia, em Lisboa, quando lhe faltaram os pardais - durante a adolescência viveu na capital, no Porto e finalmente em Coimbra - vingou-se na boneca preferida da irmã, com um tiro da sua pressão de ar mesmo no meio da testa. Diz quem o acompanha nas caçadas que tem uma pontaria quase infalível e que gosta de a exercitar no tiro ao prato. Do pai herdou também o gosto pela dança, nomeadamente pelo tango. Mais tarde, surgiu a pesca. "O mar é muito inspirador para ele", diz a irmã. Alegre não é, porém, um pescador desportivo convencional, explica Niza. O médico acompanha-o nestas andanças e diz que o amigo "nunca pára quieto". Que não se limita a lançar a linha e esperar, que gosta de entrar pelo mar dentro, ainda que as águas estejam revoltas, e tem uma especial predilecção pelas pescarias nocturnas. "Às vezes, fica até às duas ou três da manhã." "É destemido", elogia Niza, para logo a seguir lembrar, entre risos: "Mas não tem carta de condução." Os livros serviram primeiro como uma espécie de bálsamo - ainda pequenito caiu à cama por causa de umas febres e uma tia decidiu começar a ler-lhe poesia (Antero, Garrett, Sardinha e Nobre, sobretudo) -, mas a partir da adolescência a literatura passou a ser uma necessidade premente. E à voracidade das leituras juntou-se a descoberta da escrita, ainda não tinha feito 20 anos. Nos primeiros anos de 50, aparecem publicados uns poemas no "Independência de Águeda", assinados por Manuel Alegre Duarte. Houve, porém, quem não acreditasse que aquele rapazito tímido fosse o autor dos versos, mas sim a mãe. Em 1958, o lançamento de "O Amor em Visita", de Herberto Hélder, opera uma espécie de revolução literária que também atinge Alegre. "Começa a escrever cada vez mais", diz Sucena, e renega de imediato o livro "Sensações Românticas" (1955), ainda hoje proscrito da sua bibliografia. Mandou queimar todos os exemplares, refere Sucena, mas alguns ainda escaparam às chamas. "Ele nunca me deu o livro, mas a sua avó Beatriz conseguiu recuperar um e deu-mo às escondidas." No prefácio deste livro, Cruz Malpique, professor de liceu de Alegre, escreveu: "Atrevo-me a ser mais profeta do que os meus colegas, mas suponho que o Alegre Duarte virá a ser gente no mundo da poesia." A literatura desde cedo uniu Alegre e Paulo Sucena, o secretário-geral da Fenprof (Federação Nacional de Professores) a quem o vice-presidente da Assembleia da República continua a telefonar para lhe ler alguns poemas acabados de escrever. Os pais de ambos já eram amigos - haviam sido colegas de carteira no liceu de Aveiro -, as casas das duas famílias situavam-se na Rua de Baixo, em Águeda. Há pouco tempo, Sucena viu o amigo na televisão a apresentar a moção da sua candidatura: "Vi aquele mesmo olhar determinado com que caçava quando era pequenino, aquele olhar que tinha quando treinava sozinho no rio." Lembra uma criança "quase bisonha", muito introvertida, mas aventureira na caça aos pardais e fanática pelo futebol. Alegre mudou muito "a partir dos 11, 12 anos", tornou-se mais extrovertido e os dois amigos passavam noites inteiras a conversar sobre livros e escritores. "É um homem de grandes lealdades. Para ele, a amizade é um posto." João Soares O "filho do eucalipto" Só lutou por um lugar no partido depois de o pai ter cessado os seus cargos, mas nem assim a sombra de Mário Soares escurece o percurso político de João Soares. Foi editor porque não podia ser político, presidente da Câmara Municipal de Lisboa por prazer e aspira ao cargo de secretário-geral. Pelo desafio? Nuno Sá Lourenço Ainda coxeava devido ao acidente na Jamba (Angola) e, naquela tarde, ia agarrado ao braço do amigo Manuel de Brito, enquanto ambos examinavam o progresso das obras na Expo-98. Há uma mulher que diz: "Olha, é o João Soares!" O amigo do então presidente da Câmara de Lisboa comenta que já não lhe chamavam "o filho do Mário Soares". A resposta foi sintomática sobre as aspirações do homem e do político: "Isto vai chegar a um ponto em que o meu pai há-de ouvir: 'Olha, vai ali o pai do João Soares!'" O ex-autarca, editor "congelado" e polemista assumido, concorre a um cargo que já foi de Mário Soares. Os apoios entre as grandes figuras socialistas não são muitos, mas isso é algo a que o candidato já está habituado. Tem o apoio do pai, a que recorre a conta-gotas e a contragosto. Essa atitude nada tem a ver, assegura, com o "enorme carinho" que a figura paterna lhe merece. Mas a relação está desde sempre marcada pelo efeito negativo que representa "ser filho daquele pai". Ao longo da sua vida política, João Soares traça constantemente uma barreira entre a sua actividade e a carreira de Mário Soares. "Nunca quis cargos no PS nem fora do PS, enquanto ele foi secretário-geral", diz. "Nunca tive nenhum apoio dos chamados amigos mais próximos do meu pai". Por isso evita ao máximo o recurso ao pai durante as campanhas eleitorais que encabeça. Diz que a vontade de Mário Soares era sempre a de estar presente mais vezes. "Na última campanha para Lisboa [Dezembro de 2001], o meu pai passava o tempo a queixar-se que eu não o deixava aparecer. Eu fiz-lhe a vontade uma única vez, no dia dos anos dele, quando ele subiu a Rua Augusta comigo e com o João Amaral", lembra. "Quando se disputa uma eleição, disputa-se por mérito próprio". Ele e os seus amigos mais próximos repetem que a filiação lhe foi mais prejudicial que vantajosa. "Dentro do PS há pessoas que têm o complexo de Édipo mal resolvido e tentam matar o pai através do filho" - João Soares resume assim as muitas dificuldades que tem sentido para se afirmar como protagonista. "O João sempre pagou um preço muito grande por ser filho daquele eucalipto, que suga toda a água à sua volta", comenta Manuel de Brito. "Se não fosse Soares, teria tido mais oportunidades", assegura Ozita, a secretária do pai Soares que aderiu à equipa de campanha do filho Soares. João Soares nasceu a 29 de Agosto de 1949, "filho de duas pessoas conhecidas da nossa terra: Maria de Jesus Barroso e Mário Soares", lê-se no "site" pessoal, onde aponta o avô como a principal referência familiar. "Era ele que estava às refeições, o acompanhamento dos estudos era feito por ele, por causa da vida atribulada do meu pai". Nessa altura, já Mário Soares era uma das figuras mais perseguidas pela polícia política do Estado Novo. Os anos escolares foram repartidos entre o Liceu Francês e o Colégio Moderno, fundado pelo avô. A escola primária foi quase toda feita em francês. Os pais quiseram-no bilingue. Mudaram-no para a escola da família na quarta classe, "para depois também não ficar francófono". Haveria de regressar ao Liceu Francês no sétimo ano por causa de "um conflito com um professor de Latim". "Ele era muito autoritário. E queixou-se de que eu era comandante de uma certa revolta contra ele e o meu avô e o meu pai decidiram que eu ia para o Liceu Francês. O meu pai até costuma dizer que eu fui expulso, mas não chegou a esse ponto". Foi aí que reencontrou uma colega da infantil e alguém que foi conhecendo melhor na pró-associação dos liceus. Da sua amizade com João Soares, Ana Merelo lembra-se de ter ficado com a imagem de um "estudioso" e "um miúdo muito valente, muito teso, com uma irreverência quase militante". Aos 14 anos já havia episódios de uma personalidade contestatária. Ana Merelo recorda com um sorriso que não perdiam uma oportunidade para implicar "com as senhoras do Movimento Nacional Feminino": "Costumávamos subir a pé do Marquês de Pombal até ao liceu. Elas andavam ali ao pé do Hotel Ritz a pedir pelos soldados. Nós fazíamos um ar muito ingénuo e perguntávamos se aquilo era para os movimentos de libertação." Como "jovem do seu tempo" - palavras de Manuel de Brito -, João Soares militou nos movimentos estudantis e universitários que lutavam contra a ditadura e a guerra colonial. Ana Merelo lembra que os problemas com a sua filiação já se faziam sentir. "Foi a uma reunião na casa do Arnaldo de Matos [chegou a líder do MRPP] para decidir se convocávamos uma manifestação contra a guerra. Ele tomou uma posição mais moderada do que a maioria quando se discutiu se se desencadearia violência da parte dos estudantes. E houve alguém que lhe atirou: 'Pois, mas isso já a gente sabe porque tu és filho de um social-democrata.' Ele respondeu: 'A maioria dos vossos pais é fascista e eu nunca vos disse nada, e vocês ligam-me ao meu pai?'" Episódios como este terão ajudado a cimentar uma decisão que afectou o início da sua vida adulta. Os anos de menor actividade política auto-impostos foram preenchidos pela sua outra "paixão": os livros. Poucos anos depois da Revolução, funda, juntamente com Victor Cunha Rego, a editora Perspectivas & Realidades, de que muito se orgulha. O facto de ter conseguido gerir a editora de uma forma economicamente viável é para o próprio um trunfo, quando se compara com outros políticos. A "muitas pessoas com responsabilidades políticas só lhes fazia bem" passar pela mesma experiência. Foi na editora que criou um problema político que o perseguiu durante muito tempo e lhe trouxe algumas inimizades. A sua ligação a Jonas Savimbi, líder da UNITA, começou por causa de um mau livro de poesia. "O Alcides Sakala [dirigente da UNITA] apareceu-me com um livro de poemas do Savimbi, que eram, aliás, muito fracotes. Eu recusei, mas ele acabou por me convencer com o único argumento que me poderia tocar e que punha em causa os direitos na nossa terra. Disse-me que o livro já tinha sido recusado por cinco ou seis editoras que se justificavam com as perspectivas de negócios com o regime de Luanda." A partir daí, faz uma série de viagens a Angola, tendo tido a oportunidade de privar tanto com Jonas Savimbi, como com o Presidente angolano, José Eduardo dos Santos. Uma delas torna-se num dos momentos mais marcantes da sua vida. Em Setembro de 1989, o pequeno avião onde viajava despenha-se na Jamba. Fica "mais para lá do que para cá", como diz, e depois do coma, tem uma lenta recuperação. A experiência ajuda-o "a perceber como separar o essencial do acessório". Manuel de Brito afirma que o viu regressar com "uma ânsia, com uma necessidade de estar vivo", que para este amigo nem sempre foi boa conselheira. "Foi essa ânsia que o fez avançar com aquela ideia do elevador do Castelo [último ano do seu último mandato na Câmara de Lisboa, 2001]. De repente, conseguiu arranjar um imbróglio tal que deu cabo da unanimidade à volta do seu mandato." Rodrigues Soares, uma amizade que perdura desde que João Soares desafiou Vítor Constâncio em congresso, afirma que essa característica já existia antes do acidente: "Já era agarrado à vida, a vida dele já era a correr riscos. Basta recordar a luta pela Câmara de Lisboa. Quando avançou com a ideia, tinha o partido todo contra ele." Manuel de Brito, amigo dos tempos da editora, afirma mesmo que o PS lhe deve esse "mérito de cidadania": "É que o João, ainda como editor, teve a ideia de fazer uma coligação para ganhar Lisboa." E recorda a resistência que recebeu no PS: "A visão maioritária era que se houvesse uma coligação com os comunistas em Lisboa, o PS nunca seria governo. Opuseram-se, e quando já não podiam opor-se à ideia, opuseram-se a que fosse o João o candidato". É aí que o socialista comete "o erro histórico absoluto": aceitar ser segundo de Jorge Sampaio: "O que é que teria acontecido se o João tivesse insistido na sua candidatura, e fosse presidente em Lisboa quando Sampaio abandona a liderança do partido?" Rodrigues Soares discorda. "Ele teve a perspicácia de ver que mais tarde ou mais cedo iria ser presidente da câmara." Esse período de actividade política mais gratificante terminaria para o socialista de uma forma violenta e inesperada com a derrota perante Pedro Santana Lopes. Curiosamente, um dos dois políticos no activo que Soares reconhecera em 1997, numa entrevista, como os "adversários que temia". O outro era Leonor Beleza. Temia Santana, explica hoje, dada a sua "capacidade demagógica impressionante". "Foi o único político português que consegui ver a jogar na tripla, sempre na primeira linha: na política, no futebol e nas colunas sociais." Entre as pessoas mais próximas, no entanto, a convicção é a de que João Soares perdeu por culpa de João Soares. "Fez uma campanha desgraçada, ou melhor, não fez campanha. Talvez porque para ele as coisas eram tão óbvias que achava que não tinha de andar a falar delas", recorda Ana Merelo. A derrota deixou marcas. "O maior desgosto da sua vida foi ter perdido a Câmara de Lisboa", confidencia Rodrigues Soares."Ficou desmoralizado". Essa altura correspondeu também ao seu divórcio. "Não sei até que ponto as coisas não estão relacionadas", afirma Ana Merelo. Desse período, o socialista haveria de emergir com uma nova relação afectiva e um filho de nove meses, Jonas, que o candidato fez questão de apresentar ao país na sua primeira declaração política enquanto aspirante a secretário-geral. "Não tem medo de correr riscos. Apesar da sua liderança poder ser beliscada por essa opção pessoal, ele assumiu-a perfeitamente", comenta Rodrigues Soares. José Sócrates O beirão próspero O estilo, pouco dado a diálogos e do género meia bola e força, é visto como de direita, cavaquista; mas em muitas causas está na esquerda do partido. É da síntese destas contradições que nasce a "esquerda moderna" que diz representar? É um beirão próspero que quer chegar a primeiro-ministro. João Pedro Henriques A verdade dos factos: o primeiro discurso parlamentar de José Sócrates sobre um tema nacional foi dedicado a algo (então) verdadeiramente fracturante, libertário, enfim, próprio de organizações tipo Bloco de Esquerda: a defesa do nudismo nas praias de Portugal. Estava-se em Abril de 1988 e o jovem deputado (31 anos) defendeu esta prática como um "costume alternativo e praticado por pessoas de elevada consciência cívica e ecológica, por razões higiénicas, estéticas e éticas". Discutia-se um projecto de "Os Verdes" que legalizava a possibilidade do nudismo em zonas devidamente circunscritas e para Sócrates, o "constrangimento" e o "embaraço" do PSD na matéria era próprio de "forças políticas conservadoras". Hoje, 16 anos passados, Sócrates é visto no PS como o representante das "forças políticas conservadoras", da direita do partido, pouco dada a convívios com o Bloco e outras esquerdas, até supostamente menos radicais. Tanto assim que foi obrigado a jurar na sua moção ao congresso que excluía de todo em todo alianças do PS à direita. O problema, se calhar, é de estilo e de táctica - mais do que conteúdo. Sócrates cuida da imagem: vai ao ginásio, mantém a linha, é pouco amigo de noitadas, quase não bebe e já não fuma (ou melhor: há pouco tempo teve uma recaída e diz que passou a fumar um cigarro depois do jantar). Acompanha a moda masculina e de tal modo que no congresso do PS de 2001, no Parque das Nações, o seu trajar (calças escuras, "blazer" de cabedal preto, camisola preta de gola alta) não escapou à ironia de alguns camaradas - agora seus apoiantes, por sinal - que lhe gozaram a "audácia da moda jovem". Nos cânones da esquerda clássica portuguesa, homem que é homem evita modernices. Para vestir bem, veste no Rosa & Teixeira, nunca no Armani. Foi precisamente o seu principal adversário na corrida à liderança do PS, Manuel Alegre, quem, na legislatura 1999/2002, o encostou à direita do partido. Sócrates, então ministro do Ambiente, apostou tudo por tudo na instalação da co-incineração na cimenteira de Souselas (Coimbra). Alegre - cabeça de lista do PS pelo distrito - ergueu a voz e o partido rachou-se ao meio, mas Sócrates manteve-se firme. De tal forma que Alegre o etiquetou de "cavaquista" - e a etiqueta colou. "Cavaquista", no dicionário de Manuel Alegre (e do PS todo), quer dizer autoritário, arrogante, autista, intolerante. De onde lhe veio, então, este estilo? Camaradas seus de há muitos anos (que preferem o anonimato), dizem ter-lhe detectado uma mudança no comportamento quando chegou ao Governo, em 1995. O seu primeiro posto foi o de secretário de Estado do Ambiente, sector de que foi porta-voz do PS desde 1991. Nessa altura, quando chegou ao Governo, os amigos começaram a perceber-lhe comportamentos coléricos, irascíveis, sempre que as coisas não lhe correm de feição. Parece que antes não era assim. Quando isto acontece, a conclusão é sempre a mesma: o poder subiu-lhe à cabeça. Talvez sim, talvez não, as versões dividem-se consoante a proximidade ao ex-ministro do Ambiente. A verdade é que José Sócrates gosta de cultivar publicamente uma noção do poder algo heterodoxa. Uma noção em que o poder da palavra é o instrumento essencial. Por isso diz rever-se em quem acha que "o principal dever de um político é falar". Assim mesmo: "falar". Nos dias de hoje, tal "confissão" é pouco comum: a maioria dos políticos acha que o seu principal dever é "fazer". O "falar" de Sócrates é o dar instruções, definir caminhos, estabelecer prioridades, mobilizar quem tem de mobilizar para que essas prioridades se cumpram. Os "dossiers", esses, ficam para os técnicos, e nisso Sócrates diz que funciona muito na "escola Soares" (Mário Soares). Quando fala e não se faz ouvir, irrita-se, às vezes muito. Já muitos jornalistas lhe aturaram neuras descomunais. Vive mal com apreciações negativas da sua condução política. A tradução que o próprio deu a este comportamento foi definir-se, recentemente, em entrevista ao "Expresso", como "um animal feroz". Manuel Alegre não perdeu tempo a recordar, divertido, os seus méritos de caçador. Esta maneira de proceder tem dado os seus resultados. Não faltou a Sócrates obra feita nos seus mais de seis anos de Governo (Outubro de 1995 a Março de 2002): obrigou os serviços públicos (telefones, electricidade, água, gás) a apresentarem facturas detalhadas aos clientes; moralizou a actualização anual dos seguros automóveis contra todos os riscos; conquistou para Portugal a realização do Euro 2004; introduziu o uso da metadona como terapia substitutiva para viciados em heroína; varreu dezenas de lixeiras espalhadas pelo país inteiro, argumentando mesmo que as erradicou em absoluto. Também lhe constam do currículo, evidentemente, fracassos: a co-incineração, que nunca chegou a avançar; a incapacidade de recuperar financeiramente a RTP. Do ponto de vista dos cargos, a trajectória foi sempre ascendente: de secretário de Estado adjunto da ministra do Ambiente (Elisa Ferreira) passou, em 1997, a ministro adjunto do primeiro-ministro (tutelando aqui as áreas da toxicodependência, desporto, juventude e, mais tarde, comunicação social). No segundo governo de Guterres, regressou à sua área de especialidade, o Ambiente, mas desta vez já como ministro. José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa nasceu no Porto em 6 de Setembro de 1957. Até entrar na Faculdade (Coimbra), passou a infância e a juventude entre a transmontana Vilar de Maçada (aldeia do pai) e a Covilhã (distrito de Castelo Branco), em cuja câmara o pai era arquitecto. Quando tinha sete, oito anos, os pais divorciaram-se. Ficou com o pai, na Covilhã; os irmãos (um rapaz e uma rapariga) foram viver com a mãe para Lisboa. José Sócrates já assumiu que ser filho de pais divorciados representava, na Covilhã de meio da década de 60, um "estigma forte". Talvez lhe venha da convivência forçada com este "estigma" uma visão muito liberal, para não dizer esquerdista, dos costumes (admite com facilidade o casamento entre homossexuais, por exemplo). A política chegou-lhe por culpa do pai, apoiante da Ala Liberal, o grupo formado por Sá Carneiro, Pinto Balsemão (pela mão de quem Sócrates acedeu ao super-exclusivo Clube de Bildenberg) e outros na "primavera" de Marcello Caetano. Quando chegou a revolução, o pai fundou o PPD na Covilhã. O filho seguiu o mesmo caminho, filiando-se na JSD. No ano seguinte, em pleno 25 de Novembro, chegou à Universidade de Coimbra, onde estudou Engenharia Civil. A militância na JSD foi curta, mais ou menos um ano. Ao jovem Sócrates pareceu que afinal a organização era liberal e não social-democrata (versão nórdica) como reclamava ser. Saiu logo em 1975. Chegou a Coimbra à boleia, num velho Fiat 127, de um seu amigo de infância, Luís Patrão (que veio a ser chefe de gabinete de Guterres e depois secretário de Estado na Administração Interna). Patrão, um dos principais responsáveis pela sua adesão ao PS, diz que o amigo "conserva hoje muitas das qualidades que já tinha - determinação e capacidade de antevisão, por exemplo". Além disso, "reforçou outras, como a capacidade de se preparar cada vez melhor para as coisas que tem de enfrentar". "Para mim é uma das pessoas melhor preparadas em Portugal para assumir funções públicas de grande responsabilidade." E defeitos? "Talvez uma certa impulsividade." Em Coimbra, conta ainda, foi "um jovem como os outros, com grande capacidade de se inserir nos vários ambientes universitários" - e nessa altura o debate político fervia. Tinha as suas namoradas, claro, e, como aliás desde a infância até hoje, dedicava-se intensamente ao desporto (na Faculdade a opção foi pela esgrima). Quanto à alegada mudança de personalidade quando chegou ao Governo, Patrão admite. Mas desculpa: "Foi o peso das responsabilidades." Findo o curso, regressou à Covilhã. De 1981 a 1987 foi engenheiro na Câmara da Covilhã, de onde saiu para assumir o cargo de deputado. É também em 1981 que dá o passo que o trouxe até onde hoje está: inscreveu-se no PS. Contra os soaristas - que na altura representavam a direita do PS - e por apenas dois votos, conquista em 1986 a federação do PS em Castelo Branco, fazendo campanha pelo distrito ao volante de um velho Mercedes. Só quando chegou ao Governo, em 1995, é que largou o cargo, para um sucessor escolhido a dedo (Fernando Serrasqueiro). Significa isto que José Sócrates fez a sua ascensão no PS nacional com um pé sempre assente na sua base distrital. É daqui que lhe vem a acusação de "aparelhista". Em 1984 conhece o homem ao lado de quem foi ascendendo até chegar ao Governo: António Guterres, a sua principal referência política. Conspiram contra Soares juntos. Votam ambos contra o Bloco Central. Em 1987, ano da primeira maioria absoluta de Cavaco, José Sócrates é finalmente eleito deputado. Desde então que vive da política. Podia até fazê-lo à borla: sendo herdeiro de uma fortuna fundada por um avô no comércio do volfrâmio durante a Segunda Guerra Mundial, não está na política por precisar - apenas porque quer. Da vida extrapolítica pouco se sabe. É divorciado e tem dois filhos rapazes, de oito e 11 anos. Assumiu recentemente que o seu "entusiasmo pela vida diminuiu" em 1988, com a morte da irmã, em circunstâncias que não explica. A preservação da intimidade é uma das marcas da sua atitude pública. Comparam-no a Pedro Santana Lopes, mas a verdade é que nunca se viu a "Caras" entrar-lhe pela casa dentro. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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Por OS NOMES DA ROSA

Domingo, 19 de Setembro de 2004 Um foi campeão nacional de natação, é um caçador destemido. Outro é um animal feroz, amante da esgrima. Outro ainda, gosta de correr riscos. Um tem como avô um chefe da Carbonária, fundador da República. Outro andou na escola que o avô criou, é filho de duas pessoas conhecidas na nossa terra. Outro ainda, herdou do avô fortuna feita do comércio do volfrâmio e, do pai, que criou o PPD na Covilhã, o gosto pela política. Um foi editor para não ser outra coisa, porque a sombra do pai lhe tolhia os gestos, lutou contra a guerra colonial. Outro esteve no mato, na guerra, de onde escrevia poemas. Outro ainda gosta de Armani, quase não bebe e é pouco amigo de noitadas. Um gosta de pescar à noite, de tangos. Um é engenheiro, outro andou no Liceu Francês e, outro ainda, foi expulso da Faculdade de Direito. Quem é quem? Têm 47, 55 e 68 anos. Disputam no próximo fim-de-semana a liderança do Partido Socialista. São os nomes da rosa Manuel Alegre O homem com "biografia a mais" Gosta de dançar tango, de entrar pelo mar dentro para pescar, de touradas. Foi campeão nacional de natação, fez teatro na universidade, já arrecadou inúmeros prémios literários. Está prestes a ser avô de gémeos. É um homem "destemido", garantem os amigos. Nunca tirou a carta de condução. Maria José Oliveira Não existia ainda nada de concreto, mas as palavras de Manuel Alegre, repetidas vezes sem conta na comunicação social, eram já um prenúncio de que não renunciaria à disputa pela liderança do Partido Socialista. "Às vezes, somos invadidos pelos próprios acontecimentos." Ainda que, no início, não conseguisse disfarçar um certo incómodo - o dissabor de ter sido quase "empurrado" para um combate que poderia ter travado há cerca de 20 anos, como chegou a lembrar. Agora, o homem que os amigos dizem ser tímido, baralha os dados: oculta essa timidez que lhe vem da infância com uma determinação aparentemente inquebrantável. "Somos invadidos pelos próprios acontecimentos", disse. Como quem escreve Manuel Alegre de Melo Duarte (Águeda, 12 de Maio de 1936) tem "biografia a mais". É um facto. Assumido pelo próprio e notório aos olhos de todos quanto seguem de perto o seu percurso. Há a literatura (a sua e a dos outros), mas também a música, os tangos, o teatro, a pesca, a caça, os touros, as viagens, a gastronomia. E a política, para cuja precoce descoberta muito contribuiu a mãe, Mariana, que passava os serões a contar a Manuel e à sua irmã, Teresa, as histórias do avô, Geraldo Pais, chefe da Carbonária, fundador da República, amigo de Afonso Costa. "Biografia a mais", escreveu o deputado à Constituinte e autor do preâmbulo da Constituição, o fundador da Frente Patriótica de Libertação Nacional (FPLN), a "voz" por que muitos aguardavam até às três da manhã de Lisboa, meia-noite em Argel, escutando "A Voz da Liberdade". "Biografia a mais", admitiu Alegre já depois do turbilhão da luta antifascista, do serviço militar nos Açores, onde a contestação ao regime era-lhe de tal forma emergente que descambou no devaneio de tentar ocupar a ilha Terceira (1961/62). Durante a estadia nos Açores casou com Isabel Sousa Pires (o seu primeiro casamento) por procuração, porque ela continuava a estudar em Coimbra. Depois houve Angola, o confronto com o horror da guerra colonial e a instigação a uma revolta militar que lhe valeu meio ano de encarceramento em Luanda (1963). O regresso a Coimbra, o curso inacabado na Faculdade de Direito e os passos tolhidos pela PIDE. No dia em que passou à clandestinidade - em 64 partiria para um exílio de dez anos, vivido entre Paris e Argel -, a irmã, três anos mais nova, fez das tripas coração e lá conseguiu ir ao baile da academia. Festejava-se a Queima das Fitas. "E fui e dancei e ninguém desconfiou que o meu irmão estava naquele momento a entrar na clandestinidade", recorda a ex-vereadora da Cultura da Câmara de Coimbra Teresa Alegre Portugal. "Biografia a mais", finalmente, escreveu o poeta cujas palavras foram distinguidas com tantos prémios (entre eles, o Prémio Pessoa 1999) e cantadas por Maria Bethânia, Amália, Zeca, Adriano Correia de Oliveira, Carlos do Carmo, Luís Cília, entre muitos outros. "Metade da música já vem embalada" na escrita de Alegre, diz José Niza, o médico-compositor que primeiro musicou os poemas do autor. Foi no meio do mato que o fez, durante a guerra colonial, a passo com os versos que lhe enviava Adriano Correia de Oliveira. Niza ainda se lembra, como se tivesse sido ontem, o dia em que foi esperar ao aeroporto um dos homens que mais havia combatido a ditadura a partir do exterior. Acompanhava-o Salgado Zenha. Que, mal viu Manuel Alegre, terá dito: "O rapaz tem boa figura." Depois foi a surpresa e a comoção do autor de "O Canto e as Armas" quando Niza lhe passou para as mãos a vasta colecção de vinis de artistas que cantavam os seus poemas. Alegre ouviu pela primeira vez algumas canções. Alegre e Niza voltariam a reencontrar-se em 76, no Festival da Canção. Socialistas e comunistas disputavam o poder também através da música: de um lado estava um poema inédito de Alegre (então já filiado no PS, desde 74), uma composição de Niza e a voz de Carlos do Carmo; do outro, estavam Ary dos Santos e Fernando Tordo. Venceu "A flor de verde pinho". Metade do dinheiro que Alegre e Niza receberam como prémio foi direitinho para as mãos de Mário Soares, então em campanha para as primeiras legislativas pós-25 de Abril. Manuel Alegre nunca esquecerá Paris (revisitá-lo-á por diversas vezes na sua obra literária). Houve sempre Paris, cidade-refúgio da maior parte dos "foragidos" da ditadura, centro nevrálgico de tantas conspirações. Foi o tempo das tertúlias políticas com muitos camaradas exilados, mas também os anos de consumo frenético de Rimbaud, Aragon, Éluard, Breton. Em Paris, sente na pele a revolta da Primavera de Praga e rompe com o PCP. O mesmo partido que virá a expulsar o seu grande amigo e co-fundador da FPLN Fernando Piteira Santos. Mas o final de 60 coincide também com o encontro com Mafalda (a actual mulher, que à data trabalhava em Paris), uma bela rapariga de cabelos compridos, loiros e lisos. É um "boy meets girl" quase cinematográfico: conhecem-se numa fila para comprar bilhetes num cinema de Paris e acabam por partir juntos para Argel. Aqui nascerá o primeiro de três filhos: Francisco Duarte, 30 anos, diplomata a viver em Nova Iorque, prestes a ser pai de gémeos. Já em Portugal, nasceram Afonso, licenciado em Direito, e Joana, 18 anos, estudante de Relações Internacionais. Aos filhos incutiu-lhes desde cedo o gosto pelo desporto. Tal como lhe haviam feito o pai, Lourenço de Faria, atleta internacional de salto à vara, e o avô, Mário Duarte, reputado atleta de Aveiro (o estádio municipal tem o seu nome), ambos monárquicos. Alegre foi campeão nacional de natação pela Académica e para tal muito contribuíram as tardes de treino no rio Águeda - "duas cabeceiras de madeira no leito do rio", lembra o amigo Paulo Sucena. "Manelzinho", assim lhe chamavam, era ainda uma criança quando emergiu nele a atracção pela caça. Muito por culpa do pai, que era um excelente caçador. Um dia, em Lisboa, quando lhe faltaram os pardais - durante a adolescência viveu na capital, no Porto e finalmente em Coimbra - vingou-se na boneca preferida da irmã, com um tiro da sua pressão de ar mesmo no meio da testa. Diz quem o acompanha nas caçadas que tem uma pontaria quase infalível e que gosta de a exercitar no tiro ao prato. Do pai herdou também o gosto pela dança, nomeadamente pelo tango. Mais tarde, surgiu a pesca. "O mar é muito inspirador para ele", diz a irmã. Alegre não é, porém, um pescador desportivo convencional, explica Niza. O médico acompanha-o nestas andanças e diz que o amigo "nunca pára quieto". Que não se limita a lançar a linha e esperar, que gosta de entrar pelo mar dentro, ainda que as águas estejam revoltas, e tem uma especial predilecção pelas pescarias nocturnas. "Às vezes, fica até às duas ou três da manhã." "É destemido", elogia Niza, para logo a seguir lembrar, entre risos: "Mas não tem carta de condução." Os livros serviram primeiro como uma espécie de bálsamo - ainda pequenito caiu à cama por causa de umas febres e uma tia decidiu começar a ler-lhe poesia (Antero, Garrett, Sardinha e Nobre, sobretudo) -, mas a partir da adolescência a literatura passou a ser uma necessidade premente. E à voracidade das leituras juntou-se a descoberta da escrita, ainda não tinha feito 20 anos. Nos primeiros anos de 50, aparecem publicados uns poemas no "Independência de Águeda", assinados por Manuel Alegre Duarte. Houve, porém, quem não acreditasse que aquele rapazito tímido fosse o autor dos versos, mas sim a mãe. Em 1958, o lançamento de "O Amor em Visita", de Herberto Hélder, opera uma espécie de revolução literária que também atinge Alegre. "Começa a escrever cada vez mais", diz Sucena, e renega de imediato o livro "Sensações Românticas" (1955), ainda hoje proscrito da sua bibliografia. Mandou queimar todos os exemplares, refere Sucena, mas alguns ainda escaparam às chamas. "Ele nunca me deu o livro, mas a sua avó Beatriz conseguiu recuperar um e deu-mo às escondidas." No prefácio deste livro, Cruz Malpique, professor de liceu de Alegre, escreveu: "Atrevo-me a ser mais profeta do que os meus colegas, mas suponho que o Alegre Duarte virá a ser gente no mundo da poesia." A literatura desde cedo uniu Alegre e Paulo Sucena, o secretário-geral da Fenprof (Federação Nacional de Professores) a quem o vice-presidente da Assembleia da República continua a telefonar para lhe ler alguns poemas acabados de escrever. Os pais de ambos já eram amigos - haviam sido colegas de carteira no liceu de Aveiro -, as casas das duas famílias situavam-se na Rua de Baixo, em Águeda. Há pouco tempo, Sucena viu o amigo na televisão a apresentar a moção da sua candidatura: "Vi aquele mesmo olhar determinado com que caçava quando era pequenino, aquele olhar que tinha quando treinava sozinho no rio." Lembra uma criança "quase bisonha", muito introvertida, mas aventureira na caça aos pardais e fanática pelo futebol. Alegre mudou muito "a partir dos 11, 12 anos", tornou-se mais extrovertido e os dois amigos passavam noites inteiras a conversar sobre livros e escritores. "É um homem de grandes lealdades. Para ele, a amizade é um posto." João Soares O "filho do eucalipto" Só lutou por um lugar no partido depois de o pai ter cessado os seus cargos, mas nem assim a sombra de Mário Soares escurece o percurso político de João Soares. Foi editor porque não podia ser político, presidente da Câmara Municipal de Lisboa por prazer e aspira ao cargo de secretário-geral. Pelo desafio? Nuno Sá Lourenço Ainda coxeava devido ao acidente na Jamba (Angola) e, naquela tarde, ia agarrado ao braço do amigo Manuel de Brito, enquanto ambos examinavam o progresso das obras na Expo-98. Há uma mulher que diz: "Olha, é o João Soares!" O amigo do então presidente da Câmara de Lisboa comenta que já não lhe chamavam "o filho do Mário Soares". A resposta foi sintomática sobre as aspirações do homem e do político: "Isto vai chegar a um ponto em que o meu pai há-de ouvir: 'Olha, vai ali o pai do João Soares!'" O ex-autarca, editor "congelado" e polemista assumido, concorre a um cargo que já foi de Mário Soares. Os apoios entre as grandes figuras socialistas não são muitos, mas isso é algo a que o candidato já está habituado. Tem o apoio do pai, a que recorre a conta-gotas e a contragosto. Essa atitude nada tem a ver, assegura, com o "enorme carinho" que a figura paterna lhe merece. Mas a relação está desde sempre marcada pelo efeito negativo que representa "ser filho daquele pai". Ao longo da sua vida política, João Soares traça constantemente uma barreira entre a sua actividade e a carreira de Mário Soares. "Nunca quis cargos no PS nem fora do PS, enquanto ele foi secretário-geral", diz. "Nunca tive nenhum apoio dos chamados amigos mais próximos do meu pai". Por isso evita ao máximo o recurso ao pai durante as campanhas eleitorais que encabeça. Diz que a vontade de Mário Soares era sempre a de estar presente mais vezes. "Na última campanha para Lisboa [Dezembro de 2001], o meu pai passava o tempo a queixar-se que eu não o deixava aparecer. Eu fiz-lhe a vontade uma única vez, no dia dos anos dele, quando ele subiu a Rua Augusta comigo e com o João Amaral", lembra. "Quando se disputa uma eleição, disputa-se por mérito próprio". Ele e os seus amigos mais próximos repetem que a filiação lhe foi mais prejudicial que vantajosa. "Dentro do PS há pessoas que têm o complexo de Édipo mal resolvido e tentam matar o pai através do filho" - João Soares resume assim as muitas dificuldades que tem sentido para se afirmar como protagonista. "O João sempre pagou um preço muito grande por ser filho daquele eucalipto, que suga toda a água à sua volta", comenta Manuel de Brito. "Se não fosse Soares, teria tido mais oportunidades", assegura Ozita, a secretária do pai Soares que aderiu à equipa de campanha do filho Soares. João Soares nasceu a 29 de Agosto de 1949, "filho de duas pessoas conhecidas da nossa terra: Maria de Jesus Barroso e Mário Soares", lê-se no "site" pessoal, onde aponta o avô como a principal referência familiar. "Era ele que estava às refeições, o acompanhamento dos estudos era feito por ele, por causa da vida atribulada do meu pai". Nessa altura, já Mário Soares era uma das figuras mais perseguidas pela polícia política do Estado Novo. Os anos escolares foram repartidos entre o Liceu Francês e o Colégio Moderno, fundado pelo avô. A escola primária foi quase toda feita em francês. Os pais quiseram-no bilingue. Mudaram-no para a escola da família na quarta classe, "para depois também não ficar francófono". Haveria de regressar ao Liceu Francês no sétimo ano por causa de "um conflito com um professor de Latim". "Ele era muito autoritário. E queixou-se de que eu era comandante de uma certa revolta contra ele e o meu avô e o meu pai decidiram que eu ia para o Liceu Francês. O meu pai até costuma dizer que eu fui expulso, mas não chegou a esse ponto". Foi aí que reencontrou uma colega da infantil e alguém que foi conhecendo melhor na pró-associação dos liceus. Da sua amizade com João Soares, Ana Merelo lembra-se de ter ficado com a imagem de um "estudioso" e "um miúdo muito valente, muito teso, com uma irreverência quase militante". Aos 14 anos já havia episódios de uma personalidade contestatária. Ana Merelo recorda com um sorriso que não perdiam uma oportunidade para implicar "com as senhoras do Movimento Nacional Feminino": "Costumávamos subir a pé do Marquês de Pombal até ao liceu. Elas andavam ali ao pé do Hotel Ritz a pedir pelos soldados. Nós fazíamos um ar muito ingénuo e perguntávamos se aquilo era para os movimentos de libertação." Como "jovem do seu tempo" - palavras de Manuel de Brito -, João Soares militou nos movimentos estudantis e universitários que lutavam contra a ditadura e a guerra colonial. Ana Merelo lembra que os problemas com a sua filiação já se faziam sentir. "Foi a uma reunião na casa do Arnaldo de Matos [chegou a líder do MRPP] para decidir se convocávamos uma manifestação contra a guerra. Ele tomou uma posição mais moderada do que a maioria quando se discutiu se se desencadearia violência da parte dos estudantes. E houve alguém que lhe atirou: 'Pois, mas isso já a gente sabe porque tu és filho de um social-democrata.' Ele respondeu: 'A maioria dos vossos pais é fascista e eu nunca vos disse nada, e vocês ligam-me ao meu pai?'" Episódios como este terão ajudado a cimentar uma decisão que afectou o início da sua vida adulta. Os anos de menor actividade política auto-impostos foram preenchidos pela sua outra "paixão": os livros. Poucos anos depois da Revolução, funda, juntamente com Victor Cunha Rego, a editora Perspectivas & Realidades, de que muito se orgulha. O facto de ter conseguido gerir a editora de uma forma economicamente viável é para o próprio um trunfo, quando se compara com outros políticos. A "muitas pessoas com responsabilidades políticas só lhes fazia bem" passar pela mesma experiência. Foi na editora que criou um problema político que o perseguiu durante muito tempo e lhe trouxe algumas inimizades. A sua ligação a Jonas Savimbi, líder da UNITA, começou por causa de um mau livro de poesia. "O Alcides Sakala [dirigente da UNITA] apareceu-me com um livro de poemas do Savimbi, que eram, aliás, muito fracotes. Eu recusei, mas ele acabou por me convencer com o único argumento que me poderia tocar e que punha em causa os direitos na nossa terra. Disse-me que o livro já tinha sido recusado por cinco ou seis editoras que se justificavam com as perspectivas de negócios com o regime de Luanda." A partir daí, faz uma série de viagens a Angola, tendo tido a oportunidade de privar tanto com Jonas Savimbi, como com o Presidente angolano, José Eduardo dos Santos. Uma delas torna-se num dos momentos mais marcantes da sua vida. Em Setembro de 1989, o pequeno avião onde viajava despenha-se na Jamba. Fica "mais para lá do que para cá", como diz, e depois do coma, tem uma lenta recuperação. A experiência ajuda-o "a perceber como separar o essencial do acessório". Manuel de Brito afirma que o viu regressar com "uma ânsia, com uma necessidade de estar vivo", que para este amigo nem sempre foi boa conselheira. "Foi essa ânsia que o fez avançar com aquela ideia do elevador do Castelo [último ano do seu último mandato na Câmara de Lisboa, 2001]. De repente, conseguiu arranjar um imbróglio tal que deu cabo da unanimidade à volta do seu mandato." Rodrigues Soares, uma amizade que perdura desde que João Soares desafiou Vítor Constâncio em congresso, afirma que essa característica já existia antes do acidente: "Já era agarrado à vida, a vida dele já era a correr riscos. Basta recordar a luta pela Câmara de Lisboa. Quando avançou com a ideia, tinha o partido todo contra ele." Manuel de Brito, amigo dos tempos da editora, afirma mesmo que o PS lhe deve esse "mérito de cidadania": "É que o João, ainda como editor, teve a ideia de fazer uma coligação para ganhar Lisboa." E recorda a resistência que recebeu no PS: "A visão maioritária era que se houvesse uma coligação com os comunistas em Lisboa, o PS nunca seria governo. Opuseram-se, e quando já não podiam opor-se à ideia, opuseram-se a que fosse o João o candidato". É aí que o socialista comete "o erro histórico absoluto": aceitar ser segundo de Jorge Sampaio: "O que é que teria acontecido se o João tivesse insistido na sua candidatura, e fosse presidente em Lisboa quando Sampaio abandona a liderança do partido?" Rodrigues Soares discorda. "Ele teve a perspicácia de ver que mais tarde ou mais cedo iria ser presidente da câmara." Esse período de actividade política mais gratificante terminaria para o socialista de uma forma violenta e inesperada com a derrota perante Pedro Santana Lopes. Curiosamente, um dos dois políticos no activo que Soares reconhecera em 1997, numa entrevista, como os "adversários que temia". O outro era Leonor Beleza. Temia Santana, explica hoje, dada a sua "capacidade demagógica impressionante". "Foi o único político português que consegui ver a jogar na tripla, sempre na primeira linha: na política, no futebol e nas colunas sociais." Entre as pessoas mais próximas, no entanto, a convicção é a de que João Soares perdeu por culpa de João Soares. "Fez uma campanha desgraçada, ou melhor, não fez campanha. Talvez porque para ele as coisas eram tão óbvias que achava que não tinha de andar a falar delas", recorda Ana Merelo. A derrota deixou marcas. "O maior desgosto da sua vida foi ter perdido a Câmara de Lisboa", confidencia Rodrigues Soares."Ficou desmoralizado". Essa altura correspondeu também ao seu divórcio. "Não sei até que ponto as coisas não estão relacionadas", afirma Ana Merelo. Desse período, o socialista haveria de emergir com uma nova relação afectiva e um filho de nove meses, Jonas, que o candidato fez questão de apresentar ao país na sua primeira declaração política enquanto aspirante a secretário-geral. "Não tem medo de correr riscos. Apesar da sua liderança poder ser beliscada por essa opção pessoal, ele assumiu-a perfeitamente", comenta Rodrigues Soares. José Sócrates O beirão próspero O estilo, pouco dado a diálogos e do género meia bola e força, é visto como de direita, cavaquista; mas em muitas causas está na esquerda do partido. É da síntese destas contradições que nasce a "esquerda moderna" que diz representar? É um beirão próspero que quer chegar a primeiro-ministro. João Pedro Henriques A verdade dos factos: o primeiro discurso parlamentar de José Sócrates sobre um tema nacional foi dedicado a algo (então) verdadeiramente fracturante, libertário, enfim, próprio de organizações tipo Bloco de Esquerda: a defesa do nudismo nas praias de Portugal. Estava-se em Abril de 1988 e o jovem deputado (31 anos) defendeu esta prática como um "costume alternativo e praticado por pessoas de elevada consciência cívica e ecológica, por razões higiénicas, estéticas e éticas". Discutia-se um projecto de "Os Verdes" que legalizava a possibilidade do nudismo em zonas devidamente circunscritas e para Sócrates, o "constrangimento" e o "embaraço" do PSD na matéria era próprio de "forças políticas conservadoras". Hoje, 16 anos passados, Sócrates é visto no PS como o representante das "forças políticas conservadoras", da direita do partido, pouco dada a convívios com o Bloco e outras esquerdas, até supostamente menos radicais. Tanto assim que foi obrigado a jurar na sua moção ao congresso que excluía de todo em todo alianças do PS à direita. O problema, se calhar, é de estilo e de táctica - mais do que conteúdo. Sócrates cuida da imagem: vai ao ginásio, mantém a linha, é pouco amigo de noitadas, quase não bebe e já não fuma (ou melhor: há pouco tempo teve uma recaída e diz que passou a fumar um cigarro depois do jantar). Acompanha a moda masculina e de tal modo que no congresso do PS de 2001, no Parque das Nações, o seu trajar (calças escuras, "blazer" de cabedal preto, camisola preta de gola alta) não escapou à ironia de alguns camaradas - agora seus apoiantes, por sinal - que lhe gozaram a "audácia da moda jovem". Nos cânones da esquerda clássica portuguesa, homem que é homem evita modernices. Para vestir bem, veste no Rosa & Teixeira, nunca no Armani. Foi precisamente o seu principal adversário na corrida à liderança do PS, Manuel Alegre, quem, na legislatura 1999/2002, o encostou à direita do partido. Sócrates, então ministro do Ambiente, apostou tudo por tudo na instalação da co-incineração na cimenteira de Souselas (Coimbra). Alegre - cabeça de lista do PS pelo distrito - ergueu a voz e o partido rachou-se ao meio, mas Sócrates manteve-se firme. De tal forma que Alegre o etiquetou de "cavaquista" - e a etiqueta colou. "Cavaquista", no dicionário de Manuel Alegre (e do PS todo), quer dizer autoritário, arrogante, autista, intolerante. De onde lhe veio, então, este estilo? Camaradas seus de há muitos anos (que preferem o anonimato), dizem ter-lhe detectado uma mudança no comportamento quando chegou ao Governo, em 1995. O seu primeiro posto foi o de secretário de Estado do Ambiente, sector de que foi porta-voz do PS desde 1991. Nessa altura, quando chegou ao Governo, os amigos começaram a perceber-lhe comportamentos coléricos, irascíveis, sempre que as coisas não lhe correm de feição. Parece que antes não era assim. Quando isto acontece, a conclusão é sempre a mesma: o poder subiu-lhe à cabeça. Talvez sim, talvez não, as versões dividem-se consoante a proximidade ao ex-ministro do Ambiente. A verdade é que José Sócrates gosta de cultivar publicamente uma noção do poder algo heterodoxa. Uma noção em que o poder da palavra é o instrumento essencial. Por isso diz rever-se em quem acha que "o principal dever de um político é falar". Assim mesmo: "falar". Nos dias de hoje, tal "confissão" é pouco comum: a maioria dos políticos acha que o seu principal dever é "fazer". O "falar" de Sócrates é o dar instruções, definir caminhos, estabelecer prioridades, mobilizar quem tem de mobilizar para que essas prioridades se cumpram. Os "dossiers", esses, ficam para os técnicos, e nisso Sócrates diz que funciona muito na "escola Soares" (Mário Soares). Quando fala e não se faz ouvir, irrita-se, às vezes muito. Já muitos jornalistas lhe aturaram neuras descomunais. Vive mal com apreciações negativas da sua condução política. A tradução que o próprio deu a este comportamento foi definir-se, recentemente, em entrevista ao "Expresso", como "um animal feroz". Manuel Alegre não perdeu tempo a recordar, divertido, os seus méritos de caçador. Esta maneira de proceder tem dado os seus resultados. Não faltou a Sócrates obra feita nos seus mais de seis anos de Governo (Outubro de 1995 a Março de 2002): obrigou os serviços públicos (telefones, electricidade, água, gás) a apresentarem facturas detalhadas aos clientes; moralizou a actualização anual dos seguros automóveis contra todos os riscos; conquistou para Portugal a realização do Euro 2004; introduziu o uso da metadona como terapia substitutiva para viciados em heroína; varreu dezenas de lixeiras espalhadas pelo país inteiro, argumentando mesmo que as erradicou em absoluto. Também lhe constam do currículo, evidentemente, fracassos: a co-incineração, que nunca chegou a avançar; a incapacidade de recuperar financeiramente a RTP. Do ponto de vista dos cargos, a trajectória foi sempre ascendente: de secretário de Estado adjunto da ministra do Ambiente (Elisa Ferreira) passou, em 1997, a ministro adjunto do primeiro-ministro (tutelando aqui as áreas da toxicodependência, desporto, juventude e, mais tarde, comunicação social). No segundo governo de Guterres, regressou à sua área de especialidade, o Ambiente, mas desta vez já como ministro. José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa nasceu no Porto em 6 de Setembro de 1957. Até entrar na Faculdade (Coimbra), passou a infância e a juventude entre a transmontana Vilar de Maçada (aldeia do pai) e a Covilhã (distrito de Castelo Branco), em cuja câmara o pai era arquitecto. Quando tinha sete, oito anos, os pais divorciaram-se. Ficou com o pai, na Covilhã; os irmãos (um rapaz e uma rapariga) foram viver com a mãe para Lisboa. José Sócrates já assumiu que ser filho de pais divorciados representava, na Covilhã de meio da década de 60, um "estigma forte". Talvez lhe venha da convivência forçada com este "estigma" uma visão muito liberal, para não dizer esquerdista, dos costumes (admite com facilidade o casamento entre homossexuais, por exemplo). A política chegou-lhe por culpa do pai, apoiante da Ala Liberal, o grupo formado por Sá Carneiro, Pinto Balsemão (pela mão de quem Sócrates acedeu ao super-exclusivo Clube de Bildenberg) e outros na "primavera" de Marcello Caetano. Quando chegou a revolução, o pai fundou o PPD na Covilhã. O filho seguiu o mesmo caminho, filiando-se na JSD. No ano seguinte, em pleno 25 de Novembro, chegou à Universidade de Coimbra, onde estudou Engenharia Civil. A militância na JSD foi curta, mais ou menos um ano. Ao jovem Sócrates pareceu que afinal a organização era liberal e não social-democrata (versão nórdica) como reclamava ser. Saiu logo em 1975. Chegou a Coimbra à boleia, num velho Fiat 127, de um seu amigo de infância, Luís Patrão (que veio a ser chefe de gabinete de Guterres e depois secretário de Estado na Administração Interna). Patrão, um dos principais responsáveis pela sua adesão ao PS, diz que o amigo "conserva hoje muitas das qualidades que já tinha - determinação e capacidade de antevisão, por exemplo". Além disso, "reforçou outras, como a capacidade de se preparar cada vez melhor para as coisas que tem de enfrentar". "Para mim é uma das pessoas melhor preparadas em Portugal para assumir funções públicas de grande responsabilidade." E defeitos? "Talvez uma certa impulsividade." Em Coimbra, conta ainda, foi "um jovem como os outros, com grande capacidade de se inserir nos vários ambientes universitários" - e nessa altura o debate político fervia. Tinha as suas namoradas, claro, e, como aliás desde a infância até hoje, dedicava-se intensamente ao desporto (na Faculdade a opção foi pela esgrima). Quanto à alegada mudança de personalidade quando chegou ao Governo, Patrão admite. Mas desculpa: "Foi o peso das responsabilidades." Findo o curso, regressou à Covilhã. De 1981 a 1987 foi engenheiro na Câmara da Covilhã, de onde saiu para assumir o cargo de deputado. É também em 1981 que dá o passo que o trouxe até onde hoje está: inscreveu-se no PS. Contra os soaristas - que na altura representavam a direita do PS - e por apenas dois votos, conquista em 1986 a federação do PS em Castelo Branco, fazendo campanha pelo distrito ao volante de um velho Mercedes. Só quando chegou ao Governo, em 1995, é que largou o cargo, para um sucessor escolhido a dedo (Fernando Serrasqueiro). Significa isto que José Sócrates fez a sua ascensão no PS nacional com um pé sempre assente na sua base distrital. É daqui que lhe vem a acusação de "aparelhista". Em 1984 conhece o homem ao lado de quem foi ascendendo até chegar ao Governo: António Guterres, a sua principal referência política. Conspiram contra Soares juntos. Votam ambos contra o Bloco Central. Em 1987, ano da primeira maioria absoluta de Cavaco, José Sócrates é finalmente eleito deputado. Desde então que vive da política. Podia até fazê-lo à borla: sendo herdeiro de uma fortuna fundada por um avô no comércio do volfrâmio durante a Segunda Guerra Mundial, não está na política por precisar - apenas porque quer. Da vida extrapolítica pouco se sabe. É divorciado e tem dois filhos rapazes, de oito e 11 anos. Assumiu recentemente que o seu "entusiasmo pela vida diminuiu" em 1988, com a morte da irmã, em circunstâncias que não explica. A preservação da intimidade é uma das marcas da sua atitude pública. Comparam-no a Pedro Santana Lopes, mas a verdade é que nunca se viu a "Caras" entrar-lhe pela casa dentro. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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