"Nunca senti que alguém tivesse mão em mim"

31-10-2003
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"Nunca Senti Que Alguém Tivesse Mão em Mim"

Por ISABEL RUT

Segunda-feira, 27 de Outubro de 2003 Texto: Sérgio C. Andrade Fotos: Paulo Ricca e arquivo pessoal de Isabel Rut No próximo dia 29 de Novembro, passam exactamente 40 anos sobre a estreia, no S. Luiz, em Lisboa, de "Os Verdes Anos", primeira obra de Paulo Rocha. O filme foi uma lufada de ar fresco na cinematografia portuguesa da época e tornou-se mesmo numa espécie de bandeira do cinema novo. Nessa fita, que, de uma forma ainda um pouco desajeitada e de todo não convencional, retratava o provincianismo da capital portuguesa e o mal-estar da juventude que a habitava, sobressaíram duas coisas: a música de Carlos Paredes e... a presença de uma actriz totalmente desconhecida, Isabel Ruth (n. 1940, Tomar). Fazia a Ilda, uma jovem e intempestiva empregada doméstica, personagem-ícone do inconformismo que viria depois a marcar o trabalho de toda uma nova geração de cineastas e de actores. Quatro décadas volvidas, Isabel Ruth trabalha de novo com Paulo Rocha, em "Vanitas", filme cuja rodagem decorre no Porto. A "fidelidade" da actriz ao realizador passou já por outros títulos: "Mudar de Vida" (1967), "O Desejado ou As Montanhas da Lua" (1987), "O Rio do Ouro" (1998) e "A Raiz do Coração" (2000). Mas, pelo meio, Isabel Ruth experimentou outras artes e outros mundos. Sempre em viagem, sempre um pouco à margem e em permanente estado de inconformismo com ela própria e com a vida. É disso que a actriz fala numa longa conversa que manteve com a PÚBLICA - a quem ofereceu, também, um poema inédito -, em dois intervalos da rodagem de "Vanitas", em Julho, no Porto, e em Setembro, em Cascais. PÚBLICA - Está a filmar "Vanitas", o novo filme de Paulo Rocha, 40 anos depois d'"Os Verdes Anos". O realizador escreveu uma vez que não existiria sem a Isabel Ruth... ISABEL RUTH - O Paulo é muito exagerado. E o que se diz não se escreve (risos). Isso é um exagero da parte dele, pois ele faria os seus trabalhos mesmo se não me tivesse escolhido nesse dia fatal (risos) em que me conheceu... P - Lembra-se das circunstâncias em que se deu esse encontro? IR - Lembro-me de que ele bateu à minha porta, depois de telefonar a perguntar se podia ir lá a casa ver-me, porque gostaria que eu participasse num filme dele. É a única coisa de que me lembro. Creio que alguém lhe falou ou que ele me viu na televisão a fazer qualquer coisa. Nessa altura eu também dançava e fazia alguns espectáculos na televisão, umas peças de teatro, umas séries, umas coisas do princípio da televisão. Mas disso ele deve lembrar-se melhor do que eu. Ele foi lá a casa e achou que eu podia fazer a personagem. P - "Os Verdes Anos" marcou uma mudança radical no cinema português. Teve essa percepção quando fez o filme: que ele estava a inaugurar algo de novo? IR - O filme foi um grande êxito no dia em que o estreámos. Lembro-me perfeitamente de que estávamos no São Luiz - estávamos no camarote da presidência -, e, quando o filme acabou, o público todo virou-se para nos aplaudir. Foi um estrondo, um grande êxito nessa antestreia. Surpreendeu o público. Mas eu não era uma cinéfila. Embora fosse uma grande apaixonada pelo cinema, não era propriamente "rato de cinemateca" nem tinha nenhum interesse em ser actriz - em fazer cinema, talvez, mas nunca me tinha passado assim pela cabeça, embora o cinema me fascinasse, como aliás, fascina tanta gente. Mas esse não foi nunca o meu desejo, porque eu era muito tímida. Sempre achei que, como bailarina, podia expressar melhor a necessidade de comunicar um amor em mim que transbordava, a necessidade de partilhar que todos temos, mas que muitas vezes, por um estranho pudor, não o fazemos. Fazemo-lo sim doutra maneira, com e através da arte, uma porta que misteriosamente se abre. P - A dança era a sua vocação primeira. IR - A dança foi a minha vocação. P - Quando é que teve essa percepção? IR - Aos quatro anos, já eu era bailarina - adorava dançar, aprendia tudo facilmente e era muito musical. P - Mas só começou a levar a dança a sério quando saiu de Tomar e foi viver para Lisboa, aos 12 anos... IR - A sério, levei sempre, mas só comecei a ter escola, só entrei nesse "colete de forças", mais tarde. A dança era uma coisa livre, para mim... A primeira vez que entrei numa sala de aulas e me deparei com as barras, fiquei assustada, só queria fugir pela porta fora. A minha professora é que me segurou. P - Depois aprendeu a lidar com esse "colete de forças". IR - Nessa altura, havia a barra e, depois, havia o centro. Quando saía da barra e ia para o centro, era uma explosão! A pouco e pouco, o método foi-me domando - digamos que eu era um bocado selvagem. Ao mesmo tempo, fui canalizando essa espontaneidade através da técnica. Depois fui para uma escola em Londres, onde aprendi mais. A técnica dá segurança e só com segurança se pode ser livre e dar boa conta de nós mesmos. P - Mas acabou por abandonar a dança. Dedicou-se ao teatro, e ao cinema e depois... desapareceu. IR - Desapareci por algum tempo, mas só das notícias. Tornei-me incógnita; fiz outras coisas. Mas voltei. Ser figura pública, desde que não se faça má figura, afigura-se-me bem! P - Lidou mal com a situação de figura pública? IR - Não. Até senti que era muito agradável, sentia-me muito amada. Esse lado da glória é agradável, só que uma pessoa continua a percorrer o seu caminho. "Life goes on", como diz a canção. Eu depois comecei a entrar a pouco a pouco no mundo do cinema e noutras "fitas", mas continuava fiel à dança. Depois, naturalmente - e não foi premeditado -, apostei noutras coisas e afastei-me do meu tão querido "ballet". Até porque achava que nunca iria ser uma bailarina tão perfeita quanto desejaria. Então acabei com a carreira. Lá consegui chegar a prima-bailarina, já não foi mau. Apesar de um longo Inverno de descontentamento, época fria na dança em Portugal, mas hoje regozijo-me por ter feito parte de um pequeno grupo impulsionador do bailado e de algumas companhias que existem neste país. P - Porque é que optou pelo cinema? IR - Nunca pensei muito na hipótese de uma carreira futura de cinema. Na dança, eu era mais perita, tinha uma base forte. Conhecia melhor a dança do que o cinema. Ser actriz não foi a minha vocação, nem tive escola. Era mais uma coisa instintiva. Mas o cinema fascinava-me também, como actriz. Desde miúda que eu ia ao colo dos meus pais ver cinema. Depois, na minha adolescência, comecei a descobrir verdadeiramente a sétima arte e a admitir que havia alguém por detrás, a mexer os cordelinhos... Para além, ou aquém, dos actores, havia os realizadores e, quem sabe, produtores! P - Interessavam-lhe alguns realizadores em particular? IR - Fui fã do Bernardo Bertolucci, que conheci pessoalmente. P - Quando decidiu viajar para Itália, em 1967, depois de fazer "Mudar de Vida", foi à procura de trabalhar com Bertolucci? IR - Fui para Itália, não propriamente à procura do Bertolucci, mas porque tinha uns amigos lá. Entre eles, o Gianni Amico, que era, aliás, amigo e assistente do Bertolucci, e foi através dele que o conheci. O Gianni gostava muito de Portugal, do cinema português, e do cinema brasileiro do Glauber Rocha. Ele viu "Os Verdes Anos" e também gostou muito, e gostou muito de mim como personagem. Depois conheceu-me pessoalmente e falou de mim ao Bernardo e ele foi ver o filme. Entretanto, eu vi "Prima della Revoluzione" [1964]. Para mim, o melhor filme dele. Vi-o de novo, no ano passado, na Cinemateca, e fascina-me sempre. P - Mas acabou foi a trabalhar com Pasolini, em "Édipo Re" (1967). IR - Ah! Foi uma pequeníssima aparição, quase invisível. Estou com um cordeirinho ao lado da Sylvana Mangano - fiz uma das aias. Eu estava a fazer uma peça de teatro em Itália, "Il Ricatto al Teatro", de Daccia Maraini, que estava ainda casada nessa altura com Alberto Moravia e que acompanhava os nossos ensaios. Na peça havia duas figuras femininas: uma mais jovem, que eu interpretava, e outra mais velha, interpretada por Laura Betti. O Pasolini assistia aos ensaios, porque era amigo dela. Era todo um clã: o Bernardo, o Pasolini, a Laura Betti, a Daccia e até o Gato Barbieri (grande trompetista argentino a viver nessa época em Roma), muito amigo do Bernardo... P - ... E que, mais tarde, faria a banda sonora de "O Último Tango em Paris". IR - Sim. Era um músico talentoso, e uma pessoa muito querida de todos. E havia, enfim, outros... Nessa altura, eu disse ao Pasolini: "Gostava tanto de participar num filme seu, nem que seja uma pontinha." Ele respondeu-me: "Vou fazer agora o 'Édipo', mas não há nenhum personagem para si. O único papel interessante feminino é o que vai fazer a Sylvana Mangano; mas, se quiser, pode fazer o papel de uma das aias", não tem sequer texto. No filme só se vê, muito de relance, eu ao lado da Mangano, com um cordeirinho nos braços. P - Que memória guarda de Pasolini? IR - Ele era um homem muito introvertido. Lembro-me que o conheci no Festival de Veneza. Não sei como, no fim da projecção de um filme, fomos os três, ele, o Ninetto [Davoli], o protagonista de quase todos os seus filmes, e eu parar a uma discoteca. Sabe como é nos festivais: vamos para aqui e para ali; agora vamos dançar... E o Pasolini ficou toda a noite sentado na mesa, enquanto eu e o Ninetto nos divertíamos a dançar o "twist" e aquelas coisas da época. Mas ele era um homem generoso. Um dia, quando eu ia para as filmagens na Cinecittà, ao atravessar um daqueles longos corredores de cimento, vejo uma figura vir do outro lado. Éramos só os dois, duas almas solitárias naquele imenso corredor, e quando eu começo a ver quem se aproximava, deparo com o Marlon Brando!, no esplendor da sua juventude - apesar de ser mais velho do que eu. Cruzámo-nos, os dois, naquele infindável corredor: eu, paralisada a olhar; ele, ao passar, faz-me um grande sorriso e diz-me: "Hello". Depois olhei para trás; ele olhou também para mim e fez-me um grande adeus. Foi um encontro especial, único, apesar de hoje me parecer tudo uma patetice... P - Não voltou a cruzar-se com ele? IR - Nunca mais o vi. Tive muitos encontros cinematográficos, mas este foi tão único como o próprio Marlon Brando. P - O ambiente no mundo do cinema em Itália dessa época era muito diferente do que então se vivia em Portugal? IR - Sabe, eu fui descobrir não sei se a Itália, mas Roma, pelo menos. Era fascinante para mim, nesses anos 60. Depois, entrei num grupo... Isto é como em todas as cidades. Há um clãzinho. Na altura, em Lisboa, era o Chiado, a Brasileira..., ali na zona dos teatros: o S. Luiz e o S. Carlos, muito frequentado. Ao S. Luiz ia-se muito ver cinema e espectáculos; no S. Carlos era a ópera, e eu, sobretudo, ia muito ao "ballet". Depois dos espectáculos, íamos sempre um bocado para a Brasileira, então não tão banalizada como agora. Em Roma, era na Piazza del Popolo, no Café Rosati, o equivalente à Brasileira, e os "habitués" eram o Alberto Moravia, a mulher, o Bertolucci, o Pasolini, etc... Um mês depois de chegar a Roma, fiz duas curtas-metragens, depois uma peça de teatro e um filme como protagonista ["Il Rapporto" (1968), de Lionello Massobrio]. De maneira que correu-me assim às mil maravilhas, embora, por um lado, fosse uma experiência também dura, porque foi a primeira vez que estive sozinha num país que não era o meu. P - Nessa altura, não foi acompanhada pelo seu marido, João d'Ávila? IR - Não. Os nossos projectos divergentes separaram-nos. P - Também deixou em Portugal o seu filho. Não foi uma decisão difícil, para si? IR - Deixar não é bem a palavra. Separámo-nos sim. O meu filho tinha três anos. Mas eu tinha, e tenho, uma mãe que era então ainda muito jovem. Quando fui para Itália, o meu filho ficou com ela. Portanto, estava bem guardado, bem entregue. E eu não fui definitivamente. Mas, mais tarde, arrependi-me, embora ele estivesse muito bem entregue. Foi ingenuidade minha. Hoje não faria uma coisa dessas. Mas nós não prevemos tudo. P - Foi complicado gerir as relações familiares com o seu trabalho profissional? IR - Para mim, não foi complicado. Há tempo para tudo. Eu não trocaria nunca os meus filhos pelo trabalho. Arranja-se sempre tempo para as duas coisas. Os meus filhos sempre foram a minha prioridade. A minha vida foi complicada, mas não foi pelo trabalho. Foi pelas emoções, foi pelas relações... Sobretudo pelas ilusões, mas nunca pelo trabalho. P - A sua ida para a Itália foi uma fuga ao nosso país, a esse país provinciano que "Os Verdes Anos" tão bem retrata? IR - A minha fuga já tinha sido antes, porque, logo que me casei com o João, fomos os dois viver para Londres, para estudar. Talvez fosse uma fuga a outras coisas. Não talvez do país provinciano. Eu nunca senti que o país fosse provinciano. Eu também sou, também era provinciana, embora com o desejo de conhecer outros mundos. Se calhar, Paris também tinha muito de provinciano, como os Estados Unidos têm muito de provinciano... P - Quando falo do provincianismo do nosso país de então, refiro-me à atmosfera fechada e opressiva do salazarismo... IR - Eu nunca me senti dominada por nada, se não, talvez, às vezes, pela própria situação familiar. Nunca senti que alguém tivesse mão em mim. Se calhar é por pura ignorância, mas nunca me senti proibida de nada, nunca ninguém me fechou as portas para sair ou para entrar em Portugal. P - Sempre se considerou uma mulher livre? IR - Sempre tive a sorte de fazer o que me apetecia. P - Foi isso que a levou, dois anos depois de chegar a Itália, a rumar para o Oriente? IR - Da mesma maneira que fui para Itália, fui andando para outros sítios. Eu fui para Itália porque admirava o cinema italiano também. Queria fazer um filme com o Fellini ou com o Bertolucci. Nunca fiz. Fui a uma audição para um filme do Fellini, mas aquilo já estava superesgotado. Conheci-o, falei com ele, mas não fui escolhida. E convivi um ano com o Bertolucci e nunca entrei num filme dele, porque ele, por essa altura, estava com uma crise existencial enorme. O Pasolini foi o que foi. E o Truffaut, fui à estreia do "Fahrenheit 451" [1966] ao lado dele; almoçámos, jantámos, passeámos juntos, mas também nunca fiz nenhum filme com ele. Malhas que o império tece. P - Mas, de um momento para o outro, decidiu abandonar a Itália, o mundo do cinema e partir novamente. IR - Fui viajar. Toda a gente me falava na maravilha que era o Afeganistão, o Paquistão, a Índia - por acaso, nessa altura não fui ainda à Índia -, o Nepal, Katmandu... Países que estão agora na moda, mas que eu descobri só, há quase 40 anos. P - Fez a viagem ao Oriente com João d'Ávila? IR - Desafiei-o e ele também veio comigo. P - Essa viagem, decidiu fazê-la por algum apelo religioso, ou foi mais exótico. Numa entrevista, disse que foi mais pela região do que pela religião. IR - O Oriente apela ao misticismo? "Ça dépend." Há quem viaje para a Índia por negócios, para o Afeganistão para traficar, à Tailândia sabe Deus para quê, à China para se especializar no jogo, ou se aperfeiçoar nas lutas de cães, ao Tibete para encontrar Deus, etc... etc... Sim, talvez o verdadeiro motivo de todas estas viagens seja o apelo religioso... Andamos todos a tentar ser religiosos, queremo-nos unir uns aos outros. Eu estou noutra fase, vou tentando unir-me a mim mesma, e a tarefa não é nada fácil. Também eu viajei - num Ford Van todo equipado para uma longa aventura - com o desejo de saber mais, de descobrir, de conhecer mais, sem marcações prévias de hotel. Atravessámos as montanhas do Afeganistão, onde há uma ressonância, uma grandiosidade que nos faz sentir pequeninos. P - Tendo conhecido o Afeganistão nessa altura, como é que viveu os acontecimentos dos últimos tempos: a invasão, a guerra... IR - Foi com grande tristeza. Lembro-me muito bem, quando chegámos a Cabul, tivemos de esperar uma tarde e noite inteiras na fronteira, mas "na melhor": a tomar chá de menta com quem aparecia. Tinha a sensação de que o que eles gostavam era de nos ter ali, também pela curiosidade de nós sermos estrangeiros. Porque aquilo, realmente, parecia-me outro planeta. Estávamos na Idade Média! P - Foi uma fuga à civilização? IR - Nós, ocidentais, temos a pretensão de sermos muito civilizados. Apesar de sentir que estava a viver dentro de um filme histórico, pude aperceber-me de que, na sua simplicidade, este povo era cordial e muito hospitaleiro. A postura e a dignidade dos mais velhos era o exemplo prático disso. Cabul era uma verdadeira feira de convívio, um perfeito miradouro para conhecer aquele povo. Surgiam algumas tribos, homens e mulheres montados em cavalos nas suas túnicas brancas, cavaleiros armados com sabres, os nómadas... Era outra cultura. Podemos até ser inimigos, mas quando entramos num outro país, há essa abertura, essa reciprocidade. Nós, portugueses, também somos muito hospitaleiros, demasiado simpáticos até com os estrangeiros. Para mim, foi uma experiência bem diferente das cidades, digamos, civilizadas, como Paris ou Londres, em que as pessoas fecham as portas. A partir da Grécia, não havia portas. Era sempre a andar e as boas-vindas eram constantes. A beleza de tudo aquilo, a paisagem, as cores, os cheiros... P - Quanto tempo esteve por essas paragens? IR - A viagem durou mais ou menos um ano. P - Depois regressou logo a Portugal? IR - Não. Regressei a Roma. E daí fui para Ibiza, onde vivi três anos. P - Quando regressou do Oriente, sentiu que vinha diferente de quando tinha partido? IR - Um pouco diferente, talvez. Se calhar, com mais dúvidas, mais perguntas. A experiência desconsertou-me e consertou-me. Vim encantada com o Nepal, onde estive um mês; alugámos lá uma casa. Tivemos muitos contactos. Não do terceiro grau, nada de sobrenatural, mas contactos frontais, com seres humanos muito dignos, gente muito bonita e directa. P - Quando, no início da década de 70, decidiu voltar a Portugal... IR - Tinha 33 anos. Constatei que tinha qualquer coisa a fazer aqui. É como se eu finalmente pudesse regressar a este país sem ter de enfrentar só problemas. Saí daqui muito ingénua, apesar de já ter 27 anos e ser já mãe, mas acho que cresci e voltei adulta. E vivi a minha própria vida, sozinha. Lutei de uma maneira normal, sem estar superprotegida. E quando me senti já forte e adulta, realmente independente, voltei para viver em Portugal. P - O seu objectivo era voltar a fazer cinema? IR - Não, de maneira nenhuma. Estava muito relutante. Achava que o cinema me tinha distraído muito, de muitas coisas, e me tinha feito entrar num mundo muito supérfluo, embora fosse muito atraente. P - Mas acabou por regressar mesmo ao grande ecrã. E de novo pela mão de Paulo Rocha, em "O Desejado ou as Montanhas da Lua" (1987). IR - Não. O primeiro filme que fiz, após regressar, foi "O Bobo", do José Álvaro de Moraes... P - Mas que viria a ser estreado apenas em 1987... IR - E antes também fiz o "Conversa Acabada" (1982), do João Botelho, e o "Agosto" (1987), do Jorge Silva Melo. Quando regressei, o Paulo tinha projectos para filmar, mas não me incluía neles. Eu estava uma pessoa diferente, mudada, obviamente mais velha e um pouco mais sábia, mas também menos disposta a ouvir histórias. Agora eu era a heroína dos meus próprios contos... Eu estava numa fase de encantamento com a vida, e o Paulo pensou que eu estava inapta para fazer cinema. Desvendaram-se-me muitas coisas e isso, às vezes, perturba algumas pessoas, sobretudo aquelas que não nos conhecem, mas que julgavam conhecer-nos. P - Mas, nessa altura, Paulo Rocha também já tinha a sua experiência do Oriente. IR - Pois é. Cada um tem o apelo que merece, ou seja: nesta grande espiral da vida, sabe-se lá aonde estão uns e outros... Mas que vamos para o mesmo sítio, disso não há dúvidas. Há quem viva orientalmente no Ocidente e há quem se desoriente no Oriente. Eu adapto-me facilmente à cultura de cada país. Quando viajo não levo a minha almofada nem tenho a nostalgia do bacalhau com batatas. P - Paulo Rocha não a convidou para entrar no seu filme sobre o Wenceslau de Moraes, "A Ilha dos Amores" (1982). IR - Não. Nessa altura, eu estava em Itália. Quem desaparece esquece. P - É difícil trabalhar com ele no "plateau"? IR - Não. Não acho que seja difícil trabalhar com o Paulo. Quer dizer, há um Paulo de antes e de depois, de há 40 anos e de agora. O Paulo é um bom conversador, mas não tem muita paciência para ouvir. Também está muito fechado no mundo dele. Durante as filmagens, quando eu o conheci, ele simplesmente desaparecia. Não falava muito comigo, a não ser quando fazíamos exteriores. Ele estava apaixonado pelo Japão e pelos belíssimos contos japoneses que lia e eu era uma boa ouvinte. A "Ilda" fê-lo sair da casca. Em Portugal também há gueixas! P - Ele continua a dizer-se rendido à Isabel, como actriz e pessoa. IR - Acha? Eu não acho. Quem vive em castelos, raramente se rende. Tenho servido os realizadores à medida das suas realizações. Não me lembro de nenhum realizador estar ao meu serviço. P - Disse, uma vez, que não se revia muito nas personagens que fazia, nomeadamente nas dos filmes de Paulo Rocha. IR - Eu não me vejo como os outros me vêem. É impossível. Quanto mais quando os outros querem que eu seja outra. N'"Os Verdes Anos" não tinha experiência, foi o meu primeiro filme. Sentia-me muito amada nessa época, não tinha nada a temer. Nunca me prestei a "castings", esse negócio ainda não prosperava. Eu era bastante espontânea, embora achasse, ao ver o filme, que estava ali muito tímida. Gostaria de ter sido mais desenvolta. Mas depois percebi que a culpa não era só minha. O Paulo também não tinha experiência em dirigir actores. Quando vi o filme, fiquei decepcionada. Nesta última produção do Paulo, "Vanitas", o meu papel é uma estilista. Eu tento tirar o máximo partido das personagens que me oferecem, muitas vezes são pessoas que me desagradam tanto que subtilmente as transformo e lhes dou um conteúdo e uma evidência que as faz notórias, sendo mais fácil assim conviver com elas e interpretá-las. P - Gostaria de poder intervir mais na definição da sua personagem? IR - Não. Um filme é sempre a visão do seu autor. Como julgá-lo? Não é fácil. Quando leio argumentos, e mesmo no decorrer das filmagens, parece-me, às vezes, que nada faz sentido: os cenários, as personagens, os assistentes, o realizador, a "script", o "make up", os "takes", a "acção"... Tudo me parece tão fictício. Mas eu penso demais. P - Não ficou satisfeita com a personagem que fez em "O Rio do Ouro" [de Paulo Rocha]? IR - Não. A personagem d'"O Rio do Ouro" não é uma mulher que eu desejaria ser, nem pouco mais ou menos. Compreendo que é uma ficção, uma personagem de sonhos do Paulo. Ou dos seus pesadelos - eu acho que é mais de pesadelos! Muitas vezes acho que ele próprio não se deu conta de como tudo aquilo ia resultar. P - Fez também já vários filmes com Manoel de Oliveira. É muito diferente do trabalho com Paulo Rocha? IR - Não é assim tão diferente. São os dois do Porto (risos)! Mas o Manoel é mais jovem... e mais actual! O Paulo é mais ingénuo, e isso comove-me. P - Há bocado, lamentava-se da forma como os realizadores a vêem. Terá sido a personagem da Ilda que marcou esse seu perfil cinematográfico, que viria, depois, a prolongar-se em "Vale Abraão", de Manoel de Oliveira, e, mais recentemente, em "O Delfim", de Fernando Lopes? IR - O meu perfil de criada para todo o serviço ou de governanta de famílias que não sabem governar-se, como também acontece em "O Princípio da Incerteza", do Manoel? Eu julgava que o meu perfil era mais de aristocrata! É que eu ainda não conhecia a aristocracia nortenha, nem tinha visitado o interior das casas senhoriais das belas quintas nas margens do Douro. Nem conhecia os caprichos da fidalguia ribatejana e os seus rasgos intelectuais... e a caça! Servir esses senhores (no cinema, claro está) tem sido uma grande aprendizagem. Até já aprendi a estar mais calada. P - Porque é que aceita fazer essas personagens? IR - É trabalho. A lida do campo já não é o que era! Tenho de ir servir, fazer uns biscatos, se não, onde está o papel? P - Vive exclusivamente do seu trabalho de actriz? IR - É claro. Quando não tenho trabalho de actriz, não vivo, hiberno. P - Porque é que nunca fez qualquer filme com João César Monteiro? IR - Deus e o diabo; o diabo e Deus... P - Quem era um e quem era outro? IR - Realmente, não sei. P - Vocês eram duas personalidades incompatíveis? IR - Não o conheci suficientemente para o saber. Tenho pena. Sempre gostei dele, era corajoso e fez belos filmes, além de ser um excelente actor. P - Tem trabalhado também muito com jovens realizadoras. Com Teresa Villaverde ("Os Mutantes"), com a Raquel Freire ("Rasganço"), com a Cláudia Tomás ("Noites"). IR - Elas gostam de me usar como tempero nos seus filmes! Um bocadinho de pimenta ali, mais uma pitada de noz-moscada, umas gotinhas de piri-piri... Creio que se identificam um pouco comigo, talvez. P - Será que os realizadores mais jovens lhe propõem desafios mais motivadores do que os consagrados? IR - Tenho sempre dificuldade em encarnar personagens sofredoras, gente que está mal consigo própria. Infelizmente, estão na moda. Basta ver os manequins a desfilar nas "passereles", vestidas com roupas dos jovens estilistas - quanto mais olheiras, melhor! Às vezes, esses jovens propõem-me personagens que eu nem acredito! São desafios. Os jovens têm de dar um bom exemplo aos mais velhos. Devem esforçar-se por ser verdadeiramente humildes. P - Acontece-lhe recusar papéis muitas vezes? IR - Muitas, não. Não há muitos papéis. Não há muitos filmes. Não há muitos produtores. Não há muito dinheiro... P - Alguma vez teve o apelo da realização, de fazer também o seu filme. Ou não teve ainda esse impulso? IR - É isso: não tive pulso. Impulso e pulso - duas coisas indispensáveis. E mais: ser tenaz, ter um argumento sólido e saber muito bem o que se quer fazer. Fazer por fazer não interessa. Na minha experiência, tenho visto muitos filmes que não interessam a ninguém. Eu, pelo menos, dispensava-os. P - Refere-se a filmes em que participou, também? IR - Não quero fazer esse julgamento sobre filmes em que entrei. Para mim, foram e têm sido muito úteis. Mas há muitos filmes que não trazem benefício para ninguém, nem para quem os realiza. Mas também eu vou tentar realizar um pequeno filme. P - Qual será o tema? IR - A cidade aonde nasci. P - Tomar? IR - "Tomar e Beber" seria um bom título. É isso mesmo. Tomar é uma cidade refrescante! Talvez porque eu tivesse nascido lá.... P - Nunca pôs a hipótese de escrever as suas memórias. Falar da sua vida. Contar todas essas suas experiências? IR - Gostaria. Já fiz algumas tentativas, mas é uma tarefa árdua, consome-me imenso. Entretanto, escrevi um livro de poemas que, espero, será editado no princípio do próximo ano. P - Como é que se vai chamar? IR - "Fotopoesia". Porque é um livro de poesias e de fotografias. Desde o meu primeiro ano de idade até agora. Poemas que descrevem as fotografias. P - Nesse livro vai aparecer a fotografia do vestido azul com borboletas de que fala num poema que escreveu para a revista "Ícone" [edição de Dez 2000/Jan 2001]? IR - Ah!, o "Tango", que fala desse vestido. Deu-me agora uma sugestão. Se calhar vou pegar também nesse vestido azul e colocá-lo no livro. Fizeram-me uma série de fotografias de moda, e um dos vestidos era lindíssimo, com borboletas. Esse vestido transportou-me à infância. Eu, dentro dele, senti-me uma menina... P - E o trabalho na televisão nunca a motivou? IR - Em Portugal, no início da minha carreira, depois do teatro, fiz televisão, séries etc... Ainda não havia novelas, na altura. P - As telenovelas de agora não lhe interessam? IR - Fiz uma, "Ajuste de Contas", por enquanto. P - Gostou da experiência? IR - Foi também um desafio. Mas não houve outro para comparar. P - Para além do trabalho de actriz, escreve, pinta... IR - É, sou muito prendada! Ando a descobrir umas coisas. Não sou pintora, nem escritora, mas pinto e escrevo. Se tivesse rendimentos, não faria outra coisa. Adoro. P - E a música? IR - Também adoro. Faço composições para mim e para os meus amigos. Fiz umas canções para "A Caixa" [de Manoel de Oliveira]. E no próximo filme da Margarida Gil, "Adriana", também canto uma canção minha. Ela ouviu-a e achou piada. Componho na minha velha viola. Estou a aprender, passo a vida a aprender... Nunca mais cresço, nunca mais sou essa senhora respeitável! P - O que é que lhe falta fazer? IR - Falta-me fazer nada. P - Poder não fazer nada? IR - Sim. Parar, sem entrar em pânico. P - Isso é uma dimensão um pouco oriental... IR - Não é uma dimensão, nem é oriental. É uma posição vertical ou horizontal, muito cómoda e descontraída, que aconselho a todas as pessoas hiperactivas. Não só elas beneficiariam com isso, como deixariam os outros tranquilos seguir o seu ritmo. Caramba! Não conseguem pousar as armas e estar um pouco quietos? Não é preciso ir ao Tibete para saber amar, para ser generoso. Não é preciso ir para o pico dos Himalaias, nem convertermo-nos ao budismo e fazermos meditação transcendental... A nossa sociedade também já abriu portas, e, parecendo que não, os anos 60 foram o começo. E eu fiz parte desse movimento. Não da geração da flor. Nem andei com o cravo... Fiz parte de uma revolução maior, que não é tão localizada. P - Não estava em Portugal, na altura do 25 de Abril de 1974? IR - Não estava cá. Portanto, não vibro com isso. Todos nós temos marcas de onde nascemos e de onde somos, mas nunca me senti prisioneira de nada. Se calhar, eu podia ter sentido o que sinto agora no tempo do Salazar, porque acho que continua a haver lutas de poder e injustiças. Se eu quisesse continuar a queixar-me, queixava-me, até como actriz, a nível de trabalho. Não estou dentro de clãs. Estou excluída daqui e dali. Podia-me queixar, mas não o faço. São as minhas opções. A minha luta, as minhas dificuldades são outras. Ninguém se safa dos obstáculos. Não há ninguém que tenha uma vida cor-de-rosa. A vida é mais um arco-íris. Todos os dias nós temos a oportunidade de admirar e usufruir dessas cores. Mas é uma luta diária, é a luta para acreditar em si e não ser tão negativo. É saber escolher por onde queremos caminhar. Há caminhos cheios de pólvora, de minas, de dinamite. Mas há outros que estão livres. Há espaço para a caridade e a compaixão, duas palavras que raramente se ouvem nos noticiários ou mesmo nas "grandes entrevistas". Mas há ainda quem acredite em heróis e quem queira ser o herói da sua própria vida, na sua boca fechada, na sua silenciosa aventura... É difícil perder, é difícil calar. É difícil morrer. P - A morte preocupa-a? IR - Não me refiro à morte física. P - E as viagens? IR - Viagens? Já estou cansada para viajar como eu gostava. Ir para muito longe, desbravar... Já não me arrisco. Mas, quem sabe, se calhar, um dia destes meto o acelerador a fundo, e lá vai ela... Ninguém dará por isso! Afinal, quem é assim tão indispensável? OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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Vindima (no Dão)

CARTAS DA MAYA

Cartas da Maya

DESAFIOS

SOMA MUSICAL EM SOL

"Nunca Senti Que Alguém Tivesse Mão em Mim"

Por ISABEL RUT

Segunda-feira, 27 de Outubro de 2003 Texto: Sérgio C. Andrade Fotos: Paulo Ricca e arquivo pessoal de Isabel Rut No próximo dia 29 de Novembro, passam exactamente 40 anos sobre a estreia, no S. Luiz, em Lisboa, de "Os Verdes Anos", primeira obra de Paulo Rocha. O filme foi uma lufada de ar fresco na cinematografia portuguesa da época e tornou-se mesmo numa espécie de bandeira do cinema novo. Nessa fita, que, de uma forma ainda um pouco desajeitada e de todo não convencional, retratava o provincianismo da capital portuguesa e o mal-estar da juventude que a habitava, sobressaíram duas coisas: a música de Carlos Paredes e... a presença de uma actriz totalmente desconhecida, Isabel Ruth (n. 1940, Tomar). Fazia a Ilda, uma jovem e intempestiva empregada doméstica, personagem-ícone do inconformismo que viria depois a marcar o trabalho de toda uma nova geração de cineastas e de actores. Quatro décadas volvidas, Isabel Ruth trabalha de novo com Paulo Rocha, em "Vanitas", filme cuja rodagem decorre no Porto. A "fidelidade" da actriz ao realizador passou já por outros títulos: "Mudar de Vida" (1967), "O Desejado ou As Montanhas da Lua" (1987), "O Rio do Ouro" (1998) e "A Raiz do Coração" (2000). Mas, pelo meio, Isabel Ruth experimentou outras artes e outros mundos. Sempre em viagem, sempre um pouco à margem e em permanente estado de inconformismo com ela própria e com a vida. É disso que a actriz fala numa longa conversa que manteve com a PÚBLICA - a quem ofereceu, também, um poema inédito -, em dois intervalos da rodagem de "Vanitas", em Julho, no Porto, e em Setembro, em Cascais. PÚBLICA - Está a filmar "Vanitas", o novo filme de Paulo Rocha, 40 anos depois d'"Os Verdes Anos". O realizador escreveu uma vez que não existiria sem a Isabel Ruth... ISABEL RUTH - O Paulo é muito exagerado. E o que se diz não se escreve (risos). Isso é um exagero da parte dele, pois ele faria os seus trabalhos mesmo se não me tivesse escolhido nesse dia fatal (risos) em que me conheceu... P - Lembra-se das circunstâncias em que se deu esse encontro? IR - Lembro-me de que ele bateu à minha porta, depois de telefonar a perguntar se podia ir lá a casa ver-me, porque gostaria que eu participasse num filme dele. É a única coisa de que me lembro. Creio que alguém lhe falou ou que ele me viu na televisão a fazer qualquer coisa. Nessa altura eu também dançava e fazia alguns espectáculos na televisão, umas peças de teatro, umas séries, umas coisas do princípio da televisão. Mas disso ele deve lembrar-se melhor do que eu. Ele foi lá a casa e achou que eu podia fazer a personagem. P - "Os Verdes Anos" marcou uma mudança radical no cinema português. Teve essa percepção quando fez o filme: que ele estava a inaugurar algo de novo? IR - O filme foi um grande êxito no dia em que o estreámos. Lembro-me perfeitamente de que estávamos no São Luiz - estávamos no camarote da presidência -, e, quando o filme acabou, o público todo virou-se para nos aplaudir. Foi um estrondo, um grande êxito nessa antestreia. Surpreendeu o público. Mas eu não era uma cinéfila. Embora fosse uma grande apaixonada pelo cinema, não era propriamente "rato de cinemateca" nem tinha nenhum interesse em ser actriz - em fazer cinema, talvez, mas nunca me tinha passado assim pela cabeça, embora o cinema me fascinasse, como aliás, fascina tanta gente. Mas esse não foi nunca o meu desejo, porque eu era muito tímida. Sempre achei que, como bailarina, podia expressar melhor a necessidade de comunicar um amor em mim que transbordava, a necessidade de partilhar que todos temos, mas que muitas vezes, por um estranho pudor, não o fazemos. Fazemo-lo sim doutra maneira, com e através da arte, uma porta que misteriosamente se abre. P - A dança era a sua vocação primeira. IR - A dança foi a minha vocação. P - Quando é que teve essa percepção? IR - Aos quatro anos, já eu era bailarina - adorava dançar, aprendia tudo facilmente e era muito musical. P - Mas só começou a levar a dança a sério quando saiu de Tomar e foi viver para Lisboa, aos 12 anos... IR - A sério, levei sempre, mas só comecei a ter escola, só entrei nesse "colete de forças", mais tarde. A dança era uma coisa livre, para mim... A primeira vez que entrei numa sala de aulas e me deparei com as barras, fiquei assustada, só queria fugir pela porta fora. A minha professora é que me segurou. P - Depois aprendeu a lidar com esse "colete de forças". IR - Nessa altura, havia a barra e, depois, havia o centro. Quando saía da barra e ia para o centro, era uma explosão! A pouco e pouco, o método foi-me domando - digamos que eu era um bocado selvagem. Ao mesmo tempo, fui canalizando essa espontaneidade através da técnica. Depois fui para uma escola em Londres, onde aprendi mais. A técnica dá segurança e só com segurança se pode ser livre e dar boa conta de nós mesmos. P - Mas acabou por abandonar a dança. Dedicou-se ao teatro, e ao cinema e depois... desapareceu. IR - Desapareci por algum tempo, mas só das notícias. Tornei-me incógnita; fiz outras coisas. Mas voltei. Ser figura pública, desde que não se faça má figura, afigura-se-me bem! P - Lidou mal com a situação de figura pública? IR - Não. Até senti que era muito agradável, sentia-me muito amada. Esse lado da glória é agradável, só que uma pessoa continua a percorrer o seu caminho. "Life goes on", como diz a canção. Eu depois comecei a entrar a pouco a pouco no mundo do cinema e noutras "fitas", mas continuava fiel à dança. Depois, naturalmente - e não foi premeditado -, apostei noutras coisas e afastei-me do meu tão querido "ballet". Até porque achava que nunca iria ser uma bailarina tão perfeita quanto desejaria. Então acabei com a carreira. Lá consegui chegar a prima-bailarina, já não foi mau. Apesar de um longo Inverno de descontentamento, época fria na dança em Portugal, mas hoje regozijo-me por ter feito parte de um pequeno grupo impulsionador do bailado e de algumas companhias que existem neste país. P - Porque é que optou pelo cinema? IR - Nunca pensei muito na hipótese de uma carreira futura de cinema. Na dança, eu era mais perita, tinha uma base forte. Conhecia melhor a dança do que o cinema. Ser actriz não foi a minha vocação, nem tive escola. Era mais uma coisa instintiva. Mas o cinema fascinava-me também, como actriz. Desde miúda que eu ia ao colo dos meus pais ver cinema. Depois, na minha adolescência, comecei a descobrir verdadeiramente a sétima arte e a admitir que havia alguém por detrás, a mexer os cordelinhos... Para além, ou aquém, dos actores, havia os realizadores e, quem sabe, produtores! P - Interessavam-lhe alguns realizadores em particular? IR - Fui fã do Bernardo Bertolucci, que conheci pessoalmente. P - Quando decidiu viajar para Itália, em 1967, depois de fazer "Mudar de Vida", foi à procura de trabalhar com Bertolucci? IR - Fui para Itália, não propriamente à procura do Bertolucci, mas porque tinha uns amigos lá. Entre eles, o Gianni Amico, que era, aliás, amigo e assistente do Bertolucci, e foi através dele que o conheci. O Gianni gostava muito de Portugal, do cinema português, e do cinema brasileiro do Glauber Rocha. Ele viu "Os Verdes Anos" e também gostou muito, e gostou muito de mim como personagem. Depois conheceu-me pessoalmente e falou de mim ao Bernardo e ele foi ver o filme. Entretanto, eu vi "Prima della Revoluzione" [1964]. Para mim, o melhor filme dele. Vi-o de novo, no ano passado, na Cinemateca, e fascina-me sempre. P - Mas acabou foi a trabalhar com Pasolini, em "Édipo Re" (1967). IR - Ah! Foi uma pequeníssima aparição, quase invisível. Estou com um cordeirinho ao lado da Sylvana Mangano - fiz uma das aias. Eu estava a fazer uma peça de teatro em Itália, "Il Ricatto al Teatro", de Daccia Maraini, que estava ainda casada nessa altura com Alberto Moravia e que acompanhava os nossos ensaios. Na peça havia duas figuras femininas: uma mais jovem, que eu interpretava, e outra mais velha, interpretada por Laura Betti. O Pasolini assistia aos ensaios, porque era amigo dela. Era todo um clã: o Bernardo, o Pasolini, a Laura Betti, a Daccia e até o Gato Barbieri (grande trompetista argentino a viver nessa época em Roma), muito amigo do Bernardo... P - ... E que, mais tarde, faria a banda sonora de "O Último Tango em Paris". IR - Sim. Era um músico talentoso, e uma pessoa muito querida de todos. E havia, enfim, outros... Nessa altura, eu disse ao Pasolini: "Gostava tanto de participar num filme seu, nem que seja uma pontinha." Ele respondeu-me: "Vou fazer agora o 'Édipo', mas não há nenhum personagem para si. O único papel interessante feminino é o que vai fazer a Sylvana Mangano; mas, se quiser, pode fazer o papel de uma das aias", não tem sequer texto. No filme só se vê, muito de relance, eu ao lado da Mangano, com um cordeirinho nos braços. P - Que memória guarda de Pasolini? IR - Ele era um homem muito introvertido. Lembro-me que o conheci no Festival de Veneza. Não sei como, no fim da projecção de um filme, fomos os três, ele, o Ninetto [Davoli], o protagonista de quase todos os seus filmes, e eu parar a uma discoteca. Sabe como é nos festivais: vamos para aqui e para ali; agora vamos dançar... E o Pasolini ficou toda a noite sentado na mesa, enquanto eu e o Ninetto nos divertíamos a dançar o "twist" e aquelas coisas da época. Mas ele era um homem generoso. Um dia, quando eu ia para as filmagens na Cinecittà, ao atravessar um daqueles longos corredores de cimento, vejo uma figura vir do outro lado. Éramos só os dois, duas almas solitárias naquele imenso corredor, e quando eu começo a ver quem se aproximava, deparo com o Marlon Brando!, no esplendor da sua juventude - apesar de ser mais velho do que eu. Cruzámo-nos, os dois, naquele infindável corredor: eu, paralisada a olhar; ele, ao passar, faz-me um grande sorriso e diz-me: "Hello". Depois olhei para trás; ele olhou também para mim e fez-me um grande adeus. Foi um encontro especial, único, apesar de hoje me parecer tudo uma patetice... P - Não voltou a cruzar-se com ele? IR - Nunca mais o vi. Tive muitos encontros cinematográficos, mas este foi tão único como o próprio Marlon Brando. P - O ambiente no mundo do cinema em Itália dessa época era muito diferente do que então se vivia em Portugal? IR - Sabe, eu fui descobrir não sei se a Itália, mas Roma, pelo menos. Era fascinante para mim, nesses anos 60. Depois, entrei num grupo... Isto é como em todas as cidades. Há um clãzinho. Na altura, em Lisboa, era o Chiado, a Brasileira..., ali na zona dos teatros: o S. Luiz e o S. Carlos, muito frequentado. Ao S. Luiz ia-se muito ver cinema e espectáculos; no S. Carlos era a ópera, e eu, sobretudo, ia muito ao "ballet". Depois dos espectáculos, íamos sempre um bocado para a Brasileira, então não tão banalizada como agora. Em Roma, era na Piazza del Popolo, no Café Rosati, o equivalente à Brasileira, e os "habitués" eram o Alberto Moravia, a mulher, o Bertolucci, o Pasolini, etc... Um mês depois de chegar a Roma, fiz duas curtas-metragens, depois uma peça de teatro e um filme como protagonista ["Il Rapporto" (1968), de Lionello Massobrio]. De maneira que correu-me assim às mil maravilhas, embora, por um lado, fosse uma experiência também dura, porque foi a primeira vez que estive sozinha num país que não era o meu. P - Nessa altura, não foi acompanhada pelo seu marido, João d'Ávila? IR - Não. Os nossos projectos divergentes separaram-nos. P - Também deixou em Portugal o seu filho. Não foi uma decisão difícil, para si? IR - Deixar não é bem a palavra. Separámo-nos sim. O meu filho tinha três anos. Mas eu tinha, e tenho, uma mãe que era então ainda muito jovem. Quando fui para Itália, o meu filho ficou com ela. Portanto, estava bem guardado, bem entregue. E eu não fui definitivamente. Mas, mais tarde, arrependi-me, embora ele estivesse muito bem entregue. Foi ingenuidade minha. Hoje não faria uma coisa dessas. Mas nós não prevemos tudo. P - Foi complicado gerir as relações familiares com o seu trabalho profissional? IR - Para mim, não foi complicado. Há tempo para tudo. Eu não trocaria nunca os meus filhos pelo trabalho. Arranja-se sempre tempo para as duas coisas. Os meus filhos sempre foram a minha prioridade. A minha vida foi complicada, mas não foi pelo trabalho. Foi pelas emoções, foi pelas relações... Sobretudo pelas ilusões, mas nunca pelo trabalho. P - A sua ida para a Itália foi uma fuga ao nosso país, a esse país provinciano que "Os Verdes Anos" tão bem retrata? IR - A minha fuga já tinha sido antes, porque, logo que me casei com o João, fomos os dois viver para Londres, para estudar. Talvez fosse uma fuga a outras coisas. Não talvez do país provinciano. Eu nunca senti que o país fosse provinciano. Eu também sou, também era provinciana, embora com o desejo de conhecer outros mundos. Se calhar, Paris também tinha muito de provinciano, como os Estados Unidos têm muito de provinciano... P - Quando falo do provincianismo do nosso país de então, refiro-me à atmosfera fechada e opressiva do salazarismo... IR - Eu nunca me senti dominada por nada, se não, talvez, às vezes, pela própria situação familiar. Nunca senti que alguém tivesse mão em mim. Se calhar é por pura ignorância, mas nunca me senti proibida de nada, nunca ninguém me fechou as portas para sair ou para entrar em Portugal. P - Sempre se considerou uma mulher livre? IR - Sempre tive a sorte de fazer o que me apetecia. P - Foi isso que a levou, dois anos depois de chegar a Itália, a rumar para o Oriente? IR - Da mesma maneira que fui para Itália, fui andando para outros sítios. Eu fui para Itália porque admirava o cinema italiano também. Queria fazer um filme com o Fellini ou com o Bertolucci. Nunca fiz. Fui a uma audição para um filme do Fellini, mas aquilo já estava superesgotado. Conheci-o, falei com ele, mas não fui escolhida. E convivi um ano com o Bertolucci e nunca entrei num filme dele, porque ele, por essa altura, estava com uma crise existencial enorme. O Pasolini foi o que foi. E o Truffaut, fui à estreia do "Fahrenheit 451" [1966] ao lado dele; almoçámos, jantámos, passeámos juntos, mas também nunca fiz nenhum filme com ele. Malhas que o império tece. P - Mas, de um momento para o outro, decidiu abandonar a Itália, o mundo do cinema e partir novamente. IR - Fui viajar. Toda a gente me falava na maravilha que era o Afeganistão, o Paquistão, a Índia - por acaso, nessa altura não fui ainda à Índia -, o Nepal, Katmandu... Países que estão agora na moda, mas que eu descobri só, há quase 40 anos. P - Fez a viagem ao Oriente com João d'Ávila? IR - Desafiei-o e ele também veio comigo. P - Essa viagem, decidiu fazê-la por algum apelo religioso, ou foi mais exótico. Numa entrevista, disse que foi mais pela região do que pela religião. IR - O Oriente apela ao misticismo? "Ça dépend." Há quem viaje para a Índia por negócios, para o Afeganistão para traficar, à Tailândia sabe Deus para quê, à China para se especializar no jogo, ou se aperfeiçoar nas lutas de cães, ao Tibete para encontrar Deus, etc... etc... Sim, talvez o verdadeiro motivo de todas estas viagens seja o apelo religioso... Andamos todos a tentar ser religiosos, queremo-nos unir uns aos outros. Eu estou noutra fase, vou tentando unir-me a mim mesma, e a tarefa não é nada fácil. Também eu viajei - num Ford Van todo equipado para uma longa aventura - com o desejo de saber mais, de descobrir, de conhecer mais, sem marcações prévias de hotel. Atravessámos as montanhas do Afeganistão, onde há uma ressonância, uma grandiosidade que nos faz sentir pequeninos. P - Tendo conhecido o Afeganistão nessa altura, como é que viveu os acontecimentos dos últimos tempos: a invasão, a guerra... IR - Foi com grande tristeza. Lembro-me muito bem, quando chegámos a Cabul, tivemos de esperar uma tarde e noite inteiras na fronteira, mas "na melhor": a tomar chá de menta com quem aparecia. Tinha a sensação de que o que eles gostavam era de nos ter ali, também pela curiosidade de nós sermos estrangeiros. Porque aquilo, realmente, parecia-me outro planeta. Estávamos na Idade Média! P - Foi uma fuga à civilização? IR - Nós, ocidentais, temos a pretensão de sermos muito civilizados. Apesar de sentir que estava a viver dentro de um filme histórico, pude aperceber-me de que, na sua simplicidade, este povo era cordial e muito hospitaleiro. A postura e a dignidade dos mais velhos era o exemplo prático disso. Cabul era uma verdadeira feira de convívio, um perfeito miradouro para conhecer aquele povo. Surgiam algumas tribos, homens e mulheres montados em cavalos nas suas túnicas brancas, cavaleiros armados com sabres, os nómadas... Era outra cultura. Podemos até ser inimigos, mas quando entramos num outro país, há essa abertura, essa reciprocidade. Nós, portugueses, também somos muito hospitaleiros, demasiado simpáticos até com os estrangeiros. Para mim, foi uma experiência bem diferente das cidades, digamos, civilizadas, como Paris ou Londres, em que as pessoas fecham as portas. A partir da Grécia, não havia portas. Era sempre a andar e as boas-vindas eram constantes. A beleza de tudo aquilo, a paisagem, as cores, os cheiros... P - Quanto tempo esteve por essas paragens? IR - A viagem durou mais ou menos um ano. P - Depois regressou logo a Portugal? IR - Não. Regressei a Roma. E daí fui para Ibiza, onde vivi três anos. P - Quando regressou do Oriente, sentiu que vinha diferente de quando tinha partido? IR - Um pouco diferente, talvez. Se calhar, com mais dúvidas, mais perguntas. A experiência desconsertou-me e consertou-me. Vim encantada com o Nepal, onde estive um mês; alugámos lá uma casa. Tivemos muitos contactos. Não do terceiro grau, nada de sobrenatural, mas contactos frontais, com seres humanos muito dignos, gente muito bonita e directa. P - Quando, no início da década de 70, decidiu voltar a Portugal... IR - Tinha 33 anos. Constatei que tinha qualquer coisa a fazer aqui. É como se eu finalmente pudesse regressar a este país sem ter de enfrentar só problemas. Saí daqui muito ingénua, apesar de já ter 27 anos e ser já mãe, mas acho que cresci e voltei adulta. E vivi a minha própria vida, sozinha. Lutei de uma maneira normal, sem estar superprotegida. E quando me senti já forte e adulta, realmente independente, voltei para viver em Portugal. P - O seu objectivo era voltar a fazer cinema? IR - Não, de maneira nenhuma. Estava muito relutante. Achava que o cinema me tinha distraído muito, de muitas coisas, e me tinha feito entrar num mundo muito supérfluo, embora fosse muito atraente. P - Mas acabou por regressar mesmo ao grande ecrã. E de novo pela mão de Paulo Rocha, em "O Desejado ou as Montanhas da Lua" (1987). IR - Não. O primeiro filme que fiz, após regressar, foi "O Bobo", do José Álvaro de Moraes... P - Mas que viria a ser estreado apenas em 1987... IR - E antes também fiz o "Conversa Acabada" (1982), do João Botelho, e o "Agosto" (1987), do Jorge Silva Melo. Quando regressei, o Paulo tinha projectos para filmar, mas não me incluía neles. Eu estava uma pessoa diferente, mudada, obviamente mais velha e um pouco mais sábia, mas também menos disposta a ouvir histórias. Agora eu era a heroína dos meus próprios contos... Eu estava numa fase de encantamento com a vida, e o Paulo pensou que eu estava inapta para fazer cinema. Desvendaram-se-me muitas coisas e isso, às vezes, perturba algumas pessoas, sobretudo aquelas que não nos conhecem, mas que julgavam conhecer-nos. P - Mas, nessa altura, Paulo Rocha também já tinha a sua experiência do Oriente. IR - Pois é. Cada um tem o apelo que merece, ou seja: nesta grande espiral da vida, sabe-se lá aonde estão uns e outros... Mas que vamos para o mesmo sítio, disso não há dúvidas. Há quem viva orientalmente no Ocidente e há quem se desoriente no Oriente. Eu adapto-me facilmente à cultura de cada país. Quando viajo não levo a minha almofada nem tenho a nostalgia do bacalhau com batatas. P - Paulo Rocha não a convidou para entrar no seu filme sobre o Wenceslau de Moraes, "A Ilha dos Amores" (1982). IR - Não. Nessa altura, eu estava em Itália. Quem desaparece esquece. P - É difícil trabalhar com ele no "plateau"? IR - Não. Não acho que seja difícil trabalhar com o Paulo. Quer dizer, há um Paulo de antes e de depois, de há 40 anos e de agora. O Paulo é um bom conversador, mas não tem muita paciência para ouvir. Também está muito fechado no mundo dele. Durante as filmagens, quando eu o conheci, ele simplesmente desaparecia. Não falava muito comigo, a não ser quando fazíamos exteriores. Ele estava apaixonado pelo Japão e pelos belíssimos contos japoneses que lia e eu era uma boa ouvinte. A "Ilda" fê-lo sair da casca. Em Portugal também há gueixas! P - Ele continua a dizer-se rendido à Isabel, como actriz e pessoa. IR - Acha? Eu não acho. Quem vive em castelos, raramente se rende. Tenho servido os realizadores à medida das suas realizações. Não me lembro de nenhum realizador estar ao meu serviço. P - Disse, uma vez, que não se revia muito nas personagens que fazia, nomeadamente nas dos filmes de Paulo Rocha. IR - Eu não me vejo como os outros me vêem. É impossível. Quanto mais quando os outros querem que eu seja outra. N'"Os Verdes Anos" não tinha experiência, foi o meu primeiro filme. Sentia-me muito amada nessa época, não tinha nada a temer. Nunca me prestei a "castings", esse negócio ainda não prosperava. Eu era bastante espontânea, embora achasse, ao ver o filme, que estava ali muito tímida. Gostaria de ter sido mais desenvolta. Mas depois percebi que a culpa não era só minha. O Paulo também não tinha experiência em dirigir actores. Quando vi o filme, fiquei decepcionada. Nesta última produção do Paulo, "Vanitas", o meu papel é uma estilista. Eu tento tirar o máximo partido das personagens que me oferecem, muitas vezes são pessoas que me desagradam tanto que subtilmente as transformo e lhes dou um conteúdo e uma evidência que as faz notórias, sendo mais fácil assim conviver com elas e interpretá-las. P - Gostaria de poder intervir mais na definição da sua personagem? IR - Não. Um filme é sempre a visão do seu autor. Como julgá-lo? Não é fácil. Quando leio argumentos, e mesmo no decorrer das filmagens, parece-me, às vezes, que nada faz sentido: os cenários, as personagens, os assistentes, o realizador, a "script", o "make up", os "takes", a "acção"... Tudo me parece tão fictício. Mas eu penso demais. P - Não ficou satisfeita com a personagem que fez em "O Rio do Ouro" [de Paulo Rocha]? IR - Não. A personagem d'"O Rio do Ouro" não é uma mulher que eu desejaria ser, nem pouco mais ou menos. Compreendo que é uma ficção, uma personagem de sonhos do Paulo. Ou dos seus pesadelos - eu acho que é mais de pesadelos! Muitas vezes acho que ele próprio não se deu conta de como tudo aquilo ia resultar. P - Fez também já vários filmes com Manoel de Oliveira. É muito diferente do trabalho com Paulo Rocha? IR - Não é assim tão diferente. São os dois do Porto (risos)! Mas o Manoel é mais jovem... e mais actual! O Paulo é mais ingénuo, e isso comove-me. P - Há bocado, lamentava-se da forma como os realizadores a vêem. Terá sido a personagem da Ilda que marcou esse seu perfil cinematográfico, que viria, depois, a prolongar-se em "Vale Abraão", de Manoel de Oliveira, e, mais recentemente, em "O Delfim", de Fernando Lopes? IR - O meu perfil de criada para todo o serviço ou de governanta de famílias que não sabem governar-se, como também acontece em "O Princípio da Incerteza", do Manoel? Eu julgava que o meu perfil era mais de aristocrata! É que eu ainda não conhecia a aristocracia nortenha, nem tinha visitado o interior das casas senhoriais das belas quintas nas margens do Douro. Nem conhecia os caprichos da fidalguia ribatejana e os seus rasgos intelectuais... e a caça! Servir esses senhores (no cinema, claro está) tem sido uma grande aprendizagem. Até já aprendi a estar mais calada. P - Porque é que aceita fazer essas personagens? IR - É trabalho. A lida do campo já não é o que era! Tenho de ir servir, fazer uns biscatos, se não, onde está o papel? P - Vive exclusivamente do seu trabalho de actriz? IR - É claro. Quando não tenho trabalho de actriz, não vivo, hiberno. P - Porque é que nunca fez qualquer filme com João César Monteiro? IR - Deus e o diabo; o diabo e Deus... P - Quem era um e quem era outro? IR - Realmente, não sei. P - Vocês eram duas personalidades incompatíveis? IR - Não o conheci suficientemente para o saber. Tenho pena. Sempre gostei dele, era corajoso e fez belos filmes, além de ser um excelente actor. P - Tem trabalhado também muito com jovens realizadoras. Com Teresa Villaverde ("Os Mutantes"), com a Raquel Freire ("Rasganço"), com a Cláudia Tomás ("Noites"). IR - Elas gostam de me usar como tempero nos seus filmes! Um bocadinho de pimenta ali, mais uma pitada de noz-moscada, umas gotinhas de piri-piri... Creio que se identificam um pouco comigo, talvez. P - Será que os realizadores mais jovens lhe propõem desafios mais motivadores do que os consagrados? IR - Tenho sempre dificuldade em encarnar personagens sofredoras, gente que está mal consigo própria. Infelizmente, estão na moda. Basta ver os manequins a desfilar nas "passereles", vestidas com roupas dos jovens estilistas - quanto mais olheiras, melhor! Às vezes, esses jovens propõem-me personagens que eu nem acredito! São desafios. Os jovens têm de dar um bom exemplo aos mais velhos. Devem esforçar-se por ser verdadeiramente humildes. P - Acontece-lhe recusar papéis muitas vezes? IR - Muitas, não. Não há muitos papéis. Não há muitos filmes. Não há muitos produtores. Não há muito dinheiro... P - Alguma vez teve o apelo da realização, de fazer também o seu filme. Ou não teve ainda esse impulso? IR - É isso: não tive pulso. Impulso e pulso - duas coisas indispensáveis. E mais: ser tenaz, ter um argumento sólido e saber muito bem o que se quer fazer. Fazer por fazer não interessa. Na minha experiência, tenho visto muitos filmes que não interessam a ninguém. Eu, pelo menos, dispensava-os. P - Refere-se a filmes em que participou, também? IR - Não quero fazer esse julgamento sobre filmes em que entrei. Para mim, foram e têm sido muito úteis. Mas há muitos filmes que não trazem benefício para ninguém, nem para quem os realiza. Mas também eu vou tentar realizar um pequeno filme. P - Qual será o tema? IR - A cidade aonde nasci. P - Tomar? IR - "Tomar e Beber" seria um bom título. É isso mesmo. Tomar é uma cidade refrescante! Talvez porque eu tivesse nascido lá.... P - Nunca pôs a hipótese de escrever as suas memórias. Falar da sua vida. Contar todas essas suas experiências? IR - Gostaria. Já fiz algumas tentativas, mas é uma tarefa árdua, consome-me imenso. Entretanto, escrevi um livro de poemas que, espero, será editado no princípio do próximo ano. P - Como é que se vai chamar? IR - "Fotopoesia". Porque é um livro de poesias e de fotografias. Desde o meu primeiro ano de idade até agora. Poemas que descrevem as fotografias. P - Nesse livro vai aparecer a fotografia do vestido azul com borboletas de que fala num poema que escreveu para a revista "Ícone" [edição de Dez 2000/Jan 2001]? IR - Ah!, o "Tango", que fala desse vestido. Deu-me agora uma sugestão. Se calhar vou pegar também nesse vestido azul e colocá-lo no livro. Fizeram-me uma série de fotografias de moda, e um dos vestidos era lindíssimo, com borboletas. Esse vestido transportou-me à infância. Eu, dentro dele, senti-me uma menina... P - E o trabalho na televisão nunca a motivou? IR - Em Portugal, no início da minha carreira, depois do teatro, fiz televisão, séries etc... Ainda não havia novelas, na altura. P - As telenovelas de agora não lhe interessam? IR - Fiz uma, "Ajuste de Contas", por enquanto. P - Gostou da experiência? IR - Foi também um desafio. Mas não houve outro para comparar. P - Para além do trabalho de actriz, escreve, pinta... IR - É, sou muito prendada! Ando a descobrir umas coisas. Não sou pintora, nem escritora, mas pinto e escrevo. Se tivesse rendimentos, não faria outra coisa. Adoro. P - E a música? IR - Também adoro. Faço composições para mim e para os meus amigos. Fiz umas canções para "A Caixa" [de Manoel de Oliveira]. E no próximo filme da Margarida Gil, "Adriana", também canto uma canção minha. Ela ouviu-a e achou piada. Componho na minha velha viola. Estou a aprender, passo a vida a aprender... Nunca mais cresço, nunca mais sou essa senhora respeitável! P - O que é que lhe falta fazer? IR - Falta-me fazer nada. P - Poder não fazer nada? IR - Sim. Parar, sem entrar em pânico. P - Isso é uma dimensão um pouco oriental... IR - Não é uma dimensão, nem é oriental. É uma posição vertical ou horizontal, muito cómoda e descontraída, que aconselho a todas as pessoas hiperactivas. Não só elas beneficiariam com isso, como deixariam os outros tranquilos seguir o seu ritmo. Caramba! Não conseguem pousar as armas e estar um pouco quietos? Não é preciso ir ao Tibete para saber amar, para ser generoso. Não é preciso ir para o pico dos Himalaias, nem convertermo-nos ao budismo e fazermos meditação transcendental... A nossa sociedade também já abriu portas, e, parecendo que não, os anos 60 foram o começo. E eu fiz parte desse movimento. Não da geração da flor. Nem andei com o cravo... Fiz parte de uma revolução maior, que não é tão localizada. P - Não estava em Portugal, na altura do 25 de Abril de 1974? IR - Não estava cá. Portanto, não vibro com isso. Todos nós temos marcas de onde nascemos e de onde somos, mas nunca me senti prisioneira de nada. Se calhar, eu podia ter sentido o que sinto agora no tempo do Salazar, porque acho que continua a haver lutas de poder e injustiças. Se eu quisesse continuar a queixar-me, queixava-me, até como actriz, a nível de trabalho. Não estou dentro de clãs. Estou excluída daqui e dali. Podia-me queixar, mas não o faço. São as minhas opções. A minha luta, as minhas dificuldades são outras. Ninguém se safa dos obstáculos. Não há ninguém que tenha uma vida cor-de-rosa. A vida é mais um arco-íris. Todos os dias nós temos a oportunidade de admirar e usufruir dessas cores. Mas é uma luta diária, é a luta para acreditar em si e não ser tão negativo. É saber escolher por onde queremos caminhar. Há caminhos cheios de pólvora, de minas, de dinamite. Mas há outros que estão livres. Há espaço para a caridade e a compaixão, duas palavras que raramente se ouvem nos noticiários ou mesmo nas "grandes entrevistas". Mas há ainda quem acredite em heróis e quem queira ser o herói da sua própria vida, na sua boca fechada, na sua silenciosa aventura... É difícil perder, é difícil calar. É difícil morrer. P - A morte preocupa-a? IR - Não me refiro à morte física. P - E as viagens? IR - Viagens? Já estou cansada para viajar como eu gostava. Ir para muito longe, desbravar... Já não me arrisco. Mas, quem sabe, se calhar, um dia destes meto o acelerador a fundo, e lá vai ela... Ninguém dará por isso! Afinal, quem é assim tão indispensável? OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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