BENTO DE JESUS CARAÇA

07-07-2003
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Sessão Pública em Vila Viçosa

Terra natal de Bento de Jesus Caraça

Vila Viçosa

21 de Abril de 2001

BENTO DE JESUS CARAÇA

António Borges Coelho

Historiador

Em Vila Viçosa, terra de camponeses e de reis, nasceu há cem anos Bento de Jesus Caraça. Não em berço de ouro. Numa casa de trabalhadores rurais. A rua pobre dava pelo nome de Rua dos Fidalgos e encostava-se ao Paço dos Duques de Bragança. Cercado pela natureza e os bichos, partilhou nos primeiros anos em Aldeias de Montoito a vida dos camponeses. Um maltês ensinou-lhe as primeiras letras. Na era das guerras e das revoluções, viu cair a Monarquia, a República e opôs-se ao Estado dito Novo que durante quase meio século amordaçou Portugal. Foi matemático, pedagogo, humanista, cidadão. Nos breves anos de vida, marcou profundamente os homens e as mulheres de diferentes quadrantes políticos e ideológicos que no último século lutaram pela liberdade e a dignidade humana em Portugal.

Os Primeiros Anos

Bento de Jesus Caraça nasceu no ano da morte da rainha Vitória. A Grã Bretanha era ainda a primeira potência mundial. Patrulhava os mares, estendia o império por quatro continentes mas o seu poder começava agora a declinar. Inglaterra, Alemanha, França, Áustria-Hungria, Rússia e Itália, e fora da Europa, os Estados Unidos e o Japão lançavam-se na corrida aos armamentos, estabeleciam alianças estratégicas, rasgavam com conflitos e ameaças todo o palco do Mundo. A Alemanha e o Japão punham de pé uma poderosa máquina de guerra, decididas a obter pela força um maior quinhão na partilha.

E a 28 de Julho de 1914, o assassinato em Sarajevo do herdeiro do império austríaco desencadeava a catástrofe. Durante quatro anos, sobretudo na Europa, foi a chacina. Só em 1916, na batalha de Verdun, envolveram-se em luta dois milhões de soldados deixando na terra um milhão de mortos. Na Flandres, milhares de soldados portugueses morreram atolados na lama das trincheiras, ceifados pela artilharia, rasgados pelas baionetas, sufocados pelos gazes, devorados pelos ratos.

O pesadelo da mobilização para o massacre marcou certamente o adolescente Bento de Jesus Caraça. E não ficaria indiferente ao cortejo dos mutilados e dos “gazeados” que regressaram diminuídos aos seus lares. Num artigo publicado no jornal Globo, cujos dois únicos exemplares dirigiu com José Rodrigues Miguéis, escrevia em 1933 evocando a Primeira Guerra Mundial: “Terminara o pesadelo: pusera-se um dique à onda de loucura e de morte que, submergindo tudo, transformara uma parte da Europa num montão informe de ruínas. Do caos ia surgir uma nova civilização, de face mais humana, onde reinaria a justiça, a equidade, onde a mútua compreensão dos indivíduos e dos povos seria o fundamento das relações na sociedade. Exigia-o a dívida sagrada para com os milhões de vítimas que, umas nas trincheiras, lama e sangue, outras na vida infernal desses quatro anos, privações materiais e tortura moral, se haviam sacrificado cegamente por aquilo que lhes diziam ser luta pelo direito e a liberdade”. [1]

Quando voltaríamos nós a ouvir de novo estas promessas? No final da Segunda Guerra Mundial? Depois da queda do Muro de Berlim?

O Portugal dos primeiros anos do século XX e da vida de Bento de Jesus Caraça não se afastava muito daquele que transparece nos autores dos finais do século XIX. Camilo Castelo Branco com o seu génio iluminou o Norte rural e escalpelizou a traço forte o mundo urbano e político. Júlio Dinis pintou com tintas claras o Porto de Uma Família Inglesa. O Alentejo salta, já no século XX, das páginas de Fialho de Almeida e de Manuel da Fonseca. Lisboa e a classe política são descritas com sublime ironia por Eça de Queirós em O Primo Basílio, em A Capital ou em Os Maias.

Mas no início do século XX adensara-se a atmosfera política. O Regicídio de 1908 e a proclamação da República em 5 de Outubro de 1910 agitaram o país profundo e sem qualquer dúvida marcaram o consciente dos moradores de Aldeias de Montoito, do Redondo ou de Vila Viçosa. Sinal dos novos tempos, formam-se mais de uma centena de sindicatos de trabalhadores rurais que constituem a sua federação no Congresso de Évora de 1912.

O curso político aberto pela proclamação da República influenciou de forma muito positiva o ensino público. Por outro lado, a proprietária da herdade da Casa Branca onde Bento Caraça passou a infância, sensibilizada pela inteligência e o trato daquele filho de camponeses, assumiu os custos da sua educação.

Completou o liceu no Pedro Nunes. Em 1919 frequenta o segundo ano do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras e é convidado pelo Prof. Mira Fernandes para segundo assistente. O filho de camponeses, que custeava em parte os seus estudos dando explicações aos colegas, alçava-se à docência universitária. Em 1923 com 22 anos concluía a licenciatura. No ano seguinte, era primeiro assistente. Em 1927, professor extraordinário. Em Dezembro de 1929, com 28 anos, atingia a cátedra e regia a cadeira de Matemáticas Superiores, Álgebra Superior, Princípios de Análise Infinitesimal e Geometria Analítica.

Subira a pulso sem manobras de acrobata. O cidadão temperava-se nas dificuldades sem hipotecar a dignidade e a ligação à gente pobre donde viera. Ele próprio escrevia em 1933: “O trabalho de submissão, de lamber de botas, da parte das chamadas camadas intelectuais, tem sido duma perfeição dificilmente excedível. Digamos, para irmos até ao fim, que os mais excelsos nesse mister são frequentemente aqueles que, partidos das camadas ditas inferiores, se guindaram, umas vezes a pulso, outras em acrobacia de palhaço, a posições que deveriam utilizar para defesa dos bens espirituais e que só usam para trair os seus antigos irmãos no sofrimento” [2] .

O percurso de Bento de Jesus Caraça mostra com toda a clareza que sempre manteve e valorizou os laços que o ligavam ao mundo dos trabalhadores. Em 1919, tinha ele 18 anos, era convidado para segundo assistente do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, como dissemos, mas, nessa mesma data, assumia um lugar na direcção da Universidade Popular que funcionava em Campo de Ourique na Padaria do Povo. Em 1928 tomou a presidência que manteve durante vinte anos até à sua morte. Foi uma vida toda dedicada a lançar a semente da cultura não só na Universidade pública aos que podiam pagar mas na Universidade Popular frequentada pelos mais desfavorecidos e incomodados.

Entre as Duas Guerras Mundiais

A Primeira Guerra Mundial engrossou o poderoso movimento europeu de defesa da paz . À medida que a chacina aumentava, o movimento entrava nas próprias trincheiras e milhares de soldados abandonavam as armas afrontando o risco dos pelotões de fuzilamento. Ao desejo de paz, juntava-se, por parte de massas de trabalhadores e também de intelectuais, o anseio de erguer uma nova sociedade que libertasse e irmanasse os povos de todo o mundo. E quando em Novembro de 1917 rebentou a revolução na Rússia com a consigna “Todo o Poder aos Sovietes”, estalou o pânico dos poderosos e cresceu entre os povos uma fantástica esperança. Estava aberto o caminho para a Cidade Nova, usando a expressão de Bento de Jesus Caraça.

Tendes alguma dúvida? “Creio que a classe proletária está destinada a, num futuro mais ou menos próximo, tomar nas suas mãos a direcção dos destinos do mundo, transformando por completo toda a organização social existente”. São palavras suas proferidas na Universidade Popular em 21 de Novembro de 1928. E a 8 de Setembro de 1939, sete dias após a invasão da Polónia pelas tropas de Hitler, anunciava: “E a Europa nova há-de surgir (daqui a quanto tempo?) aquecida pelo sol do Oriente onde se estão jogando os verdadeiros destinos do mundo” [3] .

Em 1929 a crise económica abalou o sistema capitalista provocando falências em série, milhões e milhões de desempregados. Massas humanas morriam de subnutrição e de fome enquanto se queimavam toneladas e toneladas de alimentos ditos excedentários. “Época singular! Em que podemos assistir às manifestações do mais alto poder criador e do mais persistente esforço de sistematização –Einstein e Broglie- e, paralelamente, à desorganização total da vida económica e à destruição deliberada precisamente daquilo de que a maioria carece”, comentava Bento de Jesus Caraça na célebre conferência A Cultura Integral do Indivíduo Problema Central do nosso Tempo, proferida em 25 de Maio de 1933 na União Cultural “Mocidade Livre”.

Entretanto, em Portugal, a República caía atolada nas suas contradições e vítima da acção dos seus poderosos inimigos. Os anos da República foram tumultuosos mas, para lá da propaganda que perdurou até aos nossos dias, a nova ordem inçou o país de desordens sangrentas com milhares e milhares de vítimas: mortos, feridos, deportados, expulsos dos empregos e do país. A nova ordem estendia cadeias de medo, de denúncia, de subserviência, de ignorância e superstição. Ao desarmamento cívico e intelectual a que Salazar conduzia o país, respondia o povo republicano e democrata: revolta de Fevereiro de 1927 com centenas de mortos, milhares de feridos e centenas de deportados; revolta da Madeira de 1931 e a de Agosto desse ano em Lisboa com 40 mortos e 200 feridos; 18 de Janeiro de 1934 com mortos e deportados; revolta dos marinheiros do Dão, do Bartolomeu Dias e do Afonso de Albuquerque em 8 de Julho de 1936 com mortos e deportados.

Os salazaristas destruíam os progressos alcançados no ensino público durante a Primeira República. Exaltavam os analfabetos como a nação no seu estado puro. Destruíam os sindicatos, a liberdade de imprensa, de associação, de reunião. Criavam a polícia política, a Legião, a Mocidade Portuguesa. Deportavam cidadãos sem culpa formada e sem julgamento. Activavam o Forte de Peniche, abriam o Campo de Concentração do Tarrafal. Abatiam comunistas, anarquistas e outros democratas na rua, no consultório médico, na tortura, no Aljube, no Forte de São João Batista de Angra do Heroísmo, no Tarrafal.

Em 1933, Hitler tomava o poder na Alemanha enquanto em Itália se consolidava o fascismo. No outro campo do universo político, a Frente Popular triunfava em França e Espanha. Aproximava-se nova tempestade mais mortífera que a de 1914-18. Em 1936, Franco chefia a revolta militar contra o poder legítimo da República Espanhola. A guerra civil, que se arrastou por três anos, provocaria um milhão de mortos e espalhava o sangue até às fronteiras portuguesas.

Bento de Jesus Caraça, como sabemos pelo seu espólio, acompanhava atentamente a situação internacional e nacional enquanto prosseguia a docência no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras e fundava em 1938, com Mira Fernandes e Caetano Beirão da Veiga, o Centro de Estudos de Matemáticas Aplicadas à Economia. Mantinha a presidência da Universidade Popular, proferia conferências, uma delas no bastião vermelho do Arsenal do Alfeite onde pontificava Bento Gonçalves, escrevia na Seara Nova, em a Liberdade, no Diabo, no Sol Nascente, mais tarde na Vértice, fundava a Liga Portuguesa contra a Guerra e o Fascismo. Em suma, entregava-se de alma e coração, usando as suas próprias palavras, à ingente tarefa de despertar a alma colectiva das massas.

O seu amigo Joaquim Jacobetty Rosa testemunhou do seguinte modo o talento, o humanismo, as qualidades pedagógicas de Bento de Jesus Caraça: “após ter entrado na Universidade, a sua rica personalidade, trabalhada e desenvolvida por constantes, metódicas e seleccionadas leituras e, simultaneamente, pelo trabalho escolar e pelas suas intervenções como tribuno, como doutrinário e como orientador, nas associações, nas academias, e nas sociedades e publicações culturais dessa época, tornou-o uma espécie de ídolo da mocidade estudantil e universitária, que com ele procurava conviver, frequentando-lhe as aulas”, acompanhando “a sua intervenção directa nos trabalhos, nas pugnas e nas animadas, operosas e por vezes agitadas sessões das assembleias académicas” [4]

A investigação científica, a actividade pedagógica e política entrelaçavam-se harmoniosamente com o amante da natureza e da vida. Gostava de se deitar na terra. É a nossa mãe. E quando podia, refugiava-se na Serra da Estrela. “Recebi antes de ontem a sua carta, -escreve a Manuel Mendes em 26 de Agosto de 1933-, não aqui mas quase no alto da Serra, na caverna, ou na Lapa, dos Charcos, a 1 700 metros onde fui passar quatro dias, longe de tudo quanto é buliçoso, intranquilo e civilizado” [5] .

A Guerra Civil de Espanha terminou nos primeiros dias de 1939. Tornara-se o laboratório da hecatombe que se avizinhava. No artigo do Globo, atrás citado, Bento Caraça alertava: “Prepara-se um novo crime contra a humanidade. Para que esse crime seja possível, são postos em acção todos os meios, corrida desenfreada aos armamentos, preparação do ambiente moral pela excitação dos antagonismos de raças – a mentira e o ódio postos ao serviço dos fabricantes de canhões [6] .

E a 8 de Setembro de 1939: “esta Europa entrou na fase central da carreira louca da morte: começou a descida aos infernos” [7] .

Descida aos Infernos

A Alemanha de Hitler espalhou o inferno por toda a Europa, na África do Norte, nos mares. Ocupou a Áustria, a Checoslováquia, a Polónia, a Holanda, a Bélgica, a França, a Dinamarca, a Noruega, os Balkans, bombardeou Londres, cercou Leninegrado, Estalinegrado, chegou às portas de Moscovo. Pelo seu lado, o Japão ocupava a Coreia, boa parte da China e vastos territórios no Pacífico. Hitler prometia um milénio de barbárie sob a égide da raça pura. Inventava a indústria de destruição maciça de seres humanos com aproveitamento dos seus restos.

Portugal enviava tropas para os Açores, a Madeira, Cabo Verde e Timor. As dificuldades económicas levaram à eclosão de greves e de marchas da fome. As mais dramáticas deflagraram em 27 de Julho de 1943, decorridos alguns meses sobre a capitulação dos alemães em Estalinegrado. A greve de Julho e primeiros dias de Agosto, organizada pelo partido comunista português, envolveu cerca de 50 mil trabalhadores. Aderiram os estaleiros da CUF, da Parry & Sun, da Companhia Colonial de Navegação, as fábricas de Alcântara. Na tarde de 28 de Julho o Governo estabeleceu o estado de sítio. O Barreiro foi ocupado militarmente. Em Alhos Vedros os operários desligaram a máquina do comboio; na Moita e no Lavradio fizeram parar o comboio do Algarve. Nas marchas da fome as mulheres apedrejavam os polícias. A 2 de Agosto o Governo pôs na rua tanques e aviões enquanto amontoava os grevistas no mercado do gado ao Campo Pequeno, em Caxias e deportava outros para Angra do Heroísmo e o Tarrafal. Só dias mais tarde o jornal O Século noticiava a medo: “Em Lisboa e nalguns pontos da Outra Banda registaram-se incidentes com os operários mas a força pública restabeleceu a ordem”.

Bento de Jesus Caraça continuava muito activo, agora com acrescidas margens de perigo. Participava em passeios no Tejo com amigos que a Pide considerava subversivos. E em 1941, por sugestão de Bento Gonçalves, Manuel Rodrigues de Oliveira, regressado do Tarrafal e dispondo de algum dinheiro, convidava Bento de Jesus Caraça para fundador e director da Biblioteca Cosmos, de que saíram centena e meia de títulos e quase um milhão de exemplares. As secções da Biblioteca abarcavam todos os ramos do saber: Ciências e Técnicas, Artes e Letras, Filosofia e Religiões, Povos e Civilizações, Biografias, Epopeias Humanas e Problemas do nosso Tempo. Os livros entraram nas casas dos trabalhadores, dos estudantes, dos quadros e mobilizaram um escol formidável de intelectuais: Abel Salazar. Manuel Mendes, Dias Amado, Torre de Assunção, Flausino Torres, com as suas Civilizações Primitivas e Religiões Primitivas, Irene Lisboa, Aurélio Quintanilha, Edmundo Curvelo, padre Alves Correia, Celestino da Costa, Luís de Freitas Branco, Fernando Lopes Graça, Keil do Amaral. E tantos outros.

É então que Bento de Jesus Caraça publica os Conceitos Fundamentais da Matemática, números 2 e 18 da Biblioteca.

Este livro ajudou-me a vencer o horror da matemática. Devo também ao livro de Bento Caraça e a um dos colaboradores da Biblioteca Cosmos, o meu professor da Faculdade de Letras Edmundo Curvelo, tão injustamente esquecido, o amor pela filosofia grega. Nos Conceitos Fundamentais da Matemática, a dialéctica materialista suporta harmoniosamente a história das ideias matemáticas. E quando escolhe profissões para encarnarem a exposição da teoria serve-se do pastor, do operário, da dona de casa, do homem de laboratório ou ainda da dona de casa, do engenheiro, do operário, do agricultor. E adverte-nos. A vida desafia-nos constantemente com problemas de que dependem a vida individual e social. Mas os homens acabam por resolvê-los, melhor ou pior.

Recomenda e admira Romain Rolland e o seu Jean Christophe. Escreve sobre Galileu. Planeia um estudo sobre Leonardo da Vinci para quem o conhecimento científico assentava na experiência e na ordenação matemática.

Em 1944 Bento de Jesus Caraça é um dos obreiros e dirigentes da organização unitária e clandestina Movimento de Unidade Nacional Antifascista, o MUNAF. Depois, em 1945, após as manifestações de massa que celebraram a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, torna-se vice-presidente, na legalidade dia a dia ameaçada, do Movimento de Unidade Democrática, o MUD. A ampla unidade das duas organizações ficou a dever-se, em primeiro lugar e seguindo o pensamento do nosso autor, às condições objectivas, em segundo lugar à acção, ao diálogo sereno, leal, aberto à diferença, de Bento de Jesus Caraça.

Em Outubro de 1946 é demitido da Universidade, em Dezembro preso pela Pide. As purgas nas Universidades Portuguesas prosseguem em Junho de 1947 com a demissão dos seus amigos Francisco Pulido Valente, Fernando da Fonseca, Celestino da Costa, Cascão de Anciães da Faculdade de Medicina, dos matemáticos Mário Silva, Aniceto Monteiro, Manuel Valadares, Zaluar Nunes. E muitos outros.

Mário Sacramento lembrou num depoimento de 1968 alguns traços da personalidade de Bento. “A cabeleira grisalha e ondulante, a presença serena e desenfatizada, a palavra prudente e curta de quem não acredita em retorismos miríficos...

Recordo-o apenas do MUD, onde a sua capacidade de ouvir, conjugar, derimir soube manter, sempre, o sentido de objectividade conjuntural, sem a intervenção da qual não haverá, nunca, acção política cientificamente elaborada e conduzida” [8] .

Pelo seu lado, Rodrigues Lapa confirmava as diferenças ideológicas e também a admiração e o respeito que votava a Bento Caraça: “Nunca procurou fazer da casa [a Seara Nova] onde era recebido de braços abertos uma cómoda agência do Partido. Era um homem de superior envergadura política e moral; e tal atitude revela a lealdade indefectível do seu carácter “ [9] .

Este eminente pedagogo é um homem que constantemente se interroga: se não receio o erro, declara, é só porque estou sempre pronto a corrigi-lo.

E quando a morte chegou em pleno ciclo da vida na tarde de 25 de Junho de 1948, foi a consternação. Todos nos sentimos órfãos. E o seu funeral, marcado pelo silêncio e o soar dos passos da multidão, ficou como um dos momentos mais emotivos dos terríveis anos de chumbo.

Avisos para o Futuro

Os jovens da minha geração fizeram de Bento de Jesus Caraça o seu patrono, o modelo de ética individual, intelectual e política. Mas a sua figura solar não pode ficar acantonada no passado. Deixou-nos apontamentos preciosos que apontam para o futuro.

Primeiramente, a ideia de que a cultura integral do indivíduo é o caminho da liberdade e da cidadania. Ser culto não implica ser sábio. Há sábios que não são homens cultos e homens cultos que não são sábios. Homem culto é aquele que tem consciência da sua posição no cosmos e, em particular, na sociedade a que pertence. Homem culto é aquele que tem consciência da dignidade que é inerente à existência como ser humano. Homem culto é aquele que faz do aperfeiçoamento do seu ser interior o fim último da vida. Este terceiro ponto tem sido demasiadamente esquecido.

“Eduquemos e cultivemos a consciência humana, acordemo-la quando estiver adormecida, demos a cada um a consciência completa de os seus deveres, da sua dignidade, da sua liberdade.”

Numa outra mensagem, Bento de Jesus Caraça põe-nos de sobreaviso contra o derrotismo. Ao justificar a criação da Biblioteca Cosmos, escreveu: “Há em suma que dar ao homem uma visão optimista de si próprio; o homem desiludido e pessimista é um ser inerte sujeito a todas as renúncias, a todas as derrotas –e derrotas só existem aquelas que se aceitam”.

Não menos voltadas para o futuro são as palavras que dirigiu em carta a Manuel Amado da Cunha, de 16 de Janeiro de 1943, antes da rendição alemã em Estalinegrado. “É da condição humana a tendência ao estático, à petrificação, no meio dum mundo dinâmico em permanente transformação. E, por isso, quando uma geração nova surge, impulsionada por um conjunto de condições novas e, consequentemente, portadora de concepções e valores novos, ela não é, dum modo geral, compreendida pela geração anterior. Nem o pode ser, uma vez que essa geração é constituída, na sua grande maioria, por mentalidades cristalizadas, incapazes de apreenderem o complexo duma evolução que as ultrapassa.

A evolução e o transformar-se permanente de todas as coisas é lei da vida, quer isso seja ou não da nossa simpatia, e todas as pessoas que o ignoram ou esquecem estão sujeitas a encontrar-se na vida em situações deploráveis...

Uma personalidade compreensiva, que queira fugir aos perigos da petrificação e libertar-se das contingências temporais que referi e dos preconceitos que um certo aspecto da sua vida material lhe pode ter criado, leva muito tempo a construir. Exige um esforço permanente de reflexão e uma procura constante de interpretação livre desses preconceitos, dos acontecimentos do mundo físico e social que nos rodeia.”

Como são actuais as suas palavras. E acrescenta. “Não há para isso [isto é, para as novas situações] textos sagrados” [10] .

Uma última mensagem retirada da conferência A Cultura Integral do Indivíduo. “As ilusões nunca são perdidas. Elas significam o que há de melhor na vida dos homens e dos povos. Perdidos são os cépticos que escondem sob uma ironia fácil a sua impotência para compreender e agir; perdidos são aqueles períodos da história em que os melhores, gastos e cansados se retiram da luta, sem enxergarem no horizonte nada a que se entreguem, caída uma sombra uniforme sobre o pântano estéril da vida sem formas” [11] .

Nós não nos retiramos. Neste tempo em que a procura do lucro máximo leva os dirigentes políticos e económicos a porem em perigo a própria sobrevivência da espécie humana, nós dizemos com Bento de Jesus Caraça: “As ilusões nunca são perdidas. Elas significam o que há-de melhor na vida dos homens e dos povos”.

António Borges Coelho

Sessão Pública em Vila Viçosa

Terra natal de Bento de Jesus Caraça

Vila Viçosa

21 de Abril de 2001

BENTO DE JESUS CARAÇA

António Borges Coelho

Historiador

Em Vila Viçosa, terra de camponeses e de reis, nasceu há cem anos Bento de Jesus Caraça. Não em berço de ouro. Numa casa de trabalhadores rurais. A rua pobre dava pelo nome de Rua dos Fidalgos e encostava-se ao Paço dos Duques de Bragança. Cercado pela natureza e os bichos, partilhou nos primeiros anos em Aldeias de Montoito a vida dos camponeses. Um maltês ensinou-lhe as primeiras letras. Na era das guerras e das revoluções, viu cair a Monarquia, a República e opôs-se ao Estado dito Novo que durante quase meio século amordaçou Portugal. Foi matemático, pedagogo, humanista, cidadão. Nos breves anos de vida, marcou profundamente os homens e as mulheres de diferentes quadrantes políticos e ideológicos que no último século lutaram pela liberdade e a dignidade humana em Portugal.

Os Primeiros Anos

Bento de Jesus Caraça nasceu no ano da morte da rainha Vitória. A Grã Bretanha era ainda a primeira potência mundial. Patrulhava os mares, estendia o império por quatro continentes mas o seu poder começava agora a declinar. Inglaterra, Alemanha, França, Áustria-Hungria, Rússia e Itália, e fora da Europa, os Estados Unidos e o Japão lançavam-se na corrida aos armamentos, estabeleciam alianças estratégicas, rasgavam com conflitos e ameaças todo o palco do Mundo. A Alemanha e o Japão punham de pé uma poderosa máquina de guerra, decididas a obter pela força um maior quinhão na partilha.

E a 28 de Julho de 1914, o assassinato em Sarajevo do herdeiro do império austríaco desencadeava a catástrofe. Durante quatro anos, sobretudo na Europa, foi a chacina. Só em 1916, na batalha de Verdun, envolveram-se em luta dois milhões de soldados deixando na terra um milhão de mortos. Na Flandres, milhares de soldados portugueses morreram atolados na lama das trincheiras, ceifados pela artilharia, rasgados pelas baionetas, sufocados pelos gazes, devorados pelos ratos.

O pesadelo da mobilização para o massacre marcou certamente o adolescente Bento de Jesus Caraça. E não ficaria indiferente ao cortejo dos mutilados e dos “gazeados” que regressaram diminuídos aos seus lares. Num artigo publicado no jornal Globo, cujos dois únicos exemplares dirigiu com José Rodrigues Miguéis, escrevia em 1933 evocando a Primeira Guerra Mundial: “Terminara o pesadelo: pusera-se um dique à onda de loucura e de morte que, submergindo tudo, transformara uma parte da Europa num montão informe de ruínas. Do caos ia surgir uma nova civilização, de face mais humana, onde reinaria a justiça, a equidade, onde a mútua compreensão dos indivíduos e dos povos seria o fundamento das relações na sociedade. Exigia-o a dívida sagrada para com os milhões de vítimas que, umas nas trincheiras, lama e sangue, outras na vida infernal desses quatro anos, privações materiais e tortura moral, se haviam sacrificado cegamente por aquilo que lhes diziam ser luta pelo direito e a liberdade”. [1]

Quando voltaríamos nós a ouvir de novo estas promessas? No final da Segunda Guerra Mundial? Depois da queda do Muro de Berlim?

O Portugal dos primeiros anos do século XX e da vida de Bento de Jesus Caraça não se afastava muito daquele que transparece nos autores dos finais do século XIX. Camilo Castelo Branco com o seu génio iluminou o Norte rural e escalpelizou a traço forte o mundo urbano e político. Júlio Dinis pintou com tintas claras o Porto de Uma Família Inglesa. O Alentejo salta, já no século XX, das páginas de Fialho de Almeida e de Manuel da Fonseca. Lisboa e a classe política são descritas com sublime ironia por Eça de Queirós em O Primo Basílio, em A Capital ou em Os Maias.

Mas no início do século XX adensara-se a atmosfera política. O Regicídio de 1908 e a proclamação da República em 5 de Outubro de 1910 agitaram o país profundo e sem qualquer dúvida marcaram o consciente dos moradores de Aldeias de Montoito, do Redondo ou de Vila Viçosa. Sinal dos novos tempos, formam-se mais de uma centena de sindicatos de trabalhadores rurais que constituem a sua federação no Congresso de Évora de 1912.

O curso político aberto pela proclamação da República influenciou de forma muito positiva o ensino público. Por outro lado, a proprietária da herdade da Casa Branca onde Bento Caraça passou a infância, sensibilizada pela inteligência e o trato daquele filho de camponeses, assumiu os custos da sua educação.

Completou o liceu no Pedro Nunes. Em 1919 frequenta o segundo ano do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras e é convidado pelo Prof. Mira Fernandes para segundo assistente. O filho de camponeses, que custeava em parte os seus estudos dando explicações aos colegas, alçava-se à docência universitária. Em 1923 com 22 anos concluía a licenciatura. No ano seguinte, era primeiro assistente. Em 1927, professor extraordinário. Em Dezembro de 1929, com 28 anos, atingia a cátedra e regia a cadeira de Matemáticas Superiores, Álgebra Superior, Princípios de Análise Infinitesimal e Geometria Analítica.

Subira a pulso sem manobras de acrobata. O cidadão temperava-se nas dificuldades sem hipotecar a dignidade e a ligação à gente pobre donde viera. Ele próprio escrevia em 1933: “O trabalho de submissão, de lamber de botas, da parte das chamadas camadas intelectuais, tem sido duma perfeição dificilmente excedível. Digamos, para irmos até ao fim, que os mais excelsos nesse mister são frequentemente aqueles que, partidos das camadas ditas inferiores, se guindaram, umas vezes a pulso, outras em acrobacia de palhaço, a posições que deveriam utilizar para defesa dos bens espirituais e que só usam para trair os seus antigos irmãos no sofrimento” [2] .

O percurso de Bento de Jesus Caraça mostra com toda a clareza que sempre manteve e valorizou os laços que o ligavam ao mundo dos trabalhadores. Em 1919, tinha ele 18 anos, era convidado para segundo assistente do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, como dissemos, mas, nessa mesma data, assumia um lugar na direcção da Universidade Popular que funcionava em Campo de Ourique na Padaria do Povo. Em 1928 tomou a presidência que manteve durante vinte anos até à sua morte. Foi uma vida toda dedicada a lançar a semente da cultura não só na Universidade pública aos que podiam pagar mas na Universidade Popular frequentada pelos mais desfavorecidos e incomodados.

Entre as Duas Guerras Mundiais

A Primeira Guerra Mundial engrossou o poderoso movimento europeu de defesa da paz . À medida que a chacina aumentava, o movimento entrava nas próprias trincheiras e milhares de soldados abandonavam as armas afrontando o risco dos pelotões de fuzilamento. Ao desejo de paz, juntava-se, por parte de massas de trabalhadores e também de intelectuais, o anseio de erguer uma nova sociedade que libertasse e irmanasse os povos de todo o mundo. E quando em Novembro de 1917 rebentou a revolução na Rússia com a consigna “Todo o Poder aos Sovietes”, estalou o pânico dos poderosos e cresceu entre os povos uma fantástica esperança. Estava aberto o caminho para a Cidade Nova, usando a expressão de Bento de Jesus Caraça.

Tendes alguma dúvida? “Creio que a classe proletária está destinada a, num futuro mais ou menos próximo, tomar nas suas mãos a direcção dos destinos do mundo, transformando por completo toda a organização social existente”. São palavras suas proferidas na Universidade Popular em 21 de Novembro de 1928. E a 8 de Setembro de 1939, sete dias após a invasão da Polónia pelas tropas de Hitler, anunciava: “E a Europa nova há-de surgir (daqui a quanto tempo?) aquecida pelo sol do Oriente onde se estão jogando os verdadeiros destinos do mundo” [3] .

Em 1929 a crise económica abalou o sistema capitalista provocando falências em série, milhões e milhões de desempregados. Massas humanas morriam de subnutrição e de fome enquanto se queimavam toneladas e toneladas de alimentos ditos excedentários. “Época singular! Em que podemos assistir às manifestações do mais alto poder criador e do mais persistente esforço de sistematização –Einstein e Broglie- e, paralelamente, à desorganização total da vida económica e à destruição deliberada precisamente daquilo de que a maioria carece”, comentava Bento de Jesus Caraça na célebre conferência A Cultura Integral do Indivíduo Problema Central do nosso Tempo, proferida em 25 de Maio de 1933 na União Cultural “Mocidade Livre”.

Entretanto, em Portugal, a República caía atolada nas suas contradições e vítima da acção dos seus poderosos inimigos. Os anos da República foram tumultuosos mas, para lá da propaganda que perdurou até aos nossos dias, a nova ordem inçou o país de desordens sangrentas com milhares e milhares de vítimas: mortos, feridos, deportados, expulsos dos empregos e do país. A nova ordem estendia cadeias de medo, de denúncia, de subserviência, de ignorância e superstição. Ao desarmamento cívico e intelectual a que Salazar conduzia o país, respondia o povo republicano e democrata: revolta de Fevereiro de 1927 com centenas de mortos, milhares de feridos e centenas de deportados; revolta da Madeira de 1931 e a de Agosto desse ano em Lisboa com 40 mortos e 200 feridos; 18 de Janeiro de 1934 com mortos e deportados; revolta dos marinheiros do Dão, do Bartolomeu Dias e do Afonso de Albuquerque em 8 de Julho de 1936 com mortos e deportados.

Os salazaristas destruíam os progressos alcançados no ensino público durante a Primeira República. Exaltavam os analfabetos como a nação no seu estado puro. Destruíam os sindicatos, a liberdade de imprensa, de associação, de reunião. Criavam a polícia política, a Legião, a Mocidade Portuguesa. Deportavam cidadãos sem culpa formada e sem julgamento. Activavam o Forte de Peniche, abriam o Campo de Concentração do Tarrafal. Abatiam comunistas, anarquistas e outros democratas na rua, no consultório médico, na tortura, no Aljube, no Forte de São João Batista de Angra do Heroísmo, no Tarrafal.

Em 1933, Hitler tomava o poder na Alemanha enquanto em Itália se consolidava o fascismo. No outro campo do universo político, a Frente Popular triunfava em França e Espanha. Aproximava-se nova tempestade mais mortífera que a de 1914-18. Em 1936, Franco chefia a revolta militar contra o poder legítimo da República Espanhola. A guerra civil, que se arrastou por três anos, provocaria um milhão de mortos e espalhava o sangue até às fronteiras portuguesas.

Bento de Jesus Caraça, como sabemos pelo seu espólio, acompanhava atentamente a situação internacional e nacional enquanto prosseguia a docência no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras e fundava em 1938, com Mira Fernandes e Caetano Beirão da Veiga, o Centro de Estudos de Matemáticas Aplicadas à Economia. Mantinha a presidência da Universidade Popular, proferia conferências, uma delas no bastião vermelho do Arsenal do Alfeite onde pontificava Bento Gonçalves, escrevia na Seara Nova, em a Liberdade, no Diabo, no Sol Nascente, mais tarde na Vértice, fundava a Liga Portuguesa contra a Guerra e o Fascismo. Em suma, entregava-se de alma e coração, usando as suas próprias palavras, à ingente tarefa de despertar a alma colectiva das massas.

O seu amigo Joaquim Jacobetty Rosa testemunhou do seguinte modo o talento, o humanismo, as qualidades pedagógicas de Bento de Jesus Caraça: “após ter entrado na Universidade, a sua rica personalidade, trabalhada e desenvolvida por constantes, metódicas e seleccionadas leituras e, simultaneamente, pelo trabalho escolar e pelas suas intervenções como tribuno, como doutrinário e como orientador, nas associações, nas academias, e nas sociedades e publicações culturais dessa época, tornou-o uma espécie de ídolo da mocidade estudantil e universitária, que com ele procurava conviver, frequentando-lhe as aulas”, acompanhando “a sua intervenção directa nos trabalhos, nas pugnas e nas animadas, operosas e por vezes agitadas sessões das assembleias académicas” [4]

A investigação científica, a actividade pedagógica e política entrelaçavam-se harmoniosamente com o amante da natureza e da vida. Gostava de se deitar na terra. É a nossa mãe. E quando podia, refugiava-se na Serra da Estrela. “Recebi antes de ontem a sua carta, -escreve a Manuel Mendes em 26 de Agosto de 1933-, não aqui mas quase no alto da Serra, na caverna, ou na Lapa, dos Charcos, a 1 700 metros onde fui passar quatro dias, longe de tudo quanto é buliçoso, intranquilo e civilizado” [5] .

A Guerra Civil de Espanha terminou nos primeiros dias de 1939. Tornara-se o laboratório da hecatombe que se avizinhava. No artigo do Globo, atrás citado, Bento Caraça alertava: “Prepara-se um novo crime contra a humanidade. Para que esse crime seja possível, são postos em acção todos os meios, corrida desenfreada aos armamentos, preparação do ambiente moral pela excitação dos antagonismos de raças – a mentira e o ódio postos ao serviço dos fabricantes de canhões [6] .

E a 8 de Setembro de 1939: “esta Europa entrou na fase central da carreira louca da morte: começou a descida aos infernos” [7] .

Descida aos Infernos

A Alemanha de Hitler espalhou o inferno por toda a Europa, na África do Norte, nos mares. Ocupou a Áustria, a Checoslováquia, a Polónia, a Holanda, a Bélgica, a França, a Dinamarca, a Noruega, os Balkans, bombardeou Londres, cercou Leninegrado, Estalinegrado, chegou às portas de Moscovo. Pelo seu lado, o Japão ocupava a Coreia, boa parte da China e vastos territórios no Pacífico. Hitler prometia um milénio de barbárie sob a égide da raça pura. Inventava a indústria de destruição maciça de seres humanos com aproveitamento dos seus restos.

Portugal enviava tropas para os Açores, a Madeira, Cabo Verde e Timor. As dificuldades económicas levaram à eclosão de greves e de marchas da fome. As mais dramáticas deflagraram em 27 de Julho de 1943, decorridos alguns meses sobre a capitulação dos alemães em Estalinegrado. A greve de Julho e primeiros dias de Agosto, organizada pelo partido comunista português, envolveu cerca de 50 mil trabalhadores. Aderiram os estaleiros da CUF, da Parry & Sun, da Companhia Colonial de Navegação, as fábricas de Alcântara. Na tarde de 28 de Julho o Governo estabeleceu o estado de sítio. O Barreiro foi ocupado militarmente. Em Alhos Vedros os operários desligaram a máquina do comboio; na Moita e no Lavradio fizeram parar o comboio do Algarve. Nas marchas da fome as mulheres apedrejavam os polícias. A 2 de Agosto o Governo pôs na rua tanques e aviões enquanto amontoava os grevistas no mercado do gado ao Campo Pequeno, em Caxias e deportava outros para Angra do Heroísmo e o Tarrafal. Só dias mais tarde o jornal O Século noticiava a medo: “Em Lisboa e nalguns pontos da Outra Banda registaram-se incidentes com os operários mas a força pública restabeleceu a ordem”.

Bento de Jesus Caraça continuava muito activo, agora com acrescidas margens de perigo. Participava em passeios no Tejo com amigos que a Pide considerava subversivos. E em 1941, por sugestão de Bento Gonçalves, Manuel Rodrigues de Oliveira, regressado do Tarrafal e dispondo de algum dinheiro, convidava Bento de Jesus Caraça para fundador e director da Biblioteca Cosmos, de que saíram centena e meia de títulos e quase um milhão de exemplares. As secções da Biblioteca abarcavam todos os ramos do saber: Ciências e Técnicas, Artes e Letras, Filosofia e Religiões, Povos e Civilizações, Biografias, Epopeias Humanas e Problemas do nosso Tempo. Os livros entraram nas casas dos trabalhadores, dos estudantes, dos quadros e mobilizaram um escol formidável de intelectuais: Abel Salazar. Manuel Mendes, Dias Amado, Torre de Assunção, Flausino Torres, com as suas Civilizações Primitivas e Religiões Primitivas, Irene Lisboa, Aurélio Quintanilha, Edmundo Curvelo, padre Alves Correia, Celestino da Costa, Luís de Freitas Branco, Fernando Lopes Graça, Keil do Amaral. E tantos outros.

É então que Bento de Jesus Caraça publica os Conceitos Fundamentais da Matemática, números 2 e 18 da Biblioteca.

Este livro ajudou-me a vencer o horror da matemática. Devo também ao livro de Bento Caraça e a um dos colaboradores da Biblioteca Cosmos, o meu professor da Faculdade de Letras Edmundo Curvelo, tão injustamente esquecido, o amor pela filosofia grega. Nos Conceitos Fundamentais da Matemática, a dialéctica materialista suporta harmoniosamente a história das ideias matemáticas. E quando escolhe profissões para encarnarem a exposição da teoria serve-se do pastor, do operário, da dona de casa, do homem de laboratório ou ainda da dona de casa, do engenheiro, do operário, do agricultor. E adverte-nos. A vida desafia-nos constantemente com problemas de que dependem a vida individual e social. Mas os homens acabam por resolvê-los, melhor ou pior.

Recomenda e admira Romain Rolland e o seu Jean Christophe. Escreve sobre Galileu. Planeia um estudo sobre Leonardo da Vinci para quem o conhecimento científico assentava na experiência e na ordenação matemática.

Em 1944 Bento de Jesus Caraça é um dos obreiros e dirigentes da organização unitária e clandestina Movimento de Unidade Nacional Antifascista, o MUNAF. Depois, em 1945, após as manifestações de massa que celebraram a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, torna-se vice-presidente, na legalidade dia a dia ameaçada, do Movimento de Unidade Democrática, o MUD. A ampla unidade das duas organizações ficou a dever-se, em primeiro lugar e seguindo o pensamento do nosso autor, às condições objectivas, em segundo lugar à acção, ao diálogo sereno, leal, aberto à diferença, de Bento de Jesus Caraça.

Em Outubro de 1946 é demitido da Universidade, em Dezembro preso pela Pide. As purgas nas Universidades Portuguesas prosseguem em Junho de 1947 com a demissão dos seus amigos Francisco Pulido Valente, Fernando da Fonseca, Celestino da Costa, Cascão de Anciães da Faculdade de Medicina, dos matemáticos Mário Silva, Aniceto Monteiro, Manuel Valadares, Zaluar Nunes. E muitos outros.

Mário Sacramento lembrou num depoimento de 1968 alguns traços da personalidade de Bento. “A cabeleira grisalha e ondulante, a presença serena e desenfatizada, a palavra prudente e curta de quem não acredita em retorismos miríficos...

Recordo-o apenas do MUD, onde a sua capacidade de ouvir, conjugar, derimir soube manter, sempre, o sentido de objectividade conjuntural, sem a intervenção da qual não haverá, nunca, acção política cientificamente elaborada e conduzida” [8] .

Pelo seu lado, Rodrigues Lapa confirmava as diferenças ideológicas e também a admiração e o respeito que votava a Bento Caraça: “Nunca procurou fazer da casa [a Seara Nova] onde era recebido de braços abertos uma cómoda agência do Partido. Era um homem de superior envergadura política e moral; e tal atitude revela a lealdade indefectível do seu carácter “ [9] .

Este eminente pedagogo é um homem que constantemente se interroga: se não receio o erro, declara, é só porque estou sempre pronto a corrigi-lo.

E quando a morte chegou em pleno ciclo da vida na tarde de 25 de Junho de 1948, foi a consternação. Todos nos sentimos órfãos. E o seu funeral, marcado pelo silêncio e o soar dos passos da multidão, ficou como um dos momentos mais emotivos dos terríveis anos de chumbo.

Avisos para o Futuro

Os jovens da minha geração fizeram de Bento de Jesus Caraça o seu patrono, o modelo de ética individual, intelectual e política. Mas a sua figura solar não pode ficar acantonada no passado. Deixou-nos apontamentos preciosos que apontam para o futuro.

Primeiramente, a ideia de que a cultura integral do indivíduo é o caminho da liberdade e da cidadania. Ser culto não implica ser sábio. Há sábios que não são homens cultos e homens cultos que não são sábios. Homem culto é aquele que tem consciência da sua posição no cosmos e, em particular, na sociedade a que pertence. Homem culto é aquele que tem consciência da dignidade que é inerente à existência como ser humano. Homem culto é aquele que faz do aperfeiçoamento do seu ser interior o fim último da vida. Este terceiro ponto tem sido demasiadamente esquecido.

“Eduquemos e cultivemos a consciência humana, acordemo-la quando estiver adormecida, demos a cada um a consciência completa de os seus deveres, da sua dignidade, da sua liberdade.”

Numa outra mensagem, Bento de Jesus Caraça põe-nos de sobreaviso contra o derrotismo. Ao justificar a criação da Biblioteca Cosmos, escreveu: “Há em suma que dar ao homem uma visão optimista de si próprio; o homem desiludido e pessimista é um ser inerte sujeito a todas as renúncias, a todas as derrotas –e derrotas só existem aquelas que se aceitam”.

Não menos voltadas para o futuro são as palavras que dirigiu em carta a Manuel Amado da Cunha, de 16 de Janeiro de 1943, antes da rendição alemã em Estalinegrado. “É da condição humana a tendência ao estático, à petrificação, no meio dum mundo dinâmico em permanente transformação. E, por isso, quando uma geração nova surge, impulsionada por um conjunto de condições novas e, consequentemente, portadora de concepções e valores novos, ela não é, dum modo geral, compreendida pela geração anterior. Nem o pode ser, uma vez que essa geração é constituída, na sua grande maioria, por mentalidades cristalizadas, incapazes de apreenderem o complexo duma evolução que as ultrapassa.

A evolução e o transformar-se permanente de todas as coisas é lei da vida, quer isso seja ou não da nossa simpatia, e todas as pessoas que o ignoram ou esquecem estão sujeitas a encontrar-se na vida em situações deploráveis...

Uma personalidade compreensiva, que queira fugir aos perigos da petrificação e libertar-se das contingências temporais que referi e dos preconceitos que um certo aspecto da sua vida material lhe pode ter criado, leva muito tempo a construir. Exige um esforço permanente de reflexão e uma procura constante de interpretação livre desses preconceitos, dos acontecimentos do mundo físico e social que nos rodeia.”

Como são actuais as suas palavras. E acrescenta. “Não há para isso [isto é, para as novas situações] textos sagrados” [10] .

Uma última mensagem retirada da conferência A Cultura Integral do Indivíduo. “As ilusões nunca são perdidas. Elas significam o que há de melhor na vida dos homens e dos povos. Perdidos são os cépticos que escondem sob uma ironia fácil a sua impotência para compreender e agir; perdidos são aqueles períodos da história em que os melhores, gastos e cansados se retiram da luta, sem enxergarem no horizonte nada a que se entreguem, caída uma sombra uniforme sobre o pântano estéril da vida sem formas” [11] .

Nós não nos retiramos. Neste tempo em que a procura do lucro máximo leva os dirigentes políticos e económicos a porem em perigo a própria sobrevivência da espécie humana, nós dizemos com Bento de Jesus Caraça: “As ilusões nunca são perdidas. Elas significam o que há-de melhor na vida dos homens e dos povos”.

António Borges Coelho

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