A vida como uma espinha ao vento

25-06-2004
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A Vida como Uma Espinha ao Vento

Sábado, 05 de Junho de 2004

%Susana Neves

Só entra quem for capaz de fazer alguma coisa excepcional, avisa Juliette Gréco, à porta do Club Tabou, em 1947. E enquanto no interior escuro e apertado da cave, 33 Rue Dauphine, já se ouvem as primeiras notas da orquestra onde Boris Vian (1920-1959) é trompetista, cá fora, Major (Jacques Loustalot), "prestidigitador" de objectos, funâmbulo sem rede, leva a mão ao rosto e tira o olho de vidro. Contestados por aqueles que neles viam os vícios da noite e a vitalidade do inconformismo, estes bares nascidos com a Libertação de Paris (Agosto 1944) hão-de povoar Saint-Germain-des-Prés, reunindo poetas, existencialistas, pintores, bailarinos de "bebop", os melhores músicos negros de jazz (Duke Ellington, Kenny Clarke, Charlie Parker e Miles Davis são recebidos por Boris Vian no Club de Saint-Germain-des-Prés, fundado em 1948) e todos os que cultivavam consciente ou inconscientemente a alegria da festa, o intercruzamento das artes e a excentricidade como formas de transgressão.

Contra a limitação de se viver para trabalhar, encerrado numa área particular do saber, contra o domínio exclusivo do racionalismo, contra todos os atentados à integridade de qualquer ser, Boris Vian, um bom exemplo do artista multifacetado (engenheiro, músico, escritor, tradutor, actor, crítico de jazz e produtor), propõe, numa carta publicada no semanário "Arts", Abril de 1953, e agora incluída nos textos "Sobre a literatura e a função do escritor" de "Cantilenas em Geleia": "Sejamos um especialista de tudo."

Esta é a grande estratégia de combate ao "robô-poeta", limitado à partida por uma programação imposta do exterior e destinado a perecer por ser inevitável a invenção de um igual que elimine a espécie. Nestes textos ("Um robô-poeta não nos mete medo" e "Tentativa de baralhar as cartas"), onde se fala da crítica como patologia e dos escritores de rebanho diminuto, bem como nas três "Cartas ao Colégio da Patafísica", a tradução, de Margarida Vale de Gato, devolve-nos o escritor corrosivo, irónico, inventivo nas hipóteses imaginárias que utiliza para analisar a formação de palavras ou a sabedoria escondida num provérbio. Por exemplo, confrontando os enunciados, em francês e em alemão, do provérbio "Tantas vezes vai o cântaro à fonte até que lá fica", descobre que em França a acção precede a existência enquanto na Alemanha é o inverso: "Aqui, afirmamos antes de existir, declaramos guerras sem exércitos. Os sórdidos brutos, nossos vizinhos, fazem, antes de tudo, canhões." Provocadora, desconcertante, é também a "Carta a sua Magnificência o Barão Jean Mollet vice-curador do Colégio da Patafísica sobre os falsificadores da guerra", ou seja, todos os que tendo combatido não morreram em combate, e a proposta para a concretização definitiva da paz: que os combatentes de ambos os lados tenham o profissionalismo de se exterminarem reciprocamente. "Despertemos, então, ainda há tempo; rememos contra essa perigosa maré que nos arrasta para os seus remoinhos. Acreditai em mim: o dia em que ninguém voltar da guerra será quando finalmente ela for bem feita. Nesse dia, dar-nos-emos conta que todas as tentativas abortadas até então foram obra de farsantes." Escritas em 1958 - poucos meses antes de Boris Vian morrer enquanto assistia à projecção particular do filme realizado a partir de "Irei Cuspir-vos nos Túmulos" (Relógio D`Água, tradução de Maria João Costa Pereira) -, estas palavras expressam mais a rebeldia do pacifista, que amava absolutamente a vida, e menos o convite à desordem terrorista, fundada no desprezo de tudo. Por outro lado, testemunham a lógica do Colégio da Patafísica - "ciência do particular e das soluções imaginárias", inventada por Alfred Jarry, escritor francês, antecessor do teatro do absurdo ("Rei Ubu", 1896, e "Gestos e Opiniões de Dr. Faustroll, patafísico", 1898-1911) -, a que o autor, de "A Espuma dos Dias" (Relógio D`Água, tradução de Aníbal Fernandes) e "O Outono em Pequim" (Dom Quixote, tradução de Luiza Neto Jorge), se associa em 1952, e de que fazem parte, entre outros, Raymond Queneau, Jacques Prévert, Michel Leiris, Max Ernst e René Clair. Agremiação secreta, dotada de um calendário de 13 meses, o Colégio da Patafísica supunha uma estrutura hierárquica sem sujeição dos seus membros a uma autoridade porque o objectivo era precisamente enaltecer a vida de cada um como uma excepção, movida por uma lei única e original.

Ora o mais difícil na tradução da obra de Boris Vian, sobretudo a poesia, está em conseguir entrar no universo imaginário e linguístico do escritor, encontrando o correspondente na língua de chegada. Neste aspecto, a tradução da recolhas de poemas de "Cantilenas em Geleia", de Margarida Vale de Gato, não faz justiça ao talento, vitalidade e musicalidade transbordantes do autor. "Barnum's Digest", 1948, "Cantilenas em Geleia", 1949, "Poemas Diversos", 1947-58, e "Je Voudrais Pas Crever", 1962, perdem a força e a beleza nesta versão. "La vie c'est comme une dent", que traduzido literalmente não soa mal e mantém o sentido do verso ("A vida é como um dente"), resulta estranho na tradução "A vida é como uma dentadura", que associamos a uma prótese e não possui a economia do original. À dificuldade de encontrar o vocábulo mais adequado, junta-se o problema de introduzir expressões inexistentes, anómalas ao contexto, é o caso do poema "Les Mains Pleines", onde inesperadamente o verso "Je dirais: 'Avez-vous lu Cézanne?'" aparece traduzido por "Diria: '- Vossemecê já leu Cézanne?'"

Estas e outras opções, espalhadas pela maioria dos poemas, destroem a leitura de Boris Vian, por isso, sem nos querermos alongar mais nestas considerações, dir-se-ia que ao livro "Canções e Poemas" (A&A, 1997), traduzido por Irene Freire Nunes e Fernando Cabral Martins, é urgente que se venha juntar uma apresentação mais apurada da sua obra poética - refinada, erudita, simples, complexa, onde o humor negro revela a angústia do desamor e o enaltecimento das pequenas e significantes coisas da vida alternam com a coragem de reinventar a sua própria morte. O poeta está desempregado. Em vez de escrever, o melhor seria ir ganhar a vida, mas, como diz Boris Vian, para quê ir ganhar o que já se tem. Num CD (Polygram Distribution) dedicado a Saint-Germain-des-Prés nos anos 40, Francis Claude é quem bem o retrata: "Ele jogava à vida como outros jogam na Bolsa."

A Vida como Uma Espinha ao Vento

Sábado, 05 de Junho de 2004

%Susana Neves

Só entra quem for capaz de fazer alguma coisa excepcional, avisa Juliette Gréco, à porta do Club Tabou, em 1947. E enquanto no interior escuro e apertado da cave, 33 Rue Dauphine, já se ouvem as primeiras notas da orquestra onde Boris Vian (1920-1959) é trompetista, cá fora, Major (Jacques Loustalot), "prestidigitador" de objectos, funâmbulo sem rede, leva a mão ao rosto e tira o olho de vidro. Contestados por aqueles que neles viam os vícios da noite e a vitalidade do inconformismo, estes bares nascidos com a Libertação de Paris (Agosto 1944) hão-de povoar Saint-Germain-des-Prés, reunindo poetas, existencialistas, pintores, bailarinos de "bebop", os melhores músicos negros de jazz (Duke Ellington, Kenny Clarke, Charlie Parker e Miles Davis são recebidos por Boris Vian no Club de Saint-Germain-des-Prés, fundado em 1948) e todos os que cultivavam consciente ou inconscientemente a alegria da festa, o intercruzamento das artes e a excentricidade como formas de transgressão.

Contra a limitação de se viver para trabalhar, encerrado numa área particular do saber, contra o domínio exclusivo do racionalismo, contra todos os atentados à integridade de qualquer ser, Boris Vian, um bom exemplo do artista multifacetado (engenheiro, músico, escritor, tradutor, actor, crítico de jazz e produtor), propõe, numa carta publicada no semanário "Arts", Abril de 1953, e agora incluída nos textos "Sobre a literatura e a função do escritor" de "Cantilenas em Geleia": "Sejamos um especialista de tudo."

Esta é a grande estratégia de combate ao "robô-poeta", limitado à partida por uma programação imposta do exterior e destinado a perecer por ser inevitável a invenção de um igual que elimine a espécie. Nestes textos ("Um robô-poeta não nos mete medo" e "Tentativa de baralhar as cartas"), onde se fala da crítica como patologia e dos escritores de rebanho diminuto, bem como nas três "Cartas ao Colégio da Patafísica", a tradução, de Margarida Vale de Gato, devolve-nos o escritor corrosivo, irónico, inventivo nas hipóteses imaginárias que utiliza para analisar a formação de palavras ou a sabedoria escondida num provérbio. Por exemplo, confrontando os enunciados, em francês e em alemão, do provérbio "Tantas vezes vai o cântaro à fonte até que lá fica", descobre que em França a acção precede a existência enquanto na Alemanha é o inverso: "Aqui, afirmamos antes de existir, declaramos guerras sem exércitos. Os sórdidos brutos, nossos vizinhos, fazem, antes de tudo, canhões." Provocadora, desconcertante, é também a "Carta a sua Magnificência o Barão Jean Mollet vice-curador do Colégio da Patafísica sobre os falsificadores da guerra", ou seja, todos os que tendo combatido não morreram em combate, e a proposta para a concretização definitiva da paz: que os combatentes de ambos os lados tenham o profissionalismo de se exterminarem reciprocamente. "Despertemos, então, ainda há tempo; rememos contra essa perigosa maré que nos arrasta para os seus remoinhos. Acreditai em mim: o dia em que ninguém voltar da guerra será quando finalmente ela for bem feita. Nesse dia, dar-nos-emos conta que todas as tentativas abortadas até então foram obra de farsantes." Escritas em 1958 - poucos meses antes de Boris Vian morrer enquanto assistia à projecção particular do filme realizado a partir de "Irei Cuspir-vos nos Túmulos" (Relógio D`Água, tradução de Maria João Costa Pereira) -, estas palavras expressam mais a rebeldia do pacifista, que amava absolutamente a vida, e menos o convite à desordem terrorista, fundada no desprezo de tudo. Por outro lado, testemunham a lógica do Colégio da Patafísica - "ciência do particular e das soluções imaginárias", inventada por Alfred Jarry, escritor francês, antecessor do teatro do absurdo ("Rei Ubu", 1896, e "Gestos e Opiniões de Dr. Faustroll, patafísico", 1898-1911) -, a que o autor, de "A Espuma dos Dias" (Relógio D`Água, tradução de Aníbal Fernandes) e "O Outono em Pequim" (Dom Quixote, tradução de Luiza Neto Jorge), se associa em 1952, e de que fazem parte, entre outros, Raymond Queneau, Jacques Prévert, Michel Leiris, Max Ernst e René Clair. Agremiação secreta, dotada de um calendário de 13 meses, o Colégio da Patafísica supunha uma estrutura hierárquica sem sujeição dos seus membros a uma autoridade porque o objectivo era precisamente enaltecer a vida de cada um como uma excepção, movida por uma lei única e original.

Ora o mais difícil na tradução da obra de Boris Vian, sobretudo a poesia, está em conseguir entrar no universo imaginário e linguístico do escritor, encontrando o correspondente na língua de chegada. Neste aspecto, a tradução da recolhas de poemas de "Cantilenas em Geleia", de Margarida Vale de Gato, não faz justiça ao talento, vitalidade e musicalidade transbordantes do autor. "Barnum's Digest", 1948, "Cantilenas em Geleia", 1949, "Poemas Diversos", 1947-58, e "Je Voudrais Pas Crever", 1962, perdem a força e a beleza nesta versão. "La vie c'est comme une dent", que traduzido literalmente não soa mal e mantém o sentido do verso ("A vida é como um dente"), resulta estranho na tradução "A vida é como uma dentadura", que associamos a uma prótese e não possui a economia do original. À dificuldade de encontrar o vocábulo mais adequado, junta-se o problema de introduzir expressões inexistentes, anómalas ao contexto, é o caso do poema "Les Mains Pleines", onde inesperadamente o verso "Je dirais: 'Avez-vous lu Cézanne?'" aparece traduzido por "Diria: '- Vossemecê já leu Cézanne?'"

Estas e outras opções, espalhadas pela maioria dos poemas, destroem a leitura de Boris Vian, por isso, sem nos querermos alongar mais nestas considerações, dir-se-ia que ao livro "Canções e Poemas" (A&A, 1997), traduzido por Irene Freire Nunes e Fernando Cabral Martins, é urgente que se venha juntar uma apresentação mais apurada da sua obra poética - refinada, erudita, simples, complexa, onde o humor negro revela a angústia do desamor e o enaltecimento das pequenas e significantes coisas da vida alternam com a coragem de reinventar a sua própria morte. O poeta está desempregado. Em vez de escrever, o melhor seria ir ganhar a vida, mas, como diz Boris Vian, para quê ir ganhar o que já se tem. Num CD (Polygram Distribution) dedicado a Saint-Germain-des-Prés nos anos 40, Francis Claude é quem bem o retrata: "Ele jogava à vida como outros jogam na Bolsa."

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