O amigo como esse que a falar amamos

01-05-2002
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O Amigo como Esse Que a Falar Amamos

Por MÁRIO SANTOS

Sábado, 13 de Abril de 2002

As cartas de Pessoa para Sá-Carneiro perderam-se na sua quase totalidade. São conhecidas apenas quatro, das quais uma que será só um esboço, outra que não terá sido enviada e uma terceira que não chegou a ser lida pelo destinatário, uma vez que foi escrita no próprio dia do seu suicídio. É a primeira vez que se reúnem num único volume "todas as cartas e postais", documentos novamente fixados a partir dos originais conservados na "arca" pessoana e novamente anotados.

O tema foi lançado por Pessoa (o que não surpreende em quem sabia que no prazer da glória futura só a glória é que é póstuma), mas só conhecemos a reacção de Sá-Carneiro, numa carta de 20 de Julho de 1914: "Você tem razão, que novidade literária sensacional o aparecimento em 1970 da Correspondência inédita de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro - publicada e anotada por... (perturbador mistério!)". Atrevendo-me a contrariar o virtuoso escrúpulo académico de Óscar Lopes ("Mário de Sá-Carneiro ou a aposta contra Cesário", conferência de 1991 coligida em "A Busca de Sentido", ed. Caminho), eu diria que não erraram muito, na verdade, os de "Orpheu", nesta sua semi-irónica profecia. Em 1958 e 1959 a Ática publicou as primeiras "Cartas a Fernando Pessoa" do poeta de "Indícios de Oiro", em dois volumes prefaciados por Urbano Tavares Rodrigues e com apêndices e notas de Helena Cidade Moura; e em 1980 aparecia, pela mão de Arnaldo Saraiva, um volume de "Correspondência Inédita de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa" (ed. Centro de Estudos Pessoanos, Porto). As 115 cartas publicadas pela Ática e os 102 textos epistolares (uma vez que se trata também de postais e até de telegramas) revelados por A. Saraiva surgem agora reunidos em "Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa", um volume organizado e anotado por Manuela Parreira da Silva (que, recorde-se, organizara já, também para a Assírio & Alvim, a edição sistemática de toda a correspondência de Pessoa).

Não sendo, portanto, inédita a correspondência agora reunida, pode talvez perguntar-se se esta nova edição continua sendo uma "novidade literária sensacional". É certo que o essencial deste conjunto epistolar é conhecido desde há mais de 40 anos e tem já, de resto, uma longa tradição de recepção crítica. Mas, por outro lado, os inéditos editados por Arnaldo Saraiva não estavam propriamente muito acessíveis, ao contrário dos volumes da Ática, que têm conhecido sucessivas reedições. Acrescendo que é a primeira vez que se reúnem num único volume "todas as cartas e postais" que Sá-Carneiro enviou a Pessoa desde a sua ida para Paris, em Outubro de 1912, até ao seu suicídio, em 26 de Abril de 1916, documentos novamente fixados a partir dos originais conservados na "arca" pessoana e novamente anotados, a resposta àquela pergunta não pode talvez ser senão positiva (tendo pelo menos em atenção os potenciais novos leitores que pode vir a cativar). Quanto à adjectivação da "novidade", cumpre-nos dizer que nos parece que o "estranho caso" Sá-Carneiro está para durar, apesar de, ou sobretudo após, a leitura incontornável que Fernando Cabral Martins fez em "O Modernismo em Mário de Sá-Carneiro" (Estampa, 2ª ed. em 1997). Admitindo agora o caso singularíssimo da amizade mítica que uniu os dois poetas maiores do modernismo português (David Mourão-Ferreira falou em Ícaro e Dédalo, Eduardo Lourenço em Castor e Polux), só é pena que, estando já publicadas cartas do poeta a outros destinatários e havendo muitas outras inéditas, não tenha surgido ainda a hora em que veremos reunida toda a correspondência de Sá-Carneiro. Mesmo sabendo que a verdadeira última carta que o "dúbio mascarado" deixou a Pessoa no quarto de hotel em que se suicidou jamais será encontrada. Perturbador mistério.

No posfácio, Manuela Parreira da Silva propõe (mas não exclusivamente, claro) a leitura desta correspondência "como uma espécie de romance espistolar, com um final infeliz...". A proposta não é nova, já que, logo em 1960, numa recensão à primeira edição da Ática, Pierre Hourcade referia-se-lhe como podendo ser "a história de um suicida" (ou de um suicídio...). Como se sabe, as cartas de Pessoa para Sá-Carneiro perderam-se na sua quase totalidade. São conhecidas apenas quatro, das quais uma que será só um esboço, outra que não terá sido enviada e uma terceira que não chegou a ser lida pelo destinatário, uma vez que foi escrita no próprio dia do seu suicídio (em 1918, Pessoa ainda tentava em vão, em carta dirigida ao gerente do hotel parisiense onde Sá-Carneiro se suicidou, recuperar o espólio aí cativo como penhor das dívidas deixadas pelo poeta, e onde é suposto estivessem tais cartas e outros inéditos). Mas, sob este aspecto (e para além da perda óbvia em termos históricos e literários), pode dizer-se que a ausência das respostas do interlocutor, apenas audível intermitente e indirectamente, de forma especular, favorece o "romance", especialmente no que ele tem de "final infeliz".

Haverá até, nesta ausência, uma espécie de "(in)justiça poética". Pessoa escreveu, provavelmente em 1930: "Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obter alguém da humanidade." Anunciado naquela mítica (?) carta de 31 de Março de 1916 (que começa assim: "A menos dum milagre na próxima segunda-feira 3 (ou mesmo na véspera), o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo"...), o verdadeiro "mito" da geração de "Orpheu" é o poeta de "Dispersão". E na sua criação Pessoa desempenhou astralmente o papel que, afinal, lhe tinha sido atribuído. Lembre-se o início famoso do texto com que Pessoa apresenta, na revista "Athena" em 1924, os "últimos poemas" de Sá-Carneiro: "Morre jovem o que os Deuses amam", e um seu belíssimo e pungente poema de 1934: "Hoje, falho de ti, sou dois a sós./(...)/Éramos como um diálogo numa alma./(...)/Porque há em nós, por mais que consigamos/Ser nós mesmos a sós sem nostalgia,/Um desejo de termos companhia -/O amigo como esse que a falar amamos." No prefácio ao livro "A Questão Estética em Mário de Sá-Carneiro", de Ana Nascimento Piedade (ed. Universidade Aberta, 1994), Eduardo Lourenço fazia notar apenas isto: "O círculo dos adoradores de Sá-Carneiro é, sem dúvida, mais restrito que o de Pessoa, mas paradoxalmente, sobretudo hoje, após o longo reino do criador dos heterónimos, mais fervoroso. Ou antes, mais intenso, por menos corroído por uma exegese que acabou por se tornar no seu próprio objecto. Tudo se passa como se o fervor por Sá-Carneiro tenha passado de adepto a adepto como numa seita. Talvez porque a sua exegese deixa o crítico e o simples leitor mais desamparado que no caso de Pessoa." Nessa "seita" destacam-se os surrealistas: "Houve centro? E a havê-lo não seria esse Magnífico Sá-Carneiro de que todos se serviram e perante o qual Pessoa perde todas as 'pessoas' porque Sá-Carneiro é o seu assassino?", perguntava António Maria Lisboa; e Cesariny: "Ora este foi dos tais a quem não deram passaporte/de forma que embarcou clandestino/(...)/herói à sua maneira recusou-se/a beber o pátrio mijo/deu a mão ao Antero, foi-se, e pronto,/desembarcou como tinha embarcado//Sem Jeito Para o Negócio". Surrealistas que foram dos poucos a recusar uma leitura meramente instrumental da obra de Sá-Carneiro. Instrumental não exactamente no sentido em que Herberto Helder disse que a prosa do autor de "Céu em Fogo" valia como "adestramento instrumental" para a sua poesia (o que se poderia dizer também das cartas), mas no sentido de que fala Fernando Cabral Martins, ou seja, de uma espécie de degradação do mito, e da obra, a uma só "dimensão psicológica". Citem-se como exemplos desta tentação continuada João Pinto de Figueiredo em "A Morte de Mário de Sá-Carneiro" (Dom Quixote, 1983), que praticamente reduz a obra a um "recurso" a que o "pobre menino ideal" deitou inutilmente mão para vencer a orfandade, de mãe e do mundo; e Maria José de Lencastre, que, em "O Eu e o Outro" (Quetzal, 1992), remete as cartas para a "esfera do colóquio de um paciente com o seu analista ou com o seu terapeuta" (embora aqui numa leitura mais estruturada e assumidamente psicanalítica que se estende também à poesia e à ficção do autor).

Numa crónica recente no suplemento "Babelia" do diário espanhol "El País", Enrique Vila-Matas citava Kafka, Pessoa e Lobo Antunes, entre outros "enfermos de literatura" (e recorde-se que Pessoa já diagnosticara aquele a quem os deuses "tiveram muito amor" como "doente da sua ficção"). É estranho que o escritor catalão se não tenha lembrado de Sá-Carneiro, pois está tudo nesta carta de 21 de Janeiro de 1913: "É curiosa esta função do cérebro-escritor. De tudo quanto em si descobre e pensa faz novelas ou poesias. Mais feliz que os outros para quem as horas de meditação sobre si próprio são horas perdidas. Para nós, elas são ganhas. Menos nobres só. O desperdício é nobre. O interesse vil. E o artista é mais interesseiro do que o judeu. Tudo - cenários, pensamentos, dores, alegrias - se lhe transforma em matéria de arte!... Ganha sempre!" Finalmente, desta correspondência fascinante que, como toda a obra de Sá-Carneiro, continuará aberta ao desamparo do leitor nas múltiplas abordagens que admite (históricas, literárias, biográficas, psicológicas, anedóticas...), diga-se o que ele disse das "poesias 'sonhadas'" de Pessoa numa carta de 3 de Fevereiro de 1913: "'Entre os seus versos correm nuvens', e essas nuvens é que encerram a beleza máxima"

O Amigo como Esse Que a Falar Amamos

Por MÁRIO SANTOS

Sábado, 13 de Abril de 2002

As cartas de Pessoa para Sá-Carneiro perderam-se na sua quase totalidade. São conhecidas apenas quatro, das quais uma que será só um esboço, outra que não terá sido enviada e uma terceira que não chegou a ser lida pelo destinatário, uma vez que foi escrita no próprio dia do seu suicídio. É a primeira vez que se reúnem num único volume "todas as cartas e postais", documentos novamente fixados a partir dos originais conservados na "arca" pessoana e novamente anotados.

O tema foi lançado por Pessoa (o que não surpreende em quem sabia que no prazer da glória futura só a glória é que é póstuma), mas só conhecemos a reacção de Sá-Carneiro, numa carta de 20 de Julho de 1914: "Você tem razão, que novidade literária sensacional o aparecimento em 1970 da Correspondência inédita de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro - publicada e anotada por... (perturbador mistério!)". Atrevendo-me a contrariar o virtuoso escrúpulo académico de Óscar Lopes ("Mário de Sá-Carneiro ou a aposta contra Cesário", conferência de 1991 coligida em "A Busca de Sentido", ed. Caminho), eu diria que não erraram muito, na verdade, os de "Orpheu", nesta sua semi-irónica profecia. Em 1958 e 1959 a Ática publicou as primeiras "Cartas a Fernando Pessoa" do poeta de "Indícios de Oiro", em dois volumes prefaciados por Urbano Tavares Rodrigues e com apêndices e notas de Helena Cidade Moura; e em 1980 aparecia, pela mão de Arnaldo Saraiva, um volume de "Correspondência Inédita de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa" (ed. Centro de Estudos Pessoanos, Porto). As 115 cartas publicadas pela Ática e os 102 textos epistolares (uma vez que se trata também de postais e até de telegramas) revelados por A. Saraiva surgem agora reunidos em "Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa", um volume organizado e anotado por Manuela Parreira da Silva (que, recorde-se, organizara já, também para a Assírio & Alvim, a edição sistemática de toda a correspondência de Pessoa).

Não sendo, portanto, inédita a correspondência agora reunida, pode talvez perguntar-se se esta nova edição continua sendo uma "novidade literária sensacional". É certo que o essencial deste conjunto epistolar é conhecido desde há mais de 40 anos e tem já, de resto, uma longa tradição de recepção crítica. Mas, por outro lado, os inéditos editados por Arnaldo Saraiva não estavam propriamente muito acessíveis, ao contrário dos volumes da Ática, que têm conhecido sucessivas reedições. Acrescendo que é a primeira vez que se reúnem num único volume "todas as cartas e postais" que Sá-Carneiro enviou a Pessoa desde a sua ida para Paris, em Outubro de 1912, até ao seu suicídio, em 26 de Abril de 1916, documentos novamente fixados a partir dos originais conservados na "arca" pessoana e novamente anotados, a resposta àquela pergunta não pode talvez ser senão positiva (tendo pelo menos em atenção os potenciais novos leitores que pode vir a cativar). Quanto à adjectivação da "novidade", cumpre-nos dizer que nos parece que o "estranho caso" Sá-Carneiro está para durar, apesar de, ou sobretudo após, a leitura incontornável que Fernando Cabral Martins fez em "O Modernismo em Mário de Sá-Carneiro" (Estampa, 2ª ed. em 1997). Admitindo agora o caso singularíssimo da amizade mítica que uniu os dois poetas maiores do modernismo português (David Mourão-Ferreira falou em Ícaro e Dédalo, Eduardo Lourenço em Castor e Polux), só é pena que, estando já publicadas cartas do poeta a outros destinatários e havendo muitas outras inéditas, não tenha surgido ainda a hora em que veremos reunida toda a correspondência de Sá-Carneiro. Mesmo sabendo que a verdadeira última carta que o "dúbio mascarado" deixou a Pessoa no quarto de hotel em que se suicidou jamais será encontrada. Perturbador mistério.

No posfácio, Manuela Parreira da Silva propõe (mas não exclusivamente, claro) a leitura desta correspondência "como uma espécie de romance espistolar, com um final infeliz...". A proposta não é nova, já que, logo em 1960, numa recensão à primeira edição da Ática, Pierre Hourcade referia-se-lhe como podendo ser "a história de um suicida" (ou de um suicídio...). Como se sabe, as cartas de Pessoa para Sá-Carneiro perderam-se na sua quase totalidade. São conhecidas apenas quatro, das quais uma que será só um esboço, outra que não terá sido enviada e uma terceira que não chegou a ser lida pelo destinatário, uma vez que foi escrita no próprio dia do seu suicídio (em 1918, Pessoa ainda tentava em vão, em carta dirigida ao gerente do hotel parisiense onde Sá-Carneiro se suicidou, recuperar o espólio aí cativo como penhor das dívidas deixadas pelo poeta, e onde é suposto estivessem tais cartas e outros inéditos). Mas, sob este aspecto (e para além da perda óbvia em termos históricos e literários), pode dizer-se que a ausência das respostas do interlocutor, apenas audível intermitente e indirectamente, de forma especular, favorece o "romance", especialmente no que ele tem de "final infeliz".

Haverá até, nesta ausência, uma espécie de "(in)justiça poética". Pessoa escreveu, provavelmente em 1930: "Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obter alguém da humanidade." Anunciado naquela mítica (?) carta de 31 de Março de 1916 (que começa assim: "A menos dum milagre na próxima segunda-feira 3 (ou mesmo na véspera), o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo"...), o verdadeiro "mito" da geração de "Orpheu" é o poeta de "Dispersão". E na sua criação Pessoa desempenhou astralmente o papel que, afinal, lhe tinha sido atribuído. Lembre-se o início famoso do texto com que Pessoa apresenta, na revista "Athena" em 1924, os "últimos poemas" de Sá-Carneiro: "Morre jovem o que os Deuses amam", e um seu belíssimo e pungente poema de 1934: "Hoje, falho de ti, sou dois a sós./(...)/Éramos como um diálogo numa alma./(...)/Porque há em nós, por mais que consigamos/Ser nós mesmos a sós sem nostalgia,/Um desejo de termos companhia -/O amigo como esse que a falar amamos." No prefácio ao livro "A Questão Estética em Mário de Sá-Carneiro", de Ana Nascimento Piedade (ed. Universidade Aberta, 1994), Eduardo Lourenço fazia notar apenas isto: "O círculo dos adoradores de Sá-Carneiro é, sem dúvida, mais restrito que o de Pessoa, mas paradoxalmente, sobretudo hoje, após o longo reino do criador dos heterónimos, mais fervoroso. Ou antes, mais intenso, por menos corroído por uma exegese que acabou por se tornar no seu próprio objecto. Tudo se passa como se o fervor por Sá-Carneiro tenha passado de adepto a adepto como numa seita. Talvez porque a sua exegese deixa o crítico e o simples leitor mais desamparado que no caso de Pessoa." Nessa "seita" destacam-se os surrealistas: "Houve centro? E a havê-lo não seria esse Magnífico Sá-Carneiro de que todos se serviram e perante o qual Pessoa perde todas as 'pessoas' porque Sá-Carneiro é o seu assassino?", perguntava António Maria Lisboa; e Cesariny: "Ora este foi dos tais a quem não deram passaporte/de forma que embarcou clandestino/(...)/herói à sua maneira recusou-se/a beber o pátrio mijo/deu a mão ao Antero, foi-se, e pronto,/desembarcou como tinha embarcado//Sem Jeito Para o Negócio". Surrealistas que foram dos poucos a recusar uma leitura meramente instrumental da obra de Sá-Carneiro. Instrumental não exactamente no sentido em que Herberto Helder disse que a prosa do autor de "Céu em Fogo" valia como "adestramento instrumental" para a sua poesia (o que se poderia dizer também das cartas), mas no sentido de que fala Fernando Cabral Martins, ou seja, de uma espécie de degradação do mito, e da obra, a uma só "dimensão psicológica". Citem-se como exemplos desta tentação continuada João Pinto de Figueiredo em "A Morte de Mário de Sá-Carneiro" (Dom Quixote, 1983), que praticamente reduz a obra a um "recurso" a que o "pobre menino ideal" deitou inutilmente mão para vencer a orfandade, de mãe e do mundo; e Maria José de Lencastre, que, em "O Eu e o Outro" (Quetzal, 1992), remete as cartas para a "esfera do colóquio de um paciente com o seu analista ou com o seu terapeuta" (embora aqui numa leitura mais estruturada e assumidamente psicanalítica que se estende também à poesia e à ficção do autor).

Numa crónica recente no suplemento "Babelia" do diário espanhol "El País", Enrique Vila-Matas citava Kafka, Pessoa e Lobo Antunes, entre outros "enfermos de literatura" (e recorde-se que Pessoa já diagnosticara aquele a quem os deuses "tiveram muito amor" como "doente da sua ficção"). É estranho que o escritor catalão se não tenha lembrado de Sá-Carneiro, pois está tudo nesta carta de 21 de Janeiro de 1913: "É curiosa esta função do cérebro-escritor. De tudo quanto em si descobre e pensa faz novelas ou poesias. Mais feliz que os outros para quem as horas de meditação sobre si próprio são horas perdidas. Para nós, elas são ganhas. Menos nobres só. O desperdício é nobre. O interesse vil. E o artista é mais interesseiro do que o judeu. Tudo - cenários, pensamentos, dores, alegrias - se lhe transforma em matéria de arte!... Ganha sempre!" Finalmente, desta correspondência fascinante que, como toda a obra de Sá-Carneiro, continuará aberta ao desamparo do leitor nas múltiplas abordagens que admite (históricas, literárias, biográficas, psicológicas, anedóticas...), diga-se o que ele disse das "poesias 'sonhadas'" de Pessoa numa carta de 3 de Fevereiro de 1913: "'Entre os seus versos correm nuvens', e essas nuvens é que encerram a beleza máxima"

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