Suplemento Mil Folhas

05-04-2003
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O Instante É Imortal

Sábado, 22 de Março de 2003

%Eduardo Prado Coelho

É extremamente curioso quando, por efeitos do que poderíamos chamar o acaso (mas, escreve Fernando Cabral Martins, "a ideia do acaso abolido não é alucinação mas experiência quotidiana. A astrologia é uma 'reduccio ad absurdum' desta experiência"), dois livros se cruzam sobre a nossa secretária. Vêm de lugares diferentes, de corpos diferentes, de experiências diferentes, têm capas diferentes, títulos diferentes, autores diferentes, e por isso olham-se desconfiados, recuam um pouco, rosnam como dois cães que se encontram presos por trelas, mas depois aproximam-se, estabelecem alguma cumplicidade, para logo se afastarem e desaparecerem, levados por destinos diferentes. Mas faz sentido tentar lê-los a partir de um mesmo ângulo.

Escolho este começo algo insólito, recorrendo mesmo a uma parábola canina, na convicção de que, de certo modo, marcando estes desnivelamentos discursivos, com deliberada perspectiva irónica, entro um pouco no espírito destes dois textos: o livro de João Camilo, intitulado "O Grande Frémito da Paixão", e publicado pela Fenda, e o de Fernando Cabral Martins, com o título algo inesperado de "O Deceptista", e que pertence às edições "&etc" (assinale-se a capa e um "hors-texte" de Carlos Ferreiro).

Trata-se de livros que têm em comum serem constituídos por monólogos interiores (embora não exclusivamente), mas que, no caso de João Camilo, dão origem a textos de considerável dimensão, por vezes subdivididos, e no caso de Fernando Cabral Martins, tendem a ser mais curtos, podendo em certos casos surgirem como eventuais "poemas em prosa". É óbvio que Rimbaud está presente nos dois, mais explicitamente em João Camilo. E este tende a ser por vezes mais narrativo, utilizando verdadeiros diálogos, e multiplicando personagens. Mas há sempre algo que contém estes textos no limiar do conto. Eles oscilam, é verdade, mas nunca assumem a cadência metódica dos contos de formato tradicional. São sempre reflexões sobre a vida, por vezes capazes de enunciarem máximas de valor universal, que só não são universais porque aparecem corroídas por uma espécie de chuva miúda, às vezes quase imperceptível, um toque de humor subliminar, um "desastramento" à Jacques Tati, que deixa imperturbável a linha corrida do texto, mas suscita alguns arrepios e torvelinhos. Há um verdadeiro prazer na leitura destes textos, que evidenciam um domínio extremamente seguro das técnicas literárias, que utilizam o elenco mais diversificado de dispositivos (por exemplo: o eu pode ser apresentado em Cabral Martins através de alguém que diz "tu" e se vai dirigindo a um "eu" aparentemente minimizado). Mas é a fórmula de João Camilo que talvez diga melhor o estranho funcionamento destes monólogos interiores: "Tudo terá um fim. O monólogo interior torna-se monótono e absurdo, o homem perde-se nos seus próprios passos, pessoais meandros, até não se reconhecer, até descobrir que fora tudo sucessivamente inventado para mascarar o nada, para prosseguir." Temos aqui uma chave importante. Cada um destes monólogos interiores como que se emancipa da "vida interior" no seu modelo de coerência psicológica, e torna-se subitamente exterior a si, é um corredor por onde as palavras avançam já fora de uma qualquer consciência, e avançam na convicção de que caminham sobre o vazio (o vazio do real, o vazio do social, o vazio de Deus, o vazio do próprio sentido), e é aqui que se justifica falar em "o deceptista". Mas esta falha de qualquer fundamento tem como contrapartida uma necessidade de não parar, o desejo de prosseguir como única forma de manter o vazio escondido, dissimulado, submerso, face à evidência cómica (porque há nisto um imenso riso murmurado) do mundo.

Fernando Cabral Martins explica estas coisas de uma forma admirável. Mostra como o monólogo interior não é um monólogo interior da consciência, mas um monólogo interior da voz. O que altera tudo. No texto "Aileron" escreve: "... precisava de falar alto para tentar perceber melhor o que pensava. Falar alto tornava mais lento o pensar, assim talvez o pudesse acompanhar com a devida atribuição de sentido. Falar tornava as frases coisas que o ar recebia e a que dava uma realidade maior." Mas é sobretudo no texto "Mudança" que as coisas se tornam mais claras: "Um dia comecei a falar e feriu-me o som da minha voz. Não era meu o som da minha voz. Estranhei, primeiro, que saísse da minha garganta de modo que os outros a ouvissem. Segundo, que chegasse até mim na necessária distorção que sofre para quem fala consigo, nas tramas interiores da cabeça. Terceiro, que essa voz transportasse alguma coisa, que quisesse dizer a alguém alguma coisa, que quisesse fazer avançar para algum lugar a máquina gigantesca que constituem dois homens quando o tempo se acumula nas suas veias. Mais a sua voz, as suas vozes. Quarto, que tivesse aquele som por mim já tantas vezes ouvido, mas na transição para uma voz de treva, para a mudez. A voz que fala suspensa, mortal, gerada pela morte, eco de si mesma. Ao longe, a minha voz. Uma palavra ouvida que passa, arrastada, dissolvida na água. Os olhos e a voz não ligam, surdos, cega. Conheço os homens que vejo e os homens que ouço, as mulheres que se sentam ao meu lado, os arranjos florais, o sol que se ergue e despede. Mas não a minha voz, que não é minha. É uma pequena distância, uma incomodidade passageira. Porém muda a forma de ver e de ouvir."

Ora é precisamente isso que me apetece sublinhar: tanto os textos de Fernando Cabral Martins como os de João Camilo aparecem formatados por esta pequena distância, esta incomodidade passageira, que muda a forma de ver e ouvir, e que ora se define como um fio de humor envolvente e ácido, ora nos surge como um angústia desmedida mas em vias de cicatrização. "A cada segundo me desfaço como uma voz na imensidade imóvel. E recomeço, como se outro falasse comigo dentro de mim, e a quem ainda não me habituei."

É claro que nem sempre as inclinações são convergentes. Em João Camilo, predomina a força romântica, "o grande frémito da paixão", e a tentativa sempre deceptiva de construir o Grande Amor, mesmo que esse grande amor seja produto da imortalidade do instante, e se configure como mera virtualidade sobreposta a um entrevisto triângulo de pele branca na cintura ou um esvoaçante movimento de cabelos adolescentes. Deceptivo, porque "ninguém parece disposto a colaborar na realização fabulosa do mito que é o encontro amoroso".

Em Fernando Cabral Martins, a inclinação vai mais no sentido do surrealismo que irrompe das enumerações caóticas (aquelas que apenas são caóticas para quem ainda não descobriu a lógica que as produz) e que por vezes esta mistura de sr. Palomar e Jacques Tati (e é necessário sublinhar a presença muito intensa do cinema nestes dois livros, que em muitos casos estão perto do que Frederic Jameson definiu como "a lógica do vídeo") passa também por Michaux e algumas das suas personagens poéticas. Em Cabral Martins, a sintaxe é mais do tipo paratáctico, com predominância do "e". Em João Camilo existe uma leve inflexão no sentido da hipotaxe, levando à criação de linguagens sobre linguagens, na ilusão sempre suspensa de encontrar um patamar reflexivo estável. Mas a linha de fuga de Cabral Martins é de tipo pontual: é a luz, que tem uma presença central nos seus textos ("a tua luz na testa", "do calor desse contacto subiu um fio de luz, e eu pensei que era um recado que de algures na tua cabeça se repercutia para o sinal de presença que eu sou") e é sempre o que se espera nesta geometria de encontros e desencontros repetidos: "... uma palavra que fizesse luz." E da luz passa-se para o instante imortal: "O universo é imortal e pelo menos é imortal aquilo em que o universo se desfará e é maior que ele, ou o instante é imortal precisamente por ter já passado, furo por onde a luz cai iluminando o mundo."

O Instante É Imortal

Sábado, 22 de Março de 2003

%Eduardo Prado Coelho

É extremamente curioso quando, por efeitos do que poderíamos chamar o acaso (mas, escreve Fernando Cabral Martins, "a ideia do acaso abolido não é alucinação mas experiência quotidiana. A astrologia é uma 'reduccio ad absurdum' desta experiência"), dois livros se cruzam sobre a nossa secretária. Vêm de lugares diferentes, de corpos diferentes, de experiências diferentes, têm capas diferentes, títulos diferentes, autores diferentes, e por isso olham-se desconfiados, recuam um pouco, rosnam como dois cães que se encontram presos por trelas, mas depois aproximam-se, estabelecem alguma cumplicidade, para logo se afastarem e desaparecerem, levados por destinos diferentes. Mas faz sentido tentar lê-los a partir de um mesmo ângulo.

Escolho este começo algo insólito, recorrendo mesmo a uma parábola canina, na convicção de que, de certo modo, marcando estes desnivelamentos discursivos, com deliberada perspectiva irónica, entro um pouco no espírito destes dois textos: o livro de João Camilo, intitulado "O Grande Frémito da Paixão", e publicado pela Fenda, e o de Fernando Cabral Martins, com o título algo inesperado de "O Deceptista", e que pertence às edições "&etc" (assinale-se a capa e um "hors-texte" de Carlos Ferreiro).

Trata-se de livros que têm em comum serem constituídos por monólogos interiores (embora não exclusivamente), mas que, no caso de João Camilo, dão origem a textos de considerável dimensão, por vezes subdivididos, e no caso de Fernando Cabral Martins, tendem a ser mais curtos, podendo em certos casos surgirem como eventuais "poemas em prosa". É óbvio que Rimbaud está presente nos dois, mais explicitamente em João Camilo. E este tende a ser por vezes mais narrativo, utilizando verdadeiros diálogos, e multiplicando personagens. Mas há sempre algo que contém estes textos no limiar do conto. Eles oscilam, é verdade, mas nunca assumem a cadência metódica dos contos de formato tradicional. São sempre reflexões sobre a vida, por vezes capazes de enunciarem máximas de valor universal, que só não são universais porque aparecem corroídas por uma espécie de chuva miúda, às vezes quase imperceptível, um toque de humor subliminar, um "desastramento" à Jacques Tati, que deixa imperturbável a linha corrida do texto, mas suscita alguns arrepios e torvelinhos. Há um verdadeiro prazer na leitura destes textos, que evidenciam um domínio extremamente seguro das técnicas literárias, que utilizam o elenco mais diversificado de dispositivos (por exemplo: o eu pode ser apresentado em Cabral Martins através de alguém que diz "tu" e se vai dirigindo a um "eu" aparentemente minimizado). Mas é a fórmula de João Camilo que talvez diga melhor o estranho funcionamento destes monólogos interiores: "Tudo terá um fim. O monólogo interior torna-se monótono e absurdo, o homem perde-se nos seus próprios passos, pessoais meandros, até não se reconhecer, até descobrir que fora tudo sucessivamente inventado para mascarar o nada, para prosseguir." Temos aqui uma chave importante. Cada um destes monólogos interiores como que se emancipa da "vida interior" no seu modelo de coerência psicológica, e torna-se subitamente exterior a si, é um corredor por onde as palavras avançam já fora de uma qualquer consciência, e avançam na convicção de que caminham sobre o vazio (o vazio do real, o vazio do social, o vazio de Deus, o vazio do próprio sentido), e é aqui que se justifica falar em "o deceptista". Mas esta falha de qualquer fundamento tem como contrapartida uma necessidade de não parar, o desejo de prosseguir como única forma de manter o vazio escondido, dissimulado, submerso, face à evidência cómica (porque há nisto um imenso riso murmurado) do mundo.

Fernando Cabral Martins explica estas coisas de uma forma admirável. Mostra como o monólogo interior não é um monólogo interior da consciência, mas um monólogo interior da voz. O que altera tudo. No texto "Aileron" escreve: "... precisava de falar alto para tentar perceber melhor o que pensava. Falar alto tornava mais lento o pensar, assim talvez o pudesse acompanhar com a devida atribuição de sentido. Falar tornava as frases coisas que o ar recebia e a que dava uma realidade maior." Mas é sobretudo no texto "Mudança" que as coisas se tornam mais claras: "Um dia comecei a falar e feriu-me o som da minha voz. Não era meu o som da minha voz. Estranhei, primeiro, que saísse da minha garganta de modo que os outros a ouvissem. Segundo, que chegasse até mim na necessária distorção que sofre para quem fala consigo, nas tramas interiores da cabeça. Terceiro, que essa voz transportasse alguma coisa, que quisesse dizer a alguém alguma coisa, que quisesse fazer avançar para algum lugar a máquina gigantesca que constituem dois homens quando o tempo se acumula nas suas veias. Mais a sua voz, as suas vozes. Quarto, que tivesse aquele som por mim já tantas vezes ouvido, mas na transição para uma voz de treva, para a mudez. A voz que fala suspensa, mortal, gerada pela morte, eco de si mesma. Ao longe, a minha voz. Uma palavra ouvida que passa, arrastada, dissolvida na água. Os olhos e a voz não ligam, surdos, cega. Conheço os homens que vejo e os homens que ouço, as mulheres que se sentam ao meu lado, os arranjos florais, o sol que se ergue e despede. Mas não a minha voz, que não é minha. É uma pequena distância, uma incomodidade passageira. Porém muda a forma de ver e de ouvir."

Ora é precisamente isso que me apetece sublinhar: tanto os textos de Fernando Cabral Martins como os de João Camilo aparecem formatados por esta pequena distância, esta incomodidade passageira, que muda a forma de ver e ouvir, e que ora se define como um fio de humor envolvente e ácido, ora nos surge como um angústia desmedida mas em vias de cicatrização. "A cada segundo me desfaço como uma voz na imensidade imóvel. E recomeço, como se outro falasse comigo dentro de mim, e a quem ainda não me habituei."

É claro que nem sempre as inclinações são convergentes. Em João Camilo, predomina a força romântica, "o grande frémito da paixão", e a tentativa sempre deceptiva de construir o Grande Amor, mesmo que esse grande amor seja produto da imortalidade do instante, e se configure como mera virtualidade sobreposta a um entrevisto triângulo de pele branca na cintura ou um esvoaçante movimento de cabelos adolescentes. Deceptivo, porque "ninguém parece disposto a colaborar na realização fabulosa do mito que é o encontro amoroso".

Em Fernando Cabral Martins, a inclinação vai mais no sentido do surrealismo que irrompe das enumerações caóticas (aquelas que apenas são caóticas para quem ainda não descobriu a lógica que as produz) e que por vezes esta mistura de sr. Palomar e Jacques Tati (e é necessário sublinhar a presença muito intensa do cinema nestes dois livros, que em muitos casos estão perto do que Frederic Jameson definiu como "a lógica do vídeo") passa também por Michaux e algumas das suas personagens poéticas. Em Cabral Martins, a sintaxe é mais do tipo paratáctico, com predominância do "e". Em João Camilo existe uma leve inflexão no sentido da hipotaxe, levando à criação de linguagens sobre linguagens, na ilusão sempre suspensa de encontrar um patamar reflexivo estável. Mas a linha de fuga de Cabral Martins é de tipo pontual: é a luz, que tem uma presença central nos seus textos ("a tua luz na testa", "do calor desse contacto subiu um fio de luz, e eu pensei que era um recado que de algures na tua cabeça se repercutia para o sinal de presença que eu sou") e é sempre o que se espera nesta geometria de encontros e desencontros repetidos: "... uma palavra que fizesse luz." E da luz passa-se para o instante imortal: "O universo é imortal e pelo menos é imortal aquilo em que o universo se desfará e é maior que ele, ou o instante é imortal precisamente por ter já passado, furo por onde a luz cai iluminando o mundo."

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