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01-09-2002
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9/3/2002

Em casa com Ferro

Filomena e Eduardo vivem num andar de quatro assoalhadas na Travessa dos Ferreiros, alugado a João Salgueiro. Com os filhos fora, o sharpei Gastão é a companhia do casal.

Texto de Rui Cardoso

Fotografias de Rui Ochôa Quando me aproximo da casa de Ferro Rodrigues, os ponteiros do relógio caminham para as oito da noite. Deveriam marcar sete e meia, mas atravessar a cidade àquela hora revelou-se um inferno. Opto por estacionar na Infante Santo e subir as escadas, entre os painéis de azulejos de Maria Keil e os prédios assentes em colunas projectados por Alberto Pessoa e Hernâni Gandra. É um dos rasgos da arquitectura de finais dos anos 50 e não resisto a pensar: se Lisboa fosse toda assim… Quando me aproximo da casa de Ferro Rodrigues, os ponteiros do relógio caminham para as oito da noite. Deveriam marcar sete e meia, mas atravessar a cidade àquela hora revelou-se um inferno. Opto por estacionar na Infante Santo e subir as escadas, entre os painéis de azulejos de Maria Keil e os prédios assentes em colunas projectados por Alberto Pessoa e Hernâni Gandra. É um dos rasgos da arquitectura de finais dos anos 50 e não resisto a pensar: se Lisboa fosse toda assim… Na casa da Travessa dos Ferreiros a televisão está ligada e anuncia a morte de Savimbi. Feitos os cumprimentos da praxe, o líder do PS pergunta: «É importante para as fotos ficar de gravata? Se não for…» Sem esperar pela resposta, começa a desfazer o nó. Surge Filomena, sua mulher, que concorda com a operação mas o compele a mudar de pulover: «Já que é para a fotografia…» O cão Gastão vai travando conhecimento com os recém-chegados da única maneira que sabe: cheirando-os e pedindo festas. Lembra um boxer mas, na realidade, é de ascendência oriental. O Rui Ochôa, que vai ensaiando a luz e as máquinas, comenta: «Tem graça! O Cavaco tinha um igual mas acho que acabou por morrer.» Os olhos risonhos de Ferro Rodrigues deixam antever uma piada mas contém-se e a única coisa que lhe sai é um lacónico «Pois…» Um Júlio Resende, que lhe foi oferecido no Porto, é a única nota discordante numa sala tendencialmente despojada Nos tempos que correm, um político com sentido de humor soa quase a contradição nos termos, mas este tem a quem sair. O seu pai, Eduardo Ferro, além de publicar diversos livros e peças de teatro, foi um dos guionistas do programa radiofónico Parodiantes de Lisboa que durante décadas teve uma legião de ouvintes fiéis. Esta veia humorística andou algo ausente no debate televisivo com Durão Barroso mas poderia ter sido uma arma devastadora. Nos tempos que correm, um político com sentido de humor soa quase a contradição nos termos, mas este tem a quem sair. O seu pai, Eduardo Ferro, além de publicar diversos livros e peças de teatro, foi um dos guionistas do programa radiofónico Parodiantes de Lisboa que durante décadas teve uma legião de ouvintes fiéis. Esta veia humorística andou algo ausente no debate televisivo com Durão Barroso mas poderia ter sido uma arma devastadora. A presença do cachorro resulta de um negócio em família. Rita Ferro deixou-o aqui mas levou o computador. «Com o que o bicho lhe deve ter custado, há-de ter sido ela por ela», diz o pai. Privado do correio electrónico e do acesso aos serviços informativos «on-line» em casa, vinga-se: «O cão é que já não sai de cá.» Quando lhe perguntamos a raça, hesita e chama: «Ó Mena! Lembras-te da marca do cão?» Consultado o respectivo boletim de vacinas fica-se, finalmente, a saber que se trata de um sharpei. Ilda Aguilar, 84 anos, há ano e meio que vive com a filha e o genro. «A solidariedade social começa em casa...», explica Eduardo Entretanto, Filomena, que acompanhava a conversa, pede licença para ir ver como estava a sua mãe. Ilda Aguilar, agora com 84 anos, vive há ano e meio com a filha e o genro. Ferro ri-se: «Estão a ver? A solidariedade social começa em casa…» Entretanto, Filomena, que acompanhava a conversa, pede licença para ir ver como estava a sua mãe. Ilda Aguilar, agora com 84 anos, vive há ano e meio com a filha e o genro. Ferro ri-se: «Estão a ver? A solidariedade social começa em casa…» A casa, essa, não é propriamente grande. Estas quatro assoalhadas já abrigaram Eduardo, Filomena, Sofia (a filha mais velha), bem como os gémeos Rita e João. Rita saiu de casa dos pais «quando começou a trabalhar» (na televisão). Hoje está na SIC Notícias e vive com o seu colega, Daniel Cruzeiro, filho de Celso Cruzeiro, um dos líderes da greve dos estudantes de Coimbra, em 1969. Com João, as coisas passaram-se doutra forma. «Foi saindo aos poucos», estando agora a doutorar-se nos Estados Unidos, em Harvard. Acompanha-o a namorada, filha de um adversário político do pai: nada menos que Dias Loureiro. Romeu e Julieta? Ferro conta que o filho, quando confrontado, na brincadeira, com o apelido da namorada se limitou a comentar: «É a Joana e ponto final.» A verdade é que o casal Ferro fez parte da longa lista de convidados do recente casamento da filha mais velha de Loureiro. O apartamento da Rua dos Ferreiros está alugado desde 1973. Filomena era então secretária do director do GEBEI (Gabinete de Estudos Básicos de Economia Industrial), João Cravinho. Quando Eduardo, acabado de concluir o curso, lá chegou, apaixonaram-se. Uma já era divorciada e o outro não tardou a seguir-lhe as pisadas. Quando começaram à procura de um sítio para viver, vieram parar a este prédio, na altura acabado de construir. A renda era de quatro contos. Sobravam 200$00 do ordenado de Filomena, mais os sete contos que Ferro ganhava. A vantagem é que dava para irem a pé para o emprego e até para virem almoçar a casa. Outros tempos… Mena e Eduardo vivem juntos desde 73 mas só foram ao registo em 84. Os filhos só souberam depois e ficaram furiosos O senhorio era o pai de João Salgueiro. «Gostou muito de nós. O pior foi quando viu nos papéis que vivíamos juntos sem sermos casados», lembra Filomena Aguilar. Foi um sarilho que só se desfez graças aos bons ofícios de Cravinho que persuadiu o seu amigo Salgueiro a interceder junto do pai. O senhorio era o pai de João Salgueiro. «Gostou muito de nós. O pior foi quando viu nos papéis que vivíamos juntos sem sermos casados», lembra Filomena Aguilar. Foi um sarilho que só se desfez graças aos bons ofícios de Cravinho que persuadiu o seu amigo Salgueiro a interceder junto do pai. Olhando para esta casa, vê-se que a família, e sobretudo Ferro, não mostram grande apego aos bens materiais. Uns dias antes, ao conversar com o presidente do Inatel, Eduardo Graça, com o objectivo de evocar os tempos movimentados da associação de estudantes de Económicas em 1969/72, já este tinha alertado para a maneira de ser do seu amigo: «Não conheço ninguém que ligue tão pouco a casas, carros ou dinheiro.» O visado não nega: «Não se pode ser agarrado ao que não se tem. Sempre vivemos os dois unicamente dos nossos salários de quadros da administração pública.» Isso mesmo se nota na sala de estar, centro da casa e cenário desta conversa. Ao canto, um sofá meio de esguelha, o favorito do entrevistado: «Permite-me deitar um olho à televisão, enquanto estou a ler ou a conversar.» Parece a altura ideal para uma pequena provocação: «Então e não quer espreitar o seu Sporting?» (o clube de Alvalade deslocava-se nessa noite a Guimarães). «Só uma espreitadela», condescende ele. Depois de verificar que o marcador continua em branco, muda de canal e explica: «Não consigo assistir a jogos aos bocados. Prefiro não ver. Mas confesso que há partidas em que me enervo tanto, que começo a fazer zapping mal o adversário passa a linha do meio-campo.» Numa sala tendencialmente tão despojada, a única nota discordante é dada por um quadro de Júlio Resende pendurado junto à porta. Parece ser o preferido, tendo sido oferecido na Cooperativa dos Pedreiros, durante uma visita ao Porto. Numa sala tendencialmente tão despojada, a única nota discordante é dada por um quadro de Júlio Resende pendurado junto à porta. Parece ser o preferido, tendo sido oferecido na Cooperativa dos Pedreiros, durante uma visita ao Porto. No grande móvel de prateleiras que cobre uma das paredes, por cima da aparelhagem há uma fotografia em destaque. Foi oferecida pelo nosso colega Luiz Carvalho. Tirada em 1978 na Avenida da Liberdade, mostra um casal com os filhos ao colo a ver passar o desfile comemorativo do 25 de Abril. «Não se percebe, porque é a preto e branco», adianta Filomena. «Mas a graça disto é que os gémeos estavam vestidos com uns fatos de macaco cor-de-laranja, quase florescente, trazidos lá de fora por uns amigos nossos.» Rita, ao colo da mãe, come sossegadamente uma bolacha, enquanto João parece olhar espantado para o pai, talvez perguntando a si próprio com quem estará ele zangado para estar de punho no ar. «E os olhinhos que se vêem a espreitar na parte debaixo da imagem são da Sofia», explica Filomena. Não admira, por isso, que a conversa derive para os tempos do Movimento de Esquerda Socialista (MES), essa originalidade do pós-25 de Abril, mais radical que o PCP mas ainda menos disciplinada que o PS. «Tão original, que foi o único partido a ter decidido auto-extinguir-se», lembram os dois a rir. O «enterro» do MES foi em 1981 mas, de então para cá, têm-se realizado alguns jantares comemorativos, cada vez mais participados. Vão os antigos militantes, levam os filhos e até gente que «nunca foi do MES mas deve achar graça aparecer». O caso mais visível foi o da comemoração dos 25 anos do 25 de Abril. Para um bem-humorado Ferro, «é o único partido que continua a crescer mesmo depois de morto». Ao canto da sala está o sofá favorito de Eduardo: «Permite-me deitar um olho à televisão enquanto estou a ler ou a conversar» Na televisão continuam a desfilar as notícias do dia. José Pedro Pinto, assessor do secretário-geral, faz zappings constantes. Aparecem imagens da campanha do PS e da visita a uma escola de Setúbal. A conversa pára. No ecrã aparece a imagem do próprio José Pedro, a controlar as operações. «O que um tipo faz para ganhar a vida», comenta Ferro. «A vida, não. As eleições!», responde o outro, arrancando uma gargalhada geral. Na televisão continuam a desfilar as notícias do dia. José Pedro Pinto, assessor do secretário-geral, faz zappings constantes. Aparecem imagens da campanha do PS e da visita a uma escola de Setúbal. A conversa pára. No ecrã aparece a imagem do próprio José Pedro, a controlar as operações. «O que um tipo faz para ganhar a vida», comenta Ferro. «A vida, não. As eleições!», responde o outro, arrancando uma gargalhada geral. Nesse momento toca o telemóvel. Nem de propósito, num dia marcado pelo «puxar de orelhas» de Jorge Coelho ao PS, por alegada falta de empenho no apoio ao líder. Ferro atende e percebe-se que é o próprio Coelho quem está do outro lado. Há uma rápida troca de impressões que termina com «Vai aparecer a dizer isso nos telejornais? Óptimo. Muito obrigado!» Para o dia seguinte estava marcada a apresentação do programa eleitoral do PS na antiga FIL. Um evento que, como se sabe agora, fez tocar a reunir nas hostes socialistas. O título da primeira página do «Público» e que dizia «Ferro faz apelo lancinante aos que não costumam votar» viria a provocar uma zanga entre o antigo director, Vicente Jorge Silva, apoiante do PS, e o actual, José Manuel Fernandes Feitas mais algumas fotos, a conversa passa a girar em torno da vida do casal. De manhã, Filomena e Eduardo raramente têm tempo para beberem café juntos. Se ele continua fiel ao Carrocel, na esquina da Infante Santo com a Santana à Lapa, ela passou a optar pelo Centro Comercial Arco Íris, perto da dependência da Avenida da República do Ministério da Economia, onde agora trabalha. «Como comecei a trabalhar aos 18 e já vou com 34 anos de serviço, estou a pensar reformar-me para o ano», confidencia Filomena. «Isso é se nós não mudarmos a lei», responde o marido em jeito de provocação. «Ó chefe! Olhe os votos!», diz José Pedro Pinto. Feitas mais algumas fotos, a conversa passa a girar em torno da vida do casal. De manhã, Filomena e Eduardo raramente têm tempo para beberem café juntos. Se ele continua fiel ao Carrocel, na esquina da Infante Santo com a Santana à Lapa, ela passou a optar pelo Centro Comercial Arco Íris, perto da dependência da Avenida da República do Ministério da Economia, onde agora trabalha. «Como comecei a trabalhar aos 18 e já vou com 34 anos de serviço, estou a pensar reformar-me para o ano», confidencia Filomena. «Isso é se nós não mudarmos a lei», responde o marido em jeito de provocação. «Ó chefe! Olhe os votos!», diz José Pedro Pinto. Filomena Aguilar cita o caso de colegas suas e contrapõe: «Há pessoas que chegaram ao limite de idade mas para quem deixar o emprego é um pesadelo. É uma crueldade mandá-las para casa. Talvez pudessem continuar a trabalhar, se calhar menos tempo por semana. Nestas coisas, a lei deveria deixar alguma liberdade às pessoas.» Esta dupla que, como se vê, está longe de concordar em tudo, só se casou, formalmente falando, em 1984. Com o curso de História terminado, Filomena, caso quisesse concorrer ao ensino, poderia ter vantagem em recorrer à lei dos cônjuges. Daí a formalização do casamento. Foi no Registo Civil. Coisa tão rápida e descontraída que a conservadora se enganou e por pouco não casava as testemunhas, ou seja, dois amigos que os acompanhavam: Eduardo Graça e Maria Guilhermina… Os filhos é que, tendo sabido da cerimónia mais tarde e por interpostas pessoas, «ficaram furiosos». Mas, ainda hoje, a data que se comemora «é a do começo do namoro em 1973 e não a do casório». Tão certa como esta comemoração é o almoço da família, de 15 em 15 dias em casa dos pais de Ferro, na Tapada do Mocho, em Oeiras. «Nem sempre se consegue fazer o pleno da tribo, mas tentamos», diz ele. Tão certa como esta comemoração é o almoço da família, de 15 em 15 dias em casa dos pais de Ferro, na Tapada do Mocho, em Oeiras. «Nem sempre se consegue fazer o pleno da tribo, mas tentamos», diz ele. Onde a mesma tribo se torna a juntar é em Agosto, na praia da Altura, a leste de Monte Gordo. Um hábito que ficou de quando os miúdos eram pequenos. O sítio é sossegado e a casa que se habituaram a deixar alugada de um ano para o outro fica rigorosamente a cinco minutos a pé da beira-mar. Mas, como lembra Filomena, este outro Algarve, «tão diferente do turístico», também começa a dar os primeiros sinais de superlotação. Por estranho que pareça, esta família de fãs do Algarve passa os fins-de-semana na zona do litoral com o clima mais diametralmente oposto: Almoçageme, a norte do Cabo da Roca. Começaram por alugar casa nas Azenhas do Mar há mais de dez anos. Mas o espaço era inversamente proporcional à humidade e a migração fez-se para uma pequena vivenda na saída de Almoçageme para a Praia Grande. Depois de muita pressão de Filomena, acabaram, faz ano e meio, por dar um inesperado passo: a aquisição de uma casa, desta vez na orla da aldeia que desce para a Adraga. «E eu que me gabava de ser o único tipo da minha geração que nunca tinha comprado casa», brinca Ferro Rodrigues. Uma das razões do negócio (30 mil contos financiados pela banca por uma casa em segunda mão, com algum quintal e vista sobre o vale da Adraga) foram os netos: «Do lado da Sofia temos uma Carolina e um David. Do lado da Rita vem aí uma Leonor. E o resto ver-se-á.» A conversa caminha para o fim. Tempo para falar, ainda, dos gostos e desgostos do clã Ferro. Como, por exemplo, do primeiro carro da família, um Honda 600 comprado novo em 1973 e trocado, quatro anos depois, por um Fiat 127, quando descobriram que a Sofia e os dois bebés não cabiam no banco de trás. Se o minicarro japonês deixou saudades, a cidade preferida é, para além de Paris, Nova Iorque. Já o centro comercial, se não amado, pelo menos tolerado, é o das Amoreiras. A música do coração é a de Maria João Pires, o que não exclui um eventual desvio na direcção do fado, nomeadamente Camané. Do clube desportivo nem vale a pena falar. Consta que os amigos aliciaram Ferro para comprar lugar cativo no novo Estádio de Alvalade. Coisa para 400 contos e que leva Filomena a virar-se para nós e perguntar: «Já perceberam porque é que só agora é que comprámos casa, não já?» Remexendo nas prateleiras, Ferro Rodrigues descobre um CD. Uma relíquia do tempo em que com outros três amigos fez rádio. O programa começou em 1967, no então Rádio Clube Português, chamava-se «Esquema 4» e passava música popular anglo-americana. Música e algo mais: «Nem queiram saber os textos que dávamos a ler ao locutor de serviço…» Escusado será dizer que nada ia à Censura, pelo que o programa teve o fim que se adivinha. Mais precisamente, não resistiu às eleições de 1969 e ao redobrar de cuidados por parte da máquina de controlo ideológico do regime. Pelo meio houve um episódio curioso. O espaço onde o programa estava integrado foi comprado por Cidália Meireles. Esta engraçou com os moços e deixou-os continuar a ir para o ar. O programa passou a chamar-se «Critério» e Cidália pôs como única condição que só transmitissem música portuguesa. E assim foi: Adriano, Zeca Afonso, Manuel Freire… O CD deve-se à simpatia dos técnicos da estação que conservaram na sua posse as fitas magnéticas com as gravações originais. A foto da capa mostra quatro rapazes à roda de uma mesa: Ludgero Pinto Basto, João Manuel Amorim, António Luís Neto e Eduardo Ferro Rodrigues. Este último, o mais magro e de bigode ralo, seria eleito, três anos mais tarde, presidente da Associação de Estudantes do então Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras. Trinta anos depois, a parada é mais alta e decide-se a nível nacional no próximo dia 17. 29

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Filomena e Eduardo vivem num andar de quatro assoalhadas na Travessa dos Ferreiros, alugado a João Salgueiro. Com os filhos fora, o sharpei Gastão é a companhia do casal.

Texto de Rui Cardoso

Fotografias de Rui Ochôa Quando me aproximo da casa de Ferro Rodrigues, os ponteiros do relógio caminham para as oito da noite. Deveriam marcar sete e meia, mas atravessar a cidade àquela hora revelou-se um inferno. Opto por estacionar na Infante Santo e subir as escadas, entre os painéis de azulejos de Maria Keil e os prédios assentes em colunas projectados por Alberto Pessoa e Hernâni Gandra. É um dos rasgos da arquitectura de finais dos anos 50 e não resisto a pensar: se Lisboa fosse toda assim… Quando me aproximo da casa de Ferro Rodrigues, os ponteiros do relógio caminham para as oito da noite. Deveriam marcar sete e meia, mas atravessar a cidade àquela hora revelou-se um inferno. Opto por estacionar na Infante Santo e subir as escadas, entre os painéis de azulejos de Maria Keil e os prédios assentes em colunas projectados por Alberto Pessoa e Hernâni Gandra. É um dos rasgos da arquitectura de finais dos anos 50 e não resisto a pensar: se Lisboa fosse toda assim… Na casa da Travessa dos Ferreiros a televisão está ligada e anuncia a morte de Savimbi. Feitos os cumprimentos da praxe, o líder do PS pergunta: «É importante para as fotos ficar de gravata? Se não for…» Sem esperar pela resposta, começa a desfazer o nó. Surge Filomena, sua mulher, que concorda com a operação mas o compele a mudar de pulover: «Já que é para a fotografia…» O cão Gastão vai travando conhecimento com os recém-chegados da única maneira que sabe: cheirando-os e pedindo festas. Lembra um boxer mas, na realidade, é de ascendência oriental. O Rui Ochôa, que vai ensaiando a luz e as máquinas, comenta: «Tem graça! O Cavaco tinha um igual mas acho que acabou por morrer.» Os olhos risonhos de Ferro Rodrigues deixam antever uma piada mas contém-se e a única coisa que lhe sai é um lacónico «Pois…» Um Júlio Resende, que lhe foi oferecido no Porto, é a única nota discordante numa sala tendencialmente despojada Nos tempos que correm, um político com sentido de humor soa quase a contradição nos termos, mas este tem a quem sair. O seu pai, Eduardo Ferro, além de publicar diversos livros e peças de teatro, foi um dos guionistas do programa radiofónico Parodiantes de Lisboa que durante décadas teve uma legião de ouvintes fiéis. Esta veia humorística andou algo ausente no debate televisivo com Durão Barroso mas poderia ter sido uma arma devastadora. Nos tempos que correm, um político com sentido de humor soa quase a contradição nos termos, mas este tem a quem sair. O seu pai, Eduardo Ferro, além de publicar diversos livros e peças de teatro, foi um dos guionistas do programa radiofónico Parodiantes de Lisboa que durante décadas teve uma legião de ouvintes fiéis. Esta veia humorística andou algo ausente no debate televisivo com Durão Barroso mas poderia ter sido uma arma devastadora. A presença do cachorro resulta de um negócio em família. Rita Ferro deixou-o aqui mas levou o computador. «Com o que o bicho lhe deve ter custado, há-de ter sido ela por ela», diz o pai. Privado do correio electrónico e do acesso aos serviços informativos «on-line» em casa, vinga-se: «O cão é que já não sai de cá.» Quando lhe perguntamos a raça, hesita e chama: «Ó Mena! Lembras-te da marca do cão?» Consultado o respectivo boletim de vacinas fica-se, finalmente, a saber que se trata de um sharpei. Ilda Aguilar, 84 anos, há ano e meio que vive com a filha e o genro. «A solidariedade social começa em casa...», explica Eduardo Entretanto, Filomena, que acompanhava a conversa, pede licença para ir ver como estava a sua mãe. Ilda Aguilar, agora com 84 anos, vive há ano e meio com a filha e o genro. Ferro ri-se: «Estão a ver? A solidariedade social começa em casa…» Entretanto, Filomena, que acompanhava a conversa, pede licença para ir ver como estava a sua mãe. Ilda Aguilar, agora com 84 anos, vive há ano e meio com a filha e o genro. Ferro ri-se: «Estão a ver? A solidariedade social começa em casa…» A casa, essa, não é propriamente grande. Estas quatro assoalhadas já abrigaram Eduardo, Filomena, Sofia (a filha mais velha), bem como os gémeos Rita e João. Rita saiu de casa dos pais «quando começou a trabalhar» (na televisão). Hoje está na SIC Notícias e vive com o seu colega, Daniel Cruzeiro, filho de Celso Cruzeiro, um dos líderes da greve dos estudantes de Coimbra, em 1969. Com João, as coisas passaram-se doutra forma. «Foi saindo aos poucos», estando agora a doutorar-se nos Estados Unidos, em Harvard. Acompanha-o a namorada, filha de um adversário político do pai: nada menos que Dias Loureiro. Romeu e Julieta? Ferro conta que o filho, quando confrontado, na brincadeira, com o apelido da namorada se limitou a comentar: «É a Joana e ponto final.» A verdade é que o casal Ferro fez parte da longa lista de convidados do recente casamento da filha mais velha de Loureiro. O apartamento da Rua dos Ferreiros está alugado desde 1973. Filomena era então secretária do director do GEBEI (Gabinete de Estudos Básicos de Economia Industrial), João Cravinho. Quando Eduardo, acabado de concluir o curso, lá chegou, apaixonaram-se. Uma já era divorciada e o outro não tardou a seguir-lhe as pisadas. Quando começaram à procura de um sítio para viver, vieram parar a este prédio, na altura acabado de construir. A renda era de quatro contos. Sobravam 200$00 do ordenado de Filomena, mais os sete contos que Ferro ganhava. A vantagem é que dava para irem a pé para o emprego e até para virem almoçar a casa. Outros tempos… Mena e Eduardo vivem juntos desde 73 mas só foram ao registo em 84. Os filhos só souberam depois e ficaram furiosos O senhorio era o pai de João Salgueiro. «Gostou muito de nós. O pior foi quando viu nos papéis que vivíamos juntos sem sermos casados», lembra Filomena Aguilar. Foi um sarilho que só se desfez graças aos bons ofícios de Cravinho que persuadiu o seu amigo Salgueiro a interceder junto do pai. O senhorio era o pai de João Salgueiro. «Gostou muito de nós. O pior foi quando viu nos papéis que vivíamos juntos sem sermos casados», lembra Filomena Aguilar. Foi um sarilho que só se desfez graças aos bons ofícios de Cravinho que persuadiu o seu amigo Salgueiro a interceder junto do pai. Olhando para esta casa, vê-se que a família, e sobretudo Ferro, não mostram grande apego aos bens materiais. Uns dias antes, ao conversar com o presidente do Inatel, Eduardo Graça, com o objectivo de evocar os tempos movimentados da associação de estudantes de Económicas em 1969/72, já este tinha alertado para a maneira de ser do seu amigo: «Não conheço ninguém que ligue tão pouco a casas, carros ou dinheiro.» O visado não nega: «Não se pode ser agarrado ao que não se tem. Sempre vivemos os dois unicamente dos nossos salários de quadros da administração pública.» Isso mesmo se nota na sala de estar, centro da casa e cenário desta conversa. Ao canto, um sofá meio de esguelha, o favorito do entrevistado: «Permite-me deitar um olho à televisão, enquanto estou a ler ou a conversar.» Parece a altura ideal para uma pequena provocação: «Então e não quer espreitar o seu Sporting?» (o clube de Alvalade deslocava-se nessa noite a Guimarães). «Só uma espreitadela», condescende ele. Depois de verificar que o marcador continua em branco, muda de canal e explica: «Não consigo assistir a jogos aos bocados. Prefiro não ver. Mas confesso que há partidas em que me enervo tanto, que começo a fazer zapping mal o adversário passa a linha do meio-campo.» Numa sala tendencialmente tão despojada, a única nota discordante é dada por um quadro de Júlio Resende pendurado junto à porta. Parece ser o preferido, tendo sido oferecido na Cooperativa dos Pedreiros, durante uma visita ao Porto. Numa sala tendencialmente tão despojada, a única nota discordante é dada por um quadro de Júlio Resende pendurado junto à porta. Parece ser o preferido, tendo sido oferecido na Cooperativa dos Pedreiros, durante uma visita ao Porto. No grande móvel de prateleiras que cobre uma das paredes, por cima da aparelhagem há uma fotografia em destaque. Foi oferecida pelo nosso colega Luiz Carvalho. Tirada em 1978 na Avenida da Liberdade, mostra um casal com os filhos ao colo a ver passar o desfile comemorativo do 25 de Abril. «Não se percebe, porque é a preto e branco», adianta Filomena. «Mas a graça disto é que os gémeos estavam vestidos com uns fatos de macaco cor-de-laranja, quase florescente, trazidos lá de fora por uns amigos nossos.» Rita, ao colo da mãe, come sossegadamente uma bolacha, enquanto João parece olhar espantado para o pai, talvez perguntando a si próprio com quem estará ele zangado para estar de punho no ar. «E os olhinhos que se vêem a espreitar na parte debaixo da imagem são da Sofia», explica Filomena. Não admira, por isso, que a conversa derive para os tempos do Movimento de Esquerda Socialista (MES), essa originalidade do pós-25 de Abril, mais radical que o PCP mas ainda menos disciplinada que o PS. «Tão original, que foi o único partido a ter decidido auto-extinguir-se», lembram os dois a rir. O «enterro» do MES foi em 1981 mas, de então para cá, têm-se realizado alguns jantares comemorativos, cada vez mais participados. Vão os antigos militantes, levam os filhos e até gente que «nunca foi do MES mas deve achar graça aparecer». O caso mais visível foi o da comemoração dos 25 anos do 25 de Abril. Para um bem-humorado Ferro, «é o único partido que continua a crescer mesmo depois de morto». Ao canto da sala está o sofá favorito de Eduardo: «Permite-me deitar um olho à televisão enquanto estou a ler ou a conversar» Na televisão continuam a desfilar as notícias do dia. José Pedro Pinto, assessor do secretário-geral, faz zappings constantes. Aparecem imagens da campanha do PS e da visita a uma escola de Setúbal. A conversa pára. No ecrã aparece a imagem do próprio José Pedro, a controlar as operações. «O que um tipo faz para ganhar a vida», comenta Ferro. «A vida, não. As eleições!», responde o outro, arrancando uma gargalhada geral. Na televisão continuam a desfilar as notícias do dia. José Pedro Pinto, assessor do secretário-geral, faz zappings constantes. Aparecem imagens da campanha do PS e da visita a uma escola de Setúbal. A conversa pára. No ecrã aparece a imagem do próprio José Pedro, a controlar as operações. «O que um tipo faz para ganhar a vida», comenta Ferro. «A vida, não. As eleições!», responde o outro, arrancando uma gargalhada geral. Nesse momento toca o telemóvel. Nem de propósito, num dia marcado pelo «puxar de orelhas» de Jorge Coelho ao PS, por alegada falta de empenho no apoio ao líder. Ferro atende e percebe-se que é o próprio Coelho quem está do outro lado. Há uma rápida troca de impressões que termina com «Vai aparecer a dizer isso nos telejornais? Óptimo. Muito obrigado!» Para o dia seguinte estava marcada a apresentação do programa eleitoral do PS na antiga FIL. Um evento que, como se sabe agora, fez tocar a reunir nas hostes socialistas. O título da primeira página do «Público» e que dizia «Ferro faz apelo lancinante aos que não costumam votar» viria a provocar uma zanga entre o antigo director, Vicente Jorge Silva, apoiante do PS, e o actual, José Manuel Fernandes Feitas mais algumas fotos, a conversa passa a girar em torno da vida do casal. De manhã, Filomena e Eduardo raramente têm tempo para beberem café juntos. Se ele continua fiel ao Carrocel, na esquina da Infante Santo com a Santana à Lapa, ela passou a optar pelo Centro Comercial Arco Íris, perto da dependência da Avenida da República do Ministério da Economia, onde agora trabalha. «Como comecei a trabalhar aos 18 e já vou com 34 anos de serviço, estou a pensar reformar-me para o ano», confidencia Filomena. «Isso é se nós não mudarmos a lei», responde o marido em jeito de provocação. «Ó chefe! Olhe os votos!», diz José Pedro Pinto. Feitas mais algumas fotos, a conversa passa a girar em torno da vida do casal. De manhã, Filomena e Eduardo raramente têm tempo para beberem café juntos. Se ele continua fiel ao Carrocel, na esquina da Infante Santo com a Santana à Lapa, ela passou a optar pelo Centro Comercial Arco Íris, perto da dependência da Avenida da República do Ministério da Economia, onde agora trabalha. «Como comecei a trabalhar aos 18 e já vou com 34 anos de serviço, estou a pensar reformar-me para o ano», confidencia Filomena. «Isso é se nós não mudarmos a lei», responde o marido em jeito de provocação. «Ó chefe! Olhe os votos!», diz José Pedro Pinto. Filomena Aguilar cita o caso de colegas suas e contrapõe: «Há pessoas que chegaram ao limite de idade mas para quem deixar o emprego é um pesadelo. É uma crueldade mandá-las para casa. Talvez pudessem continuar a trabalhar, se calhar menos tempo por semana. Nestas coisas, a lei deveria deixar alguma liberdade às pessoas.» Esta dupla que, como se vê, está longe de concordar em tudo, só se casou, formalmente falando, em 1984. Com o curso de História terminado, Filomena, caso quisesse concorrer ao ensino, poderia ter vantagem em recorrer à lei dos cônjuges. Daí a formalização do casamento. Foi no Registo Civil. Coisa tão rápida e descontraída que a conservadora se enganou e por pouco não casava as testemunhas, ou seja, dois amigos que os acompanhavam: Eduardo Graça e Maria Guilhermina… Os filhos é que, tendo sabido da cerimónia mais tarde e por interpostas pessoas, «ficaram furiosos». Mas, ainda hoje, a data que se comemora «é a do começo do namoro em 1973 e não a do casório». Tão certa como esta comemoração é o almoço da família, de 15 em 15 dias em casa dos pais de Ferro, na Tapada do Mocho, em Oeiras. «Nem sempre se consegue fazer o pleno da tribo, mas tentamos», diz ele. Tão certa como esta comemoração é o almoço da família, de 15 em 15 dias em casa dos pais de Ferro, na Tapada do Mocho, em Oeiras. «Nem sempre se consegue fazer o pleno da tribo, mas tentamos», diz ele. Onde a mesma tribo se torna a juntar é em Agosto, na praia da Altura, a leste de Monte Gordo. Um hábito que ficou de quando os miúdos eram pequenos. O sítio é sossegado e a casa que se habituaram a deixar alugada de um ano para o outro fica rigorosamente a cinco minutos a pé da beira-mar. Mas, como lembra Filomena, este outro Algarve, «tão diferente do turístico», também começa a dar os primeiros sinais de superlotação. Por estranho que pareça, esta família de fãs do Algarve passa os fins-de-semana na zona do litoral com o clima mais diametralmente oposto: Almoçageme, a norte do Cabo da Roca. Começaram por alugar casa nas Azenhas do Mar há mais de dez anos. Mas o espaço era inversamente proporcional à humidade e a migração fez-se para uma pequena vivenda na saída de Almoçageme para a Praia Grande. Depois de muita pressão de Filomena, acabaram, faz ano e meio, por dar um inesperado passo: a aquisição de uma casa, desta vez na orla da aldeia que desce para a Adraga. «E eu que me gabava de ser o único tipo da minha geração que nunca tinha comprado casa», brinca Ferro Rodrigues. Uma das razões do negócio (30 mil contos financiados pela banca por uma casa em segunda mão, com algum quintal e vista sobre o vale da Adraga) foram os netos: «Do lado da Sofia temos uma Carolina e um David. Do lado da Rita vem aí uma Leonor. E o resto ver-se-á.» A conversa caminha para o fim. Tempo para falar, ainda, dos gostos e desgostos do clã Ferro. Como, por exemplo, do primeiro carro da família, um Honda 600 comprado novo em 1973 e trocado, quatro anos depois, por um Fiat 127, quando descobriram que a Sofia e os dois bebés não cabiam no banco de trás. Se o minicarro japonês deixou saudades, a cidade preferida é, para além de Paris, Nova Iorque. Já o centro comercial, se não amado, pelo menos tolerado, é o das Amoreiras. A música do coração é a de Maria João Pires, o que não exclui um eventual desvio na direcção do fado, nomeadamente Camané. Do clube desportivo nem vale a pena falar. Consta que os amigos aliciaram Ferro para comprar lugar cativo no novo Estádio de Alvalade. Coisa para 400 contos e que leva Filomena a virar-se para nós e perguntar: «Já perceberam porque é que só agora é que comprámos casa, não já?» Remexendo nas prateleiras, Ferro Rodrigues descobre um CD. Uma relíquia do tempo em que com outros três amigos fez rádio. O programa começou em 1967, no então Rádio Clube Português, chamava-se «Esquema 4» e passava música popular anglo-americana. Música e algo mais: «Nem queiram saber os textos que dávamos a ler ao locutor de serviço…» Escusado será dizer que nada ia à Censura, pelo que o programa teve o fim que se adivinha. Mais precisamente, não resistiu às eleições de 1969 e ao redobrar de cuidados por parte da máquina de controlo ideológico do regime. Pelo meio houve um episódio curioso. O espaço onde o programa estava integrado foi comprado por Cidália Meireles. Esta engraçou com os moços e deixou-os continuar a ir para o ar. O programa passou a chamar-se «Critério» e Cidália pôs como única condição que só transmitissem música portuguesa. E assim foi: Adriano, Zeca Afonso, Manuel Freire… O CD deve-se à simpatia dos técnicos da estação que conservaram na sua posse as fitas magnéticas com as gravações originais. A foto da capa mostra quatro rapazes à roda de uma mesa: Ludgero Pinto Basto, João Manuel Amorim, António Luís Neto e Eduardo Ferro Rodrigues. Este último, o mais magro e de bigode ralo, seria eleito, três anos mais tarde, presidente da Associação de Estudantes do então Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras. Trinta anos depois, a parada é mais alta e decide-se a nível nacional no próximo dia 17. 29

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