Suplemento Pública

05-11-2003
marcar artigo

Nemo

Por O FILME QUE VAI ESTOIRAR

Segunda-feira, 03 de Novembro de 2003

%Ana Gomes Ferreira

O protagonista do filme animado deste Natal - "Finding Nemo" (procurando Nemo) - é um pai que não quer que o filho vá à escola. O miúdo já tem seis anos, mas o adulto insiste que pode esperar. Quanto tempo? Seis anos, sete, oito, talvez mais... para sempre. No imaginário de alguns miúdos, Marlin é o pai perfeito. Ainda por cima nunca deixou a cria passar fome, correr riscos, viver mal.

Na verdade, nunca a deixou viver, e isso é o que ela mais quer - sair da concha, descobrir o mundo, fazer amigos. E dar trambolhões (mesmo sendo peixes), partir a cabeça, chorar. Marlin é super-protector e esse é o problema em "Finding Nemo", a quinta aventura animada da Pixar ("Toy Story", "Monstros e Companhia", "Uma vida de insecto") que concebeu "um 'Bambi' debaixo de água e ao contrário", como explica o argumentista e realizador Andrew Stanton.

No clássico da Disney, Bambi é um veado bebé que tem que ser empurrado - primeiro pelo pai, depois pelo amigo Tambor, finalmente por toda a floresta - para fora do ninho. Assustadiço, o bicho tem medo da própria sombra e o filme desenvolve-se em torno do seu crescimento e transformação. Andrew Stanton optou por inverter os papéis e, em "Nemo", remeteu a criança para segundo plano dando o protagonismo, e o medo, ao pai. O filme desfia a saga de Marlin, o peixe-palhaço mais sisudo dos mares do planeta.

A morte da mãe de Bambi é dilacerante. A mãe de Nemo também morre, mas logo nas primeiras cenas do filme, quando é engolida por um peixe esfomeado juntamente com os 1400 ovos que acabara de depositar no recife australiano, o cenário da aventura. Marlin promete nunca permitir que a vida de Nemo, o único filho que sobrevive ao banquete, seja ameaçada e encerra-se numa anémona.

A paranóia de Marlin aumenta ao descobrir que o filho tem uma deficiência. Entre eles, pai e filho falam da barbatana subdesenvolvida do pequeno peixe como se fosse um dom de pessoas especiais. Em público, o pai é cruel, aponta-lhe o defeito: "Tu não és como os outros, tu não consegues nadar como os outros". Zangado e humilhado, Nemo nada para longe e é capturado e levado para dentro de um aquário. Dentro de um aquário não acontece nada, pelo que passa quase todo o filme num lugar seguro, como era afinal o desejo do pai - só no fim aparecerá uma criança humana a ameaçar a vida do pequeno peixe-palhaço.

"Houve uma altura da minha vida em que trabalhei tanto que deixei de ver a minha família. Estava a escrever o argumento de 'Toy Story II' e a co-realizar 'Insecto. Um dia percebi que precisava de retomar os laços com o meu filho que tinha cinco anos. Decidi ir passear com ele ao parque mas passei o caminho todo a dizer 'não faças isso, cuidado não te aleijes, não ponhas ai o pé que cais, assim magoaste. Estava em pânico e percebi que o meu medo estava a estragar tudo e a transformar-me num mau pai", contou o realizador para explicar de onde apareceu a ideia de tornar Marlin o protagonista de um filme de animação. "Nunca vi nada do género em que o adulto fosse o protagonista", disse no final de Outubro, em Barcelona, durante a apresentação europeia do filme.

Marlin, que nem sabe o que é uma tartaruga porque nunca ousou espreitar uma, decide avançar pelo mar fora à procura do filho. Atravessa os cenários da Grande Barreira de Coral e enfrenta os seus habitantes - os tubarões têm dentes assustadores mas não comem Nemo e a companheira de viagem; as tartarugas procuram aventuras, viajam em permanência e ajudam outros viajantes; as medusas são tão bonitas como letais; as baleias são bichos solidários. Assim que Marlin deixa o coral onde habita, "Nemo" transforma-se num "road movie" em que os obstáculos surgem para permitir que o adulto enfrente e ultrapasse todos os seus medos e preconceitos.

Quando estreou nos Estados Unidos "Nemo" recebeu críticas entusiasmadas e tornou-se um mega-êxito - a Pixar espera conseguir 400 milhões de dólares de bilheteira em todo o mundo, depois haverá ainda os lucros do DVD, dos jogos para computador, das roupas e dos brinquedos "Nemo". (O filme está a provocar uma mortandade entre os peixes-palhaço nos países onde vai sendo estreado. Os miúdos pedem o peixe, os pais cedem e os vendedores das lojas de animais esquecem-se de explicar que esta é uma espécie tropical muito frágil que necessita de um aquário sofisticado para sobreviver cativo. Num aquário banal, sem temperatura ajustada ou oxigénio regulado, eles morrem).

O filme tem um cenário mágico porque a equipa da Pixar conseguiu criar, em animação computorizada, o movimento das paisagens subaquáticas. "O mundo sub-marino é o mais difícil meio ambiente de reproduzir na animação", diz o criativo, realizador e co-fundador da Pixar John Lasseter. Lasseter começou a sua carreira na Disney mas rompeu com o estúdio que foi pioneiro nos filmes de longa -metragem de animação porque queria usar as novas técnicas de animação por computador para criar cenários mais naturalistas e menos infantilizados. Basta comparar o mundo submarino de "A pequena sereia", da Disney, com "Nemo".

"Queríamos que se percebesse que esta mundo maravilhoso não existe, mas que parece credível devido a estes instrumentos técnicos fantásticos que temos. O nosso objectivo é tornar as coisas credíveis, mas não realistas", disse Lasseter considerando que, com este filme, a Pixar atingiu uma mestria na utilização da tecnologia, pelo que tem que partir para novos desafios.

Em "Nemo", como em produções anteriores, percebe-se que existe uma dificuldade em tornar as figuras humanas tão ágeis e expressivas como as animais. Até aqui, os seres humanos desempenham papéis secundários e nem sempre simpáticos nos filmes da Pixar - Nemo é ameaçado por Darla, uma menina que sacode os peixes que lhe oferecem, matando-os. "As articulações dos seres humanos e os ângulos são muito difíceis", diz Lasseter adiantando que está em curso um projecto de filme só com humanos e que a data prevista de estreia é o próximo ano - chama-se, em inglês, "The incredibles" (Os incríveis).

Apesar de não terem articulações, os peixes não foram mais fáceis para a equipa que concebeu "Nemo" (o projecto demorou dez anos até ser estreado e envolveu quase 200 pessoas). "Quando um cão mexe a cabeça, mexe só a cabeça. O peixe não faz isso, move-se todo e foi preciso encontrar a forma exacta de mostrar os movimentos das personagens", diz Andrew Stanton. Durante o processo de estudo e desenho das personagens, um enorme tanque de peixes tropicais foi instalado na sede da Pixar em São Francisco, na costa Oeste dos Estados Unidos.

"Os espectadores têm que sentir empatia com as personagens. Ora os peixes não provocam qualquer tipo de empatia. Foi preciso dar-lhes atributos que motivassem emoções", explica o animador Dylan Brown. As criaturas da Grande Barreira de Coral ganharam sobrancelhas.

Dylan Brown conta que este foi o filme em que a Pixar mais investiu em pesquisa - houve mesmo viagens para mergulho à Grande Barreira que tem grandes nacos a morrer devido à poluição. Visionaram-se filmes de Costeau e documentários da BBC, ouviram-se palestras de especialistas em vida marinha. Fizeram-se ensaios de "splash". "Um splash de água salgada é muito diferente de um splash de água doce ou de um de vodka", diz Dylan Brown.

Se existe um elo frágil em "Nemo", é a história. "A história sempre foi o mais importante para nós", diz Andrew Stanton. Se a Pixar criou rupturas no mundo da animação, uma delas foi a de passar para a animação histórias que podiam ter sido escritas para actores de carne e osso - sejam os protagonistas insectos, bonecos ou peixes, os espectadores identificam-se com as situações mostradas no ecrã. "Toy Story", o filme pioneiro de uma nova vaga no cinema de animação (a Dreamworks de Steven Spielberg seguiu a tendência), falava de inveja e amizade.

"'Nemo' é o mais directo em termos de haver história ligada ao mundo dos humanos. Mas para mim todos abordam as relações entre as pessoas. Não temos um plano definido para as histórias, mas foi assim que abordei todos", diz Stanton. Talvez por isso, a história é mais frágil: Marlin vai ultrapassando obstáculos até chegar ao filho e ao final feliz, mas as dificuldades são todas parecidas, não há surpresas, mudanças súbitas no enredo.

Ainda assim, "Nemo" é um filme deslumbrante. Como um peixe-balão, vai estoirar no Natal (estreia a 5).

Nemo

Por O FILME QUE VAI ESTOIRAR

Segunda-feira, 03 de Novembro de 2003

%Ana Gomes Ferreira

O protagonista do filme animado deste Natal - "Finding Nemo" (procurando Nemo) - é um pai que não quer que o filho vá à escola. O miúdo já tem seis anos, mas o adulto insiste que pode esperar. Quanto tempo? Seis anos, sete, oito, talvez mais... para sempre. No imaginário de alguns miúdos, Marlin é o pai perfeito. Ainda por cima nunca deixou a cria passar fome, correr riscos, viver mal.

Na verdade, nunca a deixou viver, e isso é o que ela mais quer - sair da concha, descobrir o mundo, fazer amigos. E dar trambolhões (mesmo sendo peixes), partir a cabeça, chorar. Marlin é super-protector e esse é o problema em "Finding Nemo", a quinta aventura animada da Pixar ("Toy Story", "Monstros e Companhia", "Uma vida de insecto") que concebeu "um 'Bambi' debaixo de água e ao contrário", como explica o argumentista e realizador Andrew Stanton.

No clássico da Disney, Bambi é um veado bebé que tem que ser empurrado - primeiro pelo pai, depois pelo amigo Tambor, finalmente por toda a floresta - para fora do ninho. Assustadiço, o bicho tem medo da própria sombra e o filme desenvolve-se em torno do seu crescimento e transformação. Andrew Stanton optou por inverter os papéis e, em "Nemo", remeteu a criança para segundo plano dando o protagonismo, e o medo, ao pai. O filme desfia a saga de Marlin, o peixe-palhaço mais sisudo dos mares do planeta.

A morte da mãe de Bambi é dilacerante. A mãe de Nemo também morre, mas logo nas primeiras cenas do filme, quando é engolida por um peixe esfomeado juntamente com os 1400 ovos que acabara de depositar no recife australiano, o cenário da aventura. Marlin promete nunca permitir que a vida de Nemo, o único filho que sobrevive ao banquete, seja ameaçada e encerra-se numa anémona.

A paranóia de Marlin aumenta ao descobrir que o filho tem uma deficiência. Entre eles, pai e filho falam da barbatana subdesenvolvida do pequeno peixe como se fosse um dom de pessoas especiais. Em público, o pai é cruel, aponta-lhe o defeito: "Tu não és como os outros, tu não consegues nadar como os outros". Zangado e humilhado, Nemo nada para longe e é capturado e levado para dentro de um aquário. Dentro de um aquário não acontece nada, pelo que passa quase todo o filme num lugar seguro, como era afinal o desejo do pai - só no fim aparecerá uma criança humana a ameaçar a vida do pequeno peixe-palhaço.

"Houve uma altura da minha vida em que trabalhei tanto que deixei de ver a minha família. Estava a escrever o argumento de 'Toy Story II' e a co-realizar 'Insecto. Um dia percebi que precisava de retomar os laços com o meu filho que tinha cinco anos. Decidi ir passear com ele ao parque mas passei o caminho todo a dizer 'não faças isso, cuidado não te aleijes, não ponhas ai o pé que cais, assim magoaste. Estava em pânico e percebi que o meu medo estava a estragar tudo e a transformar-me num mau pai", contou o realizador para explicar de onde apareceu a ideia de tornar Marlin o protagonista de um filme de animação. "Nunca vi nada do género em que o adulto fosse o protagonista", disse no final de Outubro, em Barcelona, durante a apresentação europeia do filme.

Marlin, que nem sabe o que é uma tartaruga porque nunca ousou espreitar uma, decide avançar pelo mar fora à procura do filho. Atravessa os cenários da Grande Barreira de Coral e enfrenta os seus habitantes - os tubarões têm dentes assustadores mas não comem Nemo e a companheira de viagem; as tartarugas procuram aventuras, viajam em permanência e ajudam outros viajantes; as medusas são tão bonitas como letais; as baleias são bichos solidários. Assim que Marlin deixa o coral onde habita, "Nemo" transforma-se num "road movie" em que os obstáculos surgem para permitir que o adulto enfrente e ultrapasse todos os seus medos e preconceitos.

Quando estreou nos Estados Unidos "Nemo" recebeu críticas entusiasmadas e tornou-se um mega-êxito - a Pixar espera conseguir 400 milhões de dólares de bilheteira em todo o mundo, depois haverá ainda os lucros do DVD, dos jogos para computador, das roupas e dos brinquedos "Nemo". (O filme está a provocar uma mortandade entre os peixes-palhaço nos países onde vai sendo estreado. Os miúdos pedem o peixe, os pais cedem e os vendedores das lojas de animais esquecem-se de explicar que esta é uma espécie tropical muito frágil que necessita de um aquário sofisticado para sobreviver cativo. Num aquário banal, sem temperatura ajustada ou oxigénio regulado, eles morrem).

O filme tem um cenário mágico porque a equipa da Pixar conseguiu criar, em animação computorizada, o movimento das paisagens subaquáticas. "O mundo sub-marino é o mais difícil meio ambiente de reproduzir na animação", diz o criativo, realizador e co-fundador da Pixar John Lasseter. Lasseter começou a sua carreira na Disney mas rompeu com o estúdio que foi pioneiro nos filmes de longa -metragem de animação porque queria usar as novas técnicas de animação por computador para criar cenários mais naturalistas e menos infantilizados. Basta comparar o mundo submarino de "A pequena sereia", da Disney, com "Nemo".

"Queríamos que se percebesse que esta mundo maravilhoso não existe, mas que parece credível devido a estes instrumentos técnicos fantásticos que temos. O nosso objectivo é tornar as coisas credíveis, mas não realistas", disse Lasseter considerando que, com este filme, a Pixar atingiu uma mestria na utilização da tecnologia, pelo que tem que partir para novos desafios.

Em "Nemo", como em produções anteriores, percebe-se que existe uma dificuldade em tornar as figuras humanas tão ágeis e expressivas como as animais. Até aqui, os seres humanos desempenham papéis secundários e nem sempre simpáticos nos filmes da Pixar - Nemo é ameaçado por Darla, uma menina que sacode os peixes que lhe oferecem, matando-os. "As articulações dos seres humanos e os ângulos são muito difíceis", diz Lasseter adiantando que está em curso um projecto de filme só com humanos e que a data prevista de estreia é o próximo ano - chama-se, em inglês, "The incredibles" (Os incríveis).

Apesar de não terem articulações, os peixes não foram mais fáceis para a equipa que concebeu "Nemo" (o projecto demorou dez anos até ser estreado e envolveu quase 200 pessoas). "Quando um cão mexe a cabeça, mexe só a cabeça. O peixe não faz isso, move-se todo e foi preciso encontrar a forma exacta de mostrar os movimentos das personagens", diz Andrew Stanton. Durante o processo de estudo e desenho das personagens, um enorme tanque de peixes tropicais foi instalado na sede da Pixar em São Francisco, na costa Oeste dos Estados Unidos.

"Os espectadores têm que sentir empatia com as personagens. Ora os peixes não provocam qualquer tipo de empatia. Foi preciso dar-lhes atributos que motivassem emoções", explica o animador Dylan Brown. As criaturas da Grande Barreira de Coral ganharam sobrancelhas.

Dylan Brown conta que este foi o filme em que a Pixar mais investiu em pesquisa - houve mesmo viagens para mergulho à Grande Barreira que tem grandes nacos a morrer devido à poluição. Visionaram-se filmes de Costeau e documentários da BBC, ouviram-se palestras de especialistas em vida marinha. Fizeram-se ensaios de "splash". "Um splash de água salgada é muito diferente de um splash de água doce ou de um de vodka", diz Dylan Brown.

Se existe um elo frágil em "Nemo", é a história. "A história sempre foi o mais importante para nós", diz Andrew Stanton. Se a Pixar criou rupturas no mundo da animação, uma delas foi a de passar para a animação histórias que podiam ter sido escritas para actores de carne e osso - sejam os protagonistas insectos, bonecos ou peixes, os espectadores identificam-se com as situações mostradas no ecrã. "Toy Story", o filme pioneiro de uma nova vaga no cinema de animação (a Dreamworks de Steven Spielberg seguiu a tendência), falava de inveja e amizade.

"'Nemo' é o mais directo em termos de haver história ligada ao mundo dos humanos. Mas para mim todos abordam as relações entre as pessoas. Não temos um plano definido para as histórias, mas foi assim que abordei todos", diz Stanton. Talvez por isso, a história é mais frágil: Marlin vai ultrapassando obstáculos até chegar ao filho e ao final feliz, mas as dificuldades são todas parecidas, não há surpresas, mudanças súbitas no enredo.

Ainda assim, "Nemo" é um filme deslumbrante. Como um peixe-balão, vai estoirar no Natal (estreia a 5).

marcar artigo