Uma editora ao fundo do túnel

18-04-2002
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Uma Editora ao Fundo do Túnel

Por ANTÓNIO CURVELO

Sábado, 6 de Abril de 2002

Com mais discos e concertos no mercado, o jazz português raramente teve produção discográfica própria. Será o nascimento da editora independente Clean Feed o esperado sinal de mudança?

Na transição de 2001 para 2002, o mercado do jazz em Portugal está ferido por um fatal paradoxo. Quando a oferta discográfica continua a crescer e os festivais e concertos se multiplicam, acentuando um progressivo processo de descentralização, com a conquista de novos palcos em territórios nunca antes seduzidos pelo jazz ao vivo, a vida dos músicos portugueses permanece amputada de uma vertente essencial: a produção discográfica.

Em 2001, poucos nomes conseguiram publicar obra feita em estúdio. Até com as gravações já prontas, o obstáculo da edição e distribuição é muitas vezes intransponível. E os casos de marginalização ou desprezo das grandes editoras pelos nomes consagrados são mais regra que excepção. O facto de um músico da dimensão de Mário Laginha (só abençoado pela indústria enquanto alter ego musical de Maria João) permanecer afastado dos estúdios vai para dez anos vale como um atestado de incompetência passado aos A&R deste país.

A curta e modestíssima história da produção discográfica do jazz português (também ela na cauda dos índices europeus) viveu há um par de anos com a etiqueta Groove - responsável por vasta e rápida produção que reuniu parte dos principais nomes nacionais, por vezes em projectos partilhados com bons valores internacionais - um momento excepcional, tão surpreendente quanto obscuro. Sempre mal distribuída (doença que já liquidara os esforços da pioneira Numérica), a Groove sumiu-se como chegara - abrupta e inexplicavelmente. Daí para a frente voltou o deserto, com raros oásis habitados por resistentes como Carlos Barretto ou Carlos Martins, que lograram entrar em catálogos de independentes internacionais. E assim se chegou ao estado actual, em que os melhores músicos portugueses tocam mais vezes mas raramente gravam. E sem discos o salto internacional é impossível.

Foi contra esta apagada e vil tristeza que a independente Clean Feed surgiu, no fim de 2001, como uma editora ao fundo do túnel. Com três títulos já publicados, a Clean Feed, que já é um caso inédito em Portugal, parece ter encontrado um ovo de Colombo, ao rentabilizar as relações pessoais dos seus responsáveis com músicos norte-americanos, avançando num caminho que pode ser muito promissor: a edição de gravações inéditas cedidas pelos próprios músicos.

Estreada com o testemunho de um concerto organizado no Seixal, em Março de 2001, com Steve Swell, Ken Filiano e Lou Grassi (nomes habituais do catálogo CIMP) mais a cumplicidade pontual e meritória dos portugueses Rodrigo Amado e Paulo Curado, a Clean Feed prosseguiu com o registo da NU Band, formada por Roy Campbell, Mark Whitecage, Joe Fonda e Lou Grassi, e com a apresentação do Trio Viriditas, território musical partilhado por Alfred Harth, Wilber Morris e Kevin Norton. Uma lista a que se juntará, em breve, o primeiro disco com liderança portuguesa, o excelente projecto Filactera, de Mário Delgado.

A esta produção inicial, totalmente sintonizada com estéticas do jazz contemporâneo, a Clean Feed promete acrescentar testemunhos de outras correntes e escolas, embora longe das chamadas zonas do "mainstream revival". E a confirmar-se a intenção de apostar na "prata da casa", difícil será manter a actual orientação.

Os três discos editados têm como denominador comum o seu evidente interesse musical, com o trio Viriditas investindo em form(ul)as mais trabalhadas, The Implicate Order mais dependente, nas suas "improvisações espontâneas", dos solos individuais do que da cumplicidade colectiva, e a "improvisação estruturada" da NU Band atingindo um bom ponto de equilíbrio. Um triângulo de estreia a justificar incentivo e atenção.

Uma Editora ao Fundo do Túnel

Por ANTÓNIO CURVELO

Sábado, 6 de Abril de 2002

Com mais discos e concertos no mercado, o jazz português raramente teve produção discográfica própria. Será o nascimento da editora independente Clean Feed o esperado sinal de mudança?

Na transição de 2001 para 2002, o mercado do jazz em Portugal está ferido por um fatal paradoxo. Quando a oferta discográfica continua a crescer e os festivais e concertos se multiplicam, acentuando um progressivo processo de descentralização, com a conquista de novos palcos em territórios nunca antes seduzidos pelo jazz ao vivo, a vida dos músicos portugueses permanece amputada de uma vertente essencial: a produção discográfica.

Em 2001, poucos nomes conseguiram publicar obra feita em estúdio. Até com as gravações já prontas, o obstáculo da edição e distribuição é muitas vezes intransponível. E os casos de marginalização ou desprezo das grandes editoras pelos nomes consagrados são mais regra que excepção. O facto de um músico da dimensão de Mário Laginha (só abençoado pela indústria enquanto alter ego musical de Maria João) permanecer afastado dos estúdios vai para dez anos vale como um atestado de incompetência passado aos A&R deste país.

A curta e modestíssima história da produção discográfica do jazz português (também ela na cauda dos índices europeus) viveu há um par de anos com a etiqueta Groove - responsável por vasta e rápida produção que reuniu parte dos principais nomes nacionais, por vezes em projectos partilhados com bons valores internacionais - um momento excepcional, tão surpreendente quanto obscuro. Sempre mal distribuída (doença que já liquidara os esforços da pioneira Numérica), a Groove sumiu-se como chegara - abrupta e inexplicavelmente. Daí para a frente voltou o deserto, com raros oásis habitados por resistentes como Carlos Barretto ou Carlos Martins, que lograram entrar em catálogos de independentes internacionais. E assim se chegou ao estado actual, em que os melhores músicos portugueses tocam mais vezes mas raramente gravam. E sem discos o salto internacional é impossível.

Foi contra esta apagada e vil tristeza que a independente Clean Feed surgiu, no fim de 2001, como uma editora ao fundo do túnel. Com três títulos já publicados, a Clean Feed, que já é um caso inédito em Portugal, parece ter encontrado um ovo de Colombo, ao rentabilizar as relações pessoais dos seus responsáveis com músicos norte-americanos, avançando num caminho que pode ser muito promissor: a edição de gravações inéditas cedidas pelos próprios músicos.

Estreada com o testemunho de um concerto organizado no Seixal, em Março de 2001, com Steve Swell, Ken Filiano e Lou Grassi (nomes habituais do catálogo CIMP) mais a cumplicidade pontual e meritória dos portugueses Rodrigo Amado e Paulo Curado, a Clean Feed prosseguiu com o registo da NU Band, formada por Roy Campbell, Mark Whitecage, Joe Fonda e Lou Grassi, e com a apresentação do Trio Viriditas, território musical partilhado por Alfred Harth, Wilber Morris e Kevin Norton. Uma lista a que se juntará, em breve, o primeiro disco com liderança portuguesa, o excelente projecto Filactera, de Mário Delgado.

A esta produção inicial, totalmente sintonizada com estéticas do jazz contemporâneo, a Clean Feed promete acrescentar testemunhos de outras correntes e escolas, embora longe das chamadas zonas do "mainstream revival". E a confirmar-se a intenção de apostar na "prata da casa", difícil será manter a actual orientação.

Os três discos editados têm como denominador comum o seu evidente interesse musical, com o trio Viriditas investindo em form(ul)as mais trabalhadas, The Implicate Order mais dependente, nas suas "improvisações espontâneas", dos solos individuais do que da cumplicidade colectiva, e a "improvisação estruturada" da NU Band atingindo um bom ponto de equilíbrio. Um triângulo de estreia a justificar incentivo e atenção.

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