A Revolução em Coimbra

07-12-2002
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A Revolução em Coimbra

por Alberto Vilaça

Este artigo-depoimento do Dr. Alberto Vilaça é um contributo extraordinário para o conhecimento público do que foi o 25 de Abril em Coimbra.

O rigor dos factos, o pormenor do envolvimento das pessoas, o papel e a organização do PCP transporta-nos, passados 25 anos, para os dias tão intensos e decisivos da nossa história colectiva.

Evocar ou comemorar um facto histórico, além de permitir valorá-lo quando o merece (como é o caso presente), permite sempre também aprofundar o seu estudo objectivo. Eventualmente, trazer mesmo ao de cima aspectos ignorados ou de conhecimento restrito. Muitas vezes, no que toca à história recente e enquanto é possível, mediante testemunhos ou depoimentos pessoais.

É nesta perspectiva que este artigo-depoimento é escrito. E numa outra também.

Incidindo sobre um tema de história local, nem por isso um ou outro dos seus pormenores deixarão talvez de indiciar ou perspectivar caracteres gerais - neste caso, da revolução de Abril.

Uns e outros vistos na memória da minha participação pessoal em alguns factos e, quanto a outros em que não intervim directamente, na dos seus próprios participantes e das conversas que com quase todos eles e a tal respeito tenho mantido ao longo deste quarto de século, bem como também mediante depoimentos manuscritos de Victor Costa, que confirmam e acrescentam diversos aspectos daquelas. E ainda, quanto a parte dos de natureza pública, pelo seu controle através da imprensa da época.

Será assim de começar por dizer que, nos tempos mais próximos anteriores à revolução, a organização anti-fascista em Coimbra não seria muito extensa mas era suficientemente vigorosa e articulada, com os meios bastantes e imprescindíveis para estar à altura, como esteve, dos acontecimentos que então se desencadearam.

Após a campanha eleitoral de 1969 - com um certo impacto, mas também com não desprezíveis debilidades e contradições - e decorrida uma acentuada retracção que se lhe seguira por força dessas mesmas características, as coisas vieram a melhorar.

Obviamente, não é esta a ocasião de aprofundar o estudo de toda essa época, que aliás deve ser feito. Desde a "caldeirada de Mira", designação pejorativa com que ao tempo se celebrizou uma espécie de plenário de democratas do distrito, disfarçado em almoço realizado pouco depois daquela campanha e que só serviu para patentear a perda das ilusões de alguns (que as haviam alimentado com a falsa "primavera marcelista") e mútuas dissenções. Até aos (e aquém dos) também plenários distritais de 1973, em Cantanhede e Coimbra, que porém não melhoraram esse clima quanto a uns tantos de nome feito mas pouco dispostos a actuar politicamente. E em que não faltaram, além dos exclusivamente políticos, alguns episódios saborosos. Entre outros, em 1973, a invocação de uma ínfima reunião em Penela pelo nome pomposo de "plenário" e que logo alguém classificou jocosamente de penelário. E também a reunião feita nos arredores da Figueira da Foz, nada mais nada menos do que na seiscentista capela anexa ao ex-convento de Ceiça, consagrado ao abade João, famoso mata-moiros pré-afonsino. Em pé e em círculo, pois é octogonal a forma do pequeno e belo espaço, quase sem assentos, e em que se destacou o nosso combate ao imobilismo "eleitoral" defendido pelo respectivo protagonista da zona.

Certo é que a UEC (União dos Estudantes Comunistas) estava consolidada já então e, desde vários anos antes da revolta dos capitães, era sem dúvida uma estrutura sólida e muito actuante. Fundamental no 25 de Abril. Sem prejuízo da existência de algumas outras tendências estudantis, mormente esquerdistas, mas que pouco ou nada pesavam no plano geral da cidade e do distrito.

E o PCP, fragilizado na região em boa parte da década de Sessenta, vinha a reforçar-se desde os inícios da de Setenta, logo depois com um organismo virado essencialmente para a dinamização da luta unitária antifascista e com funções de comité local (constituído à data da revolução por Victor Costa, então assistente da Faculdade de Ciências, Carlos Fraião e Jorge Seabra, estes últimos actual e respectivamente advogado e médico em Coimbra). Além deste, vários outros quadros e sectores organizados, com influências relevantes em diversos meios trabalhadores e sindicais (sector de que era responsável Joaquim Serrão, hoje dirigente sindical) ou associativos e culturais, como a colectividade popular Ateneu de Coimbra e a revista Vértice. Ainda que, muitas vezes, só através das vias individuais de militantes organizados ou de outros comunistas transitoriamente com contactos apenas espaçados ou não explícitos, ou mesmo de meros simpatizantes, mas todos dentro do espírito partidário.

Ligada a organização conimbricense ao Comité Regional das Beiras, na altura da revolução era este constituído por Carlos Luís Figueira, Vasco Paiva e António Lopes (que fazia a ligação) e controlado por Carlos Costa, todos funcionários clandestinos do Partido.

Reactivava-se, por outro lado e de vez em quando, um frutuoso tipo de amplos convívios vindos desde a segunda metade dos anos Sessenta, entre estudantes e conhecidos lutadores antifascistas, em certas "repúblicas" académicas - além de outras e em especial o Quimbo dos Sobas, também os Mil-Y-Onários, a Ay-Ó-Linda, a Rás-Te-Parta e depois, com particular relevância, a Cinco de Outubro. Em ambos esses períodos, a par igualmente de quase diárias e tradicionais tertúlias democráticas, de café e outras, com destaque para o Ateneu, a Clepsidra e A Brasileira.

Eram pois bastantes e significativos os debates abertos e outras realizações de vários tipos - mormente culturais, de conteúdo antifascista e contra a guerra colonial - que iam acontecendo, embora não expressamente políticos quanto aos públicos, como no Ateneu.

Assim, desde o Outono de 1971 ou 1972, neste enquadramento e mercê de iniciativas da UEC e do PCP, tornou-se possível e consolidou-se um numeroso núcleo dinamizador composto por elementos daquelas origens políticas e outros democratas. O Movimento Democrático de Coimbra, como veio a chamar-se, adquiriu então uma renovada e importante dinâmica, com alguns métodos novos e muita gente nova - cujos nomes seriam longos de enumerar - mas também com relevantes contributos e experiências anteriores e que em parte persistiam.

Num outro ângulo, devem apontar-se também nessa mesma época não propriamente a ASP ou, depois, o entretanto criado PS, porque sem peso orgânico ou dinamizador, mas sim e acompanhando no essencial várias das lutas e acções unitárias do MDC alguns socialistas individualmente considerados: Maria Judite Mendes de Abreu, Fernando Vale e António Campos. E, claro, contando-se com a adesão maior ou menor de vários outros antifascistas, desta e de diferentes ou não definidas tendências.

Entre muitas outras expressões práticas de tudo isto, anteriores e posteriores àquela redinamização, podem apontar-se: a pré-existente Comissão de Socorro aos Presos Políticos; reiteradas movimentações estudantis (algumas reprimidas e suscitando solidariedades de advogados e outras); a participação no Congresso da Oposição Democrática em Aveiro e na sua preparação (1972 e 1973), inclusive com caravanas automóveis organizadas; as campanhas de recenseamento e eleitoral em 1973 (abrindo um gabinete e uma sede, com agitação, propaganda e outras acções de vulto, como caravanas, comícios - superlotado e arrebatador o de encerramento - e outras sessões mas com rejeição às urnas-burla); várias outras lutas mobilizadas directa ou indirectamente através de grandes abaixo-assinados contra a carestia de vida, contra a falta de segurança das automotoras da CP na linha da Lousã e pela defesa do pequeno comércio, esta até com cariz quase grevístico. Tudo a par ainda de uma muito apreciável reactivação do movimento sindical livre, que vinha a acentuar-se em termos de organização, com bons contributos locais à criação da Intersindical e com lutas próprias.

Já em 1974, além de diversas acções em curso como as apontadas e por meio de muitos dos seus membros, o MDC fomentou ainda a organização das comemorações do 31 de Janeiro em Coimbra (que todavia vieram a ser proibidas) e em Março participou na homenagem à professora Cristina Torres, destacada democrata figueirense. Com adesões alargadas, embora de tipos diversos, estas duas iniciativas tiveram apoios mesmo entre alguns dos que de longa data vinham recuando e dificultando por diferentes formas.

É que - agravando as dificuldades de constituição da lista de candidatos a deputados em 1973, resultantes de alguns dos seus activistas estarem impedidos de a integrarem por terem os direitos políticos cortados ou situações equiparáveis - havia outras, aliás antigas.

Com causas muito concretas: o individualismo elitista e até o obstrucionismo revelados por meia dúzia de figuras, algumas com projecção pública mas indisponíveis para se organizarem então numa linha colectiva e de massas (ao arrepio, diga-se, de parte considerável dos seus próprios passados políticos), tal como o demissionismo dessas e de duas ou três outras tocadas por radicalismos verbais e inoperantes a esse tempo captados de Argel via rádio. Afinal, todas elas ultrapassadas e desconfortadas por uma dinâmica que lhes fugia das mãos, mas mantendo influências desmobilizadoras. Agiam habitualmente dessa forma, não obstante pontual erro numa reunião preparatória da lista - condicionado por aquela conduta, mas não conseguido ou podido evitar - e mesmo os seus outros méritos e algumas das suas posteriores prestações políticas no período pós-revolução.

Nesse circunstancialismo, acabara por surgir um novo conceito (ou expressão), o de "democrata activo", com que o MDC combatia o silêncio propugnado pelos auto-excluídos, o qual veio a ser usado num documento colectivo da candidatura, já em Outubro, e para cuja redacção contribuí nessa parte:

"Passou o tempo de ser democrata para - com ou sem eleições, com ou sem campanhas eleitorais - se ser democrata activo: antes, durante e para além dos seus períodos", pois "o único caminho é o da luta efectiva, permanente e unida dos democratas".

O êxito das acções levadas a cabo na campanha eleitoral de 1973, apesar da não desejada menor abertura da lista, bem como as lutas desencadeadas antes e nos meses seguintes impuseram o inequívoco prestígio do Movimento e reforçaram sem dúvida a experiência de muitos activistas, criando-a em alguns dos neófitos também.

Deste modo, havia extensas camadas populares sensibilizadas para agirem e os que constituíamos a área dinamizadora do MDC estávamos preparados para e sabíamos muito bem o que fazer quando se verificasse a hora decisiva (como veio a ser o 25 de Abril de 1974), de resto tal como havíamos feito em muitas outras, não decisivas mas adequadas: designadamente, pôr o Povo nas ruas.

Ora, para além da natural efervescência nas conversas de rua, da incerteza quanto ao verdadeiro sentido do que estava a acontecer, da busca de notícias pela rádio e pela televisão, de movimentos frenéticos de pides e da ousadia do governador civil ao reunir alguns presidentes de câmaras do distrito, segundo disse, e publicar um comunicado de fidelidade a Marcelo Caetano (fazendo mesmo ordenar ao jornal diário local, e por este sendo obedecido, que por ele fosse substituída a pequena nota que sobre o "pronunciamento" militar fora afixada no respectivo placard), a revolução quase não se sentiu em Coimbra no seu primeiro dia.

Mas algo se movimentara durante a noite. Álvaro Matos, militante do PCP, hoje advogado em Coimbra e então oficial miliciano na Figueira da Foz, estava aí ligado ao MFA através do capitão Dinis de Almeida (que na madrugada revolucionária comandou uma das forças para Lisboa) e nessa qualidade era responsável por contactos com civis locais em missões de vigilância e segurança.

Informado na véspera acerca da iminência da acção militar, viu-se na necessidade de vir no fim de jantar a Coimbra, em cuja residência familiar guardava a imprensa do PCP destinada à região das Beiras nesse mês. Um eventual desaire do movimento dos capitães poderia levá-lo à prisão e, por tabela, atingir o Partido se em sua casa fosse encontrado pela PIDE todo aquele material.

Houve pois que avisar Carlos Fraião, a sua ligação partidária, e tomarem as medidas que se impunham. Depois regressou à "praia da claridade" e Fraião dedicou-se a outras diligências exigidas pelas circunstâncias.

Quanto a mim, só quase a meio da manhã me chegou a notícia do que se passava em Lisboa. De imediato fui para a rua e falei com numerosas pessoas, mas não consegui encontrar outros dos principais activistas democráticos.

Só na primeira metade da tarde me apareceu Victor Costa, quase de certeza no café A Brasileira. E, como só muito mais tarde vim a saber, estava marcada para essa manhã, fora de Coimbra, uma reunião do comité local do PCP. Para lá haviam ido ele e, mal dormido, Carlos Fraião, tendo-se ambos encontrado e discutido a situação com António Lopes. Daí, no que a esses respeita, não ter eu conseguido avistá-los antes.

Com a opinião também e pelo menos do comerciante Aurélio Santos, outro membro do MDC, trocámos impressões e logo ponderámos se seria viável promover uma manifestação popular de apoio à revolução. Considerámos que sim, em princípio, e apontámos para o dia seguinte às 18 ou 19 horas, a partir da Praça da República, caso viesse a confirmar-se a existência de ambiente para isso. Como tudo era ainda bastante incerto e em 26 de manhã eu tinha um serviço judicial inadiável longe de Coimbra, ficou combinado que eles avançariam se aquela ambiência se verificasse e eu iria de tarde, logo que pudesse, para o dito local apalavrado.

E assim foi.

Aurélio Santos, pessoa muito inserida no meio comercial da cidade e que aliás vinha liderando vários movimentos da sua classe profissional, melhor do que ninguém se apercebeu da receptividade popular à nossa ideia e no dia seguinte, à hora de almoço, foi à Clepsidra informar disto Victor Costa, aí chegado pouco após Manuel Matos (hoje engenheiro e então responsável pelos aparelhos técnicos da UEC e do MDC).

Na sequência do falado na véspera, concretamente lhes dizendo que na Baixa da cidade estava "tudo em polvorosa", havia um "ambiente explosivo" e ele próprio já começara a avisar as pessoas para, a partir das 18 horas, aparecerem na Praça da República. O primeiro cochichou rapidamente com Fraião, também presente, e de imediato encarregou o segundo de fazer as necessárias tarjetas convocatórias, subscritas pelo MDC.

Era o ruir da paz podre que entretanto se vivera em Coimbra.

Impressas a copiógrafo e distribuídas aquelas, cerca das 16 horas, preparados também alguns dísticos para a manifestação (nomeadamente com a palavra "Socialismo"), fez-se de seguida um contacto com o brigadeiro comandante da Região Militar do Centro, informando-o do que ia suceder e responsabilizando-o com vista a que não houvesse qualquer intimidação ou repressão policial, para o que acabou por prometer ficar vigilante.

Sim, porque mesmo ele não se definia como apoiante do MFA ou da Junta de Salvação Nacional, usando palavras ambíguas, e todas as estruturas fascistas da cidade permaneciam incólumes. Além do provocatório e público comunicado do governador civil, o emissor regional tinha sido desligado da rede nacional, sendo a programação colocada sob tutela local. Ademais, como só mais tarde veio a saber-se por testemunho oral do então major Lestro Henriques, dias após colocado como delegado do MFA em Coimbra e como comandante distrital da PSP, o 2º comandante desta havia recebido ordem (que não cumpriu) para dinamitar a ponte de Montemor-o-Velho.

A essa hora, já Victor Costa e Fraião se haviam encontrado de novo na Curia com António Lopes e Carlos Luís Figueira, recebendo e trazendo destes o primeiro comunicado da Comissão Executiva do PCP, após o 25 de Abril. E que de imediato passou a ser distribuído em frente à Igreja de Santa Cruz, a dois passos do quilómetro zero do concelho, e noutros locais, por António Martins, comunista então organizado na UEC e hoje professor da Faculdade de Ciências, e por outros jovens.

Entretanto, realizava-se também uma Assembleia Magna no jardim da Associação Académica, junto à Praça da República, a qual foi suspensa para os estudantes se incorporarem na manifestação.

Às 19 horas era já grande, pois, a multidão ali aglomerada, sobretudo juvenil.

Calhou-me a incumbência de fazer uma brevíssima alocução e recordo-me designadamente das seguintes palavras, ditas do varandim do Teatro Gil Vicente, anexo àquela Associação:

- O fascismo apanhou um soco na boca do estômago, está encolhido, mas ainda não está derrubado. Pertence agora a nós, pertence ao Povo acabar de o atirar ao chão. Nesse sentido, vamos pois para a Baixa em manifestação.

E esta engrossou com sempre crescentes milhares de pessoas ao longo do percurso, descendo a Avenida Sá da Bandeira e dando a volta pela Rua da Sofia e pela Avenida Fernão de Magalhães até ao central Largo da Portagem, nas vizinhanças do Governo Civil, deste modo confrontado e desautorizado.

A revolução chegara finalmente a Coimbra. E já de algum modo, usando a expressão que depois se popularizou, com a "Aliança Povo-MFA" avant la lettre.

Era aquele apenas o nosso objectivo imediato, com regresso pela Rua Ferreira Borges, voltando a subir até à Praça da República e aí desmobilizando. Mas as massas em movimento ganham sempre uma dinâmica própria.

E assim é que uma parte substancial dos manifestantes prosseguiu pelas próximas Ruas Tenente Valadim e Antero de Quental, indo postar-se hostilmente diante da sede da PIDE (DGS, com Marcelo Caetano) e aí se mantendo pela noite fora.

Criando aliás uma situação perigosa. Os pides estavam armados, os vizinhos já os tinham visto na varanda do respectivo pátio das traseiras com armas de fogo apontadas à Praça da República e à Associação Académica, que dali são dominadas. E viram igualmente o fumo de papéis queimados (necessariamente comprometedores) num bidon, onde depois os jornalistas vieram a encontrar restos de cinzas fumegantes.

Entretanto, passava da hora de jantar e muitos activistas do MDC concentraram-se no Ateneu de Coimbra, prestigiada colectividade popular e cultural de grandes tradições democráticas, onde se instalou uma espécie de "posto de comando".

Enquanto especialmente eu coordenava uma reunião de análise à situação política e quanto a formas de actuação, Victor Costa meteu-se na sala da Direcção do clube, agarrado grande parte da noite ao telefone e fazendo contactos, primeiro com o Rádio Clube Português (já então designado Rádio Liberdade) e depois com o comando do MFA, através do Quartel Mestre General.

Por outro lado, íamos recebendo e enviando emissários de algumas unidades militares onde conhecíamos oficiais milicianos anti-fascistas, inclusive alguns membros da UEC (por exemplo, Serpa Soares, hoje médico em Castelo de Vide, e Virgílio Ribeiro, hoje advogado em Alcobaça).

Do nosso lado, nos telefonemas, insistíamos na imperiosa necessidade e urgência de que o MFA deslocasse forças para Coimbra. Era respondido que esta região não tinha militarmente prioridade estratégica e só estava previsto o envio de uma companhia de paraquedistas "lá para domingo".

O nosso ponto de vista era diferente. Tinha-a politicamente. Pela própria importância de Coimbra como cidade, pelas suas projecção e tradição culturais e de lutas democráticas e estudantis, muito em especial porque o povo estava nas ruas, as estruturas fascistas continuavam completamente de pé e o cerco entretanto feito à sede da PIDE podia mesmo propiciar a esta o desencadeamento de acontecimentos graves, tanto mais que a PSP veio durante a noite a colocar-se em anel rodeando os populares.

Entrementes, soubemos por aqueles dois milicianos (e outros havia) que alguns oficiais do quadro no RAL (Regimento de Artilharia Ligeira), ou do CICA (Centro de Instrução de Condutores Auto), em Santa Clara, nomeadamente os capitães Pereirinha e Pegado, estavam dispostos a sair à rua (na linguagem por eles e por nós usada e transmitida ao Quartel Mestre, estavam "sobre rodas") a fim de alterar a situação, em especial cercar a PIDE e proteger as pessoas lá concentradas. Mas pretendiam receber ordens por via hierárquica.

Pelo telefone do Ateneu foi transmitido este "recado". Os nossos emissários assistiram aos telefonemas e foram informar os militares dispostos a actuar. Por força do "recado" e daquela argumentação, as ordens foram dadas alta madrugada e, sob o comando de Pegado, a PSP foi desalojada, sendo o cerco militar efectivado então entre os populares, protegendo-os, e o próprio edifício da PIDE. Ao mesmo tempo que essa, outras forças do CICA foram ocupar a sede da Legião Portuguesa (ao lado do Governo Civil) e ocupar as antenas do Trevim (Lousã), repondo as ligações nacionais de rádio.

Diga-se mais: foram acções levadas a cabo por militares que, todos ou alguns, ainda não eram do MFA, que não estavam anteriormente comprometidos com nem tinham participado no "golpe", mas que aderiram, como em muitos outros lados, alargando-o e dando-lhe características de um outro tipo de movimento e de revolução, mesmo só no plano militar. Como aliás também em Coimbra se viu especialmente no 1º de Maio seguinte, conforme adiante se aludirá.

Mas também por catálise popular e por forças políticas organizadas e de Esquerda, como eram o PCP, a UEC e o MDC.

O dia 27 nasceu com um entusiástico avolumar de gente junto à sede da PIDE, num cerco contínuo e crescente. Então e enquanto a multidão aí se manteve, até à retirada dos pides no dia imediato, funcionou como verdadeira assembleia popular permanente, que vários de nós visitavam de vez em quando ou aí se mantinham prolongadamente, fazendo intervenções e apresentando moções políticas que eram aprovadas, transmitidas a várias entidades e publicitadas.

Por força dos telefonemas nocturnos, também pouco antes das 14 horas desse dia 27, sábado (e não só no anunciado "lá para domingo"), chegou uma força de paraquedistas, em vários veículos motorizados e comandada pelo tenente-coronel Rafael Durão, representando a Junta de Salvação Nacional e que afastou e substituiu o anterior comandante da Região Militar. A meio da tarde, eu, Victor Costa e Carlos Fraião fomos cumprimentá-lo em nome do MDC (ainda a única força política antifascista clara e legalmente visível), estabelecendo desde logo um óptimo relacionamento, que influiu em tudo o que se seguiu.

A nossa rápida recepção foi aliás facilitada por uma diligência prévia do médico Lousã Henriques perante o 2º comandante paraquedista, de quem fora colega.

Em certa altura, um enorme alarido junto à sede da PIDE, situada na mesma rua e a cerca de cem metros do quartel general, trouxe-nos cá fora. Mas tudo estava normal.

Quando muito, como sucedeu nesses dois dias, alguns populares mais exaltados teriam virado um ou outro automóvel dos pides, estacionado nas imediações.

Durão, preocupado com este estado de coisas, não sabia bem o que fazer, propondo-se ouvir os pides um a um, para avaliar as culpas de cada, o que faria prolongar imenso tempo essa mesma situação.

O nosso conselho foi imediato:

- Não se meta nisso, mande-os quanto antes para Caxias ou Peniche e eles que sejam interrogados lá.

E assim sucedeu. Um dia depois, foi feito o transporte. Entretanto, alguns outros pides vieram a ser detidos quando confiantes se apresentavam na sua sede, ainda em 27.

Neste mesmo dia, foi também lançado um importante manifesto do MDC, depois divulgado largamente.

No domingo, alguns de nós (que me lembre, eu, Regina Carvalheiro, Victor Costa, Carlos Fraião, João Vilar e Luís Carlos Januário) fomos para Lisboa, aí participando num primeiro encontro nacional de delegados democráticos de vários pontos do país, onde se definiram linhas de actuação.

Recordo bem a chegada e a travessia da capital no início da manhã, cruzando com soldados empunhando armas com os célebres cravos vermelhos enfiados nos canos.

A revolução dos cravos Bem vistas as coisas, quanto a este aspecto, uma ocasional reinvenção do que, ao que se conta, já haviam feito os soldados liberais comandados pelo então futuro rei D. Pedro IV quando, desembarcados perto do Mindelo, em 8/7/1832, avançaram sobre o Porto e aí entraram no dia seguinte, colhendo pelo caminho e enfiando hortênsias nos canos das espingardas; claro que num contexto qualitativamente diferente e sem a dinâmica da interacção de povo, militares e flores.

Na reunião, efectuada num apartamento à beira da Avenida Infante Santo, havia também uma delegação oficial do PCP (António Dias Lourenço, José Magro, José Bernardino e Rogério Carvalho), mas não do PS.

Todavia, após insistentes telefonemas de Urbano Tavares Rodrigues para Salgado Zenha, às tantas e só a meio da tarde, apareceram fugazmente Mário Soares, Zenha, Sottomayor Cardia, Ramos da Costa e creio que Tito de Morais,

apenas para marcar presença, logo se retirando. Mário Soares saudou e explicou não poderem participar por estarem numa reunião do seu próprio Partido, ter ido cumprimentar Spínola e, por maioria de razão, devia vir fazê-lo aos seus companheiros de luta e resistência ao fascismo.

Já aí se percebia a importância que davam à acção unitária.

Mas houve abraços de quem não se encontrava há muito tempo. Por exemplo, mesmo à minha frente, Ramos da Costa dirigiu-se a José Magro tratando-o por antigo pseudónimo da clandestinidade e dizendo qualquer coisa como isto:

- Agora, unidade para sempre!

Resposta pronta e seca de Magro, própria de quem se sente gato escaldado:

- A ver vamos, a ver vamos.

E viu-se

Nesse mesmo dia, em Coimbra, Rafael Durão desmantelava a PIDE, exportando os agentes detidos para Caxias com enorme gáudio dos populares que assistiam à sua saída do respectivo edifício e entrada para o veículo de transporte. E ocupava a Cidadela, cooperativa de jovens fascistas activos.

Alfredo Misarela e outros cooperavam localmente com Durão e informavam-nos por telefone para Lisboa acerca do que se ia passando.

Nomeadamente, a sede da Acção Nacional Popular, travesti caetanista da União Nacional salazarista, instalada no Páteo da Inquisição, foi ocupada de tarde e entregue ao MDC. Em contrapartida e provocatoriamente, a Universidade era encerrada pelo reitor Cotelo Neiva, sem nada que o justificasse.

Regressámos de madrugada. Logo na manhã dessa segunda-feira, 29, cerca das dez horas, foi efectuada no largo em frente à Porta Férrea (vulgo: Largo das Mamudas) uma reunião geral de docentes e investigadores, de estudantes e de funcionários: os que apareceram por mobilização da UEC e de outros democratas, alguns convocados talvez mesmo com tarjetas, e os que, dirigindo-se às suas actividades normais, ali se depararam surpreendidos com as portas da Universidade fechadas.

À hora de abertura do comércio, às nove horas, já João Vilar fora comprar um megafone, objecto de venda até então altamente condicionada. E Victor Costa, encarrapitado no plinto de uma das estátuas, pôde assim falar com facilidade e expor uma proposta logo aprovada e levada à prática: eleger-se uma comissão tripartida em representação dos três apontados sectores, de imediato reunidos separadamente para o efeito, que assumiria a gestão corrente e garantiria a normalidade da vida universitária (para cuja presidência foi escolhido o Prof. Teixeira Ribeiro, dias depois reitor), devendo para tal contactar de seguida Rafael Durão para obter o seu acordo.

Tudo isto cumprido, no início da tarde a Universidade estava aberta e funcionava regularmente, assim tendo sido frustrada mais uma tentativa de desestabilização fascista em Coimbra.

Após uma noite quase sem dormir e regressado de mais um julgamento feito à pressa em Soure, no fim do almoço e uma vez mais na Brasileira, meu local habitual de tomar a bica, falando com vários dos amigos de tertúlia, entre eles o bancário Pires Rocha, como todos apoiante do MDC, expliquei em breves minutos o que na véspera se decidira em Lisboa, mormente quanto aos órgãos autárquicos e à forma de actuar a seu respeito.

Tão bem apreendeu a linha traçada que a meio da tarde estava a caminho de Condeixa, sua terra natal e situada a pouco mais de uma dúzia de quilómetros de Coimbra, mobilizando gente para depois do jantar se concentrar nas instalações da Câmara Municipal. E aí se fez então um plenário popular que apeou a câmara fascista e elegeu uma comissão administrativa constituída por democratas e presidida por João Pimentel Neves.

Creio que foi a primeira em todo o país.

Por outro lado, em 29 e 30, várias entidades colectivas (públicas e privadas) manifestavam públicos apoios ao novo poder constituído. As que de tal careciam reestruturavam-se em termos democráticos.

A Associação Académica, encerrada pelo poder fascista desde antes da revolução, realizou uma enorme Assembleia Magna no dia 30, na qual se destacou como orador José Roupiço Simões, dirigente da UEC acabado de surdir da clandestinidade, a que fora forçado pela PIDE anos antes, interrompendo então os estudos. E que já tivera um importante e mal conhecido papel (como os de outros) no movimento estudantil de 1969 - de que também e assim se tem feito quase apenas a história visível.

Nesses mesmos dias, já com facilidades de contactos e de reuniões no Páteo da Inquisição, e aí reunindo unitariamente democratas de todo o distrito e de todas as tendências, preparou-se o 1º de Maio em conjunto com o movimento sindical democratizado (o qual tinha naturalmente a seu cargo essa especial tarefa) e a substituição das outras câmaras do distrito. Mas esse bom ambiente de reuniões unitárias na ex-sede da União Nacional foi sol de pouca dura, pois o PS em breve passou a impedir os seus filiados de nelas participarem, hostilizando mesmo o MDC.

Nomeadamente para aquele dia, conseguiu-se preparar e realizar manifestações e saneamentos de câmaras em mais uns seis concelhos - salvo erro Coimbra, Figueira da Foz, Penacova, Arganil, Oliveira do Hospital e Mira. Desejávamos e necessitávamos , claro, do reconhecimento de Durão, como veio a concretizar-se de imediato quanto a Condeixa e depois quanto a todas as restantes.

Para Coimbra, organizámos uma lista presidida pelo professor universitário Rui Carrington e com elementos de diferentes sensibilidades, inclusive do movimento sindical. Aliás com manifestações de obreirismo por parte de alguns sindicalistas, que pretendiam que fossem os próprios sindicatos a gerir a câmara... A lista seria sujeita a votação no comício do dia 1.

Quanto ao plano comum de saneamento de câmaras, em concreto a de Coimbra, que de início perturbou o representante da Junta de Salvação Nacional, foi-lhe o mesmo exposto por Victor Costa, que concluiu:

- Só há uma dificuldade a ultrapassar, garantir o acesso aos paços do concelho, caso se decida o saneamento.

Convencido já, aí falou o militar:

- Deixem isso comigo. Isso resolvo já eu.

E pegou de imediato no telefone, mandou ligar ao engenheiro Araújo Vieira, presidente da última câmara fascista, dizendo-lhe em tom de comando:

- A partir das 16 horas, o senhor está na Câmara para garantir a abertura da porta.

Assim foi, após uma gigantesca manifestação de muitos milhares de pessoas, seguramente a maior de sempre em Coimbra, convocada pelo MDC através dos jornais e de milhentas tarjetas espalhadas nas freguesias urbanas e rurais. Percorreu várias ruas da cidade até ao estádio universitário, no lado sul do Mondego, onde teve lugar um grandioso comício em cujo final aquela lista foi apresentada e aprovada unanimemente por aclamação.

O próprio Durão participou e quando o desfile passava em frente ao comando da PSP, já assumido pelo delegado do MFA, Lestro Henriques, os manifestantes foram saudados por uma exibição musical da banda da polícia, que de seguida se incorporou no cortejo.

Outro ponto alto do comício foi o aparecimento, e o entusiasmo que causou, de uma coluna com centenas de militares autocomandada, marchando em formatura e levando na frente um marinheiro que empunhava uma bandeira vermelha com a foice e o martelo a ouro.

Esse marujo pegara-a das muitas então distribuídas e que durante a noite o comité de mulheres do PCP e outros elementos haviam estado a fazer no Ateneu.

Era uma vez mais o levantamento militar, para além das meras acções operacionais, ainda que basilares, organizadas pelos capitães.

Houve ainda os previsíveis discursos (Durão, Costa e Roque, respectivamente pelo MFA, pelo MDC e pelos sindicatos), em que também, pela voz de António Lopes e já não em simples folhetos, apareceu o PCP pela primeira vez em público em Coimbra.

Neste momento, surpreso e a meu lado, um membro do PS perguntou-me se também podia falar, o que fez após a minha óbvia resposta, de algo como isto:

- Claro que sim!

Com semelhantes substituições de câmaras que se verificaram como planeado, e de outras posteriores com processos idênticos, nos dezassete concelhos do distrito de Coimbra e em meados de Maio restavam apenas três para serem saneadas (Góis, Tábua e Pampilhosa da Serra).

O nosso foi de tal modo pioneiro, rápido e experiente neste tipo de acções, que alguns de nós foram solicitados por democratas de outros distritos, inclusive com deslocações para reuniões nesse sentido, a fim de "ensinar" como se saneava uma câmara fascista.

A par dos cravos vermelhos, em Coimbra e nas outras localidades onde houve manifestações do 1ª de Maio, abundavam os autocolantes do MDC.

Nas minhas mãos e nas de outros dos seus activistas, durante o percurso para o comício apareceu o já falado megafone, coisa indisponível (e invejável) para antifascistas antes do 25 de Abril e que se tornou depois vulgar em outras manifestações do período revolucionário. No imediato causou mesmo um misto de espanto e frustração em alguém que em Outubro ainda rondava o silêncio mas agora, embora na unidade própria do dia, já ia pensando nas suas diferenciações partidárias:

- Empresta-me isso? Posso utilizá-lo?

- Ó homem, à vontade!

Este era o espírito de então, todos éramos democratas e anti-fascistas (mesmo um que eu nunca imaginara de cravo vermelho ao peito ou outro que se me intitulou de "neo-democrata").

O 1º de Maio é data universal dos trabalhadores, símbolo das suas lutas e dos direitos sociais e laborais.

Mas em Portugal, em Coimbra como no resto do país, em 1974 tornou-se mais do que isso e como pretendíamos: a consagração popular e a consolidação da revolução.

Um ou dois dias depois, como já contei noutro lugar, Carlos Luís Figueira e António Lopes (revolucionários profissionais, recém-saídos da clandestinidade) e eu próprio procurávamos encontrar um local para sede do PCP ("centro de trabalho", como as circunstâncias da época levaram a baptizá-las), e que aliás logo conseguimos arrendar.

O trabalho unitário ia continuar na medida do possível (e com as amplitudes possíveis) no Páteo da Inquisição e por outras vias.

Mas fechava-se um ciclo e outro se abria. Muito mais poderia continuar a contar no desenvolvimento da revolução. Por agora, há que ficar por aqui.

Estamos num ano especial quanto às suas comemorações (um quarto de século passou).

Pode comemorar-se de muitas maneiras, porventura também com recordações singelas de pequenos factos locais como estes.

Contra certas más consciências e usando a linguagem de um recentíssimo e promovido livro, trata-se não apenas de amar "a História com H grande" e sim de procurar contribuir, por forma tão conscienciosa quanto possível, para melhor se conhecer "a história que verdadeiramente acontece". Só que, ao contrário do critério nesse livro defendido, quem pode sentir-se incomodado e "em relação difícil" com esta - concretamente com vários aspectos do que realmente aconteceu em Coimbra e agora foi evocado - são precisamente alguns de postura oposta à aqui assumida e atacada com aquela fraseologia.

Importa por isso e sobretudo (e sem dúvida bastante se fez este ano nesse sentido, do que também tenho alguma experiência pessoal) levar aos jovens, em especial nas escolas, mas não só, o conhecimento do que foi a ditadura fascista, do que foi a luta contra ela, de como há que desenvolver no mundo de hoje (como com aquela luta e a revolução se fez) os valores da Democracia e da Paz e o que do 25 de Abril ficou de válido. Mas também denunciar aquilo em que a revolução foi traída, explicar que mesmo sem ditadura política pode haver (e há) perda e negação de direitos sociais e laborais, exploração do homem pelo homem, obscurantismo cultural e político, adulteração da História (seja com H grande ou com h pequeno) e dos reais papéis dos seus protagonistas, alienação de jovens pelo incutimento da ideologia das "não ideologias", enfim humilhação e submissão de povos aos interesses do capital sem pátria, hoje disfarçado com nomes eufemísticos.

Comemorar Abril é também dizer (e desenvolver) tudo isto.

Mas mínimo dos mínimos é não o deixar só para um dia ou uma semana do ano, é não o deixar só para os programas escolares de História, é garantir o desenvolvimento do tema sem que faltas de "tempo" ou outras "razões" o minimizem na prática. É fazer valer permanentemente aqueles valores no dia a dia, sempre e a propósito de tudo.

A Revolução em Coimbra

por Alberto Vilaça

Este artigo-depoimento do Dr. Alberto Vilaça é um contributo extraordinário para o conhecimento público do que foi o 25 de Abril em Coimbra.

O rigor dos factos, o pormenor do envolvimento das pessoas, o papel e a organização do PCP transporta-nos, passados 25 anos, para os dias tão intensos e decisivos da nossa história colectiva.

Evocar ou comemorar um facto histórico, além de permitir valorá-lo quando o merece (como é o caso presente), permite sempre também aprofundar o seu estudo objectivo. Eventualmente, trazer mesmo ao de cima aspectos ignorados ou de conhecimento restrito. Muitas vezes, no que toca à história recente e enquanto é possível, mediante testemunhos ou depoimentos pessoais.

É nesta perspectiva que este artigo-depoimento é escrito. E numa outra também.

Incidindo sobre um tema de história local, nem por isso um ou outro dos seus pormenores deixarão talvez de indiciar ou perspectivar caracteres gerais - neste caso, da revolução de Abril.

Uns e outros vistos na memória da minha participação pessoal em alguns factos e, quanto a outros em que não intervim directamente, na dos seus próprios participantes e das conversas que com quase todos eles e a tal respeito tenho mantido ao longo deste quarto de século, bem como também mediante depoimentos manuscritos de Victor Costa, que confirmam e acrescentam diversos aspectos daquelas. E ainda, quanto a parte dos de natureza pública, pelo seu controle através da imprensa da época.

Será assim de começar por dizer que, nos tempos mais próximos anteriores à revolução, a organização anti-fascista em Coimbra não seria muito extensa mas era suficientemente vigorosa e articulada, com os meios bastantes e imprescindíveis para estar à altura, como esteve, dos acontecimentos que então se desencadearam.

Após a campanha eleitoral de 1969 - com um certo impacto, mas também com não desprezíveis debilidades e contradições - e decorrida uma acentuada retracção que se lhe seguira por força dessas mesmas características, as coisas vieram a melhorar.

Obviamente, não é esta a ocasião de aprofundar o estudo de toda essa época, que aliás deve ser feito. Desde a "caldeirada de Mira", designação pejorativa com que ao tempo se celebrizou uma espécie de plenário de democratas do distrito, disfarçado em almoço realizado pouco depois daquela campanha e que só serviu para patentear a perda das ilusões de alguns (que as haviam alimentado com a falsa "primavera marcelista") e mútuas dissenções. Até aos (e aquém dos) também plenários distritais de 1973, em Cantanhede e Coimbra, que porém não melhoraram esse clima quanto a uns tantos de nome feito mas pouco dispostos a actuar politicamente. E em que não faltaram, além dos exclusivamente políticos, alguns episódios saborosos. Entre outros, em 1973, a invocação de uma ínfima reunião em Penela pelo nome pomposo de "plenário" e que logo alguém classificou jocosamente de penelário. E também a reunião feita nos arredores da Figueira da Foz, nada mais nada menos do que na seiscentista capela anexa ao ex-convento de Ceiça, consagrado ao abade João, famoso mata-moiros pré-afonsino. Em pé e em círculo, pois é octogonal a forma do pequeno e belo espaço, quase sem assentos, e em que se destacou o nosso combate ao imobilismo "eleitoral" defendido pelo respectivo protagonista da zona.

Certo é que a UEC (União dos Estudantes Comunistas) estava consolidada já então e, desde vários anos antes da revolta dos capitães, era sem dúvida uma estrutura sólida e muito actuante. Fundamental no 25 de Abril. Sem prejuízo da existência de algumas outras tendências estudantis, mormente esquerdistas, mas que pouco ou nada pesavam no plano geral da cidade e do distrito.

E o PCP, fragilizado na região em boa parte da década de Sessenta, vinha a reforçar-se desde os inícios da de Setenta, logo depois com um organismo virado essencialmente para a dinamização da luta unitária antifascista e com funções de comité local (constituído à data da revolução por Victor Costa, então assistente da Faculdade de Ciências, Carlos Fraião e Jorge Seabra, estes últimos actual e respectivamente advogado e médico em Coimbra). Além deste, vários outros quadros e sectores organizados, com influências relevantes em diversos meios trabalhadores e sindicais (sector de que era responsável Joaquim Serrão, hoje dirigente sindical) ou associativos e culturais, como a colectividade popular Ateneu de Coimbra e a revista Vértice. Ainda que, muitas vezes, só através das vias individuais de militantes organizados ou de outros comunistas transitoriamente com contactos apenas espaçados ou não explícitos, ou mesmo de meros simpatizantes, mas todos dentro do espírito partidário.

Ligada a organização conimbricense ao Comité Regional das Beiras, na altura da revolução era este constituído por Carlos Luís Figueira, Vasco Paiva e António Lopes (que fazia a ligação) e controlado por Carlos Costa, todos funcionários clandestinos do Partido.

Reactivava-se, por outro lado e de vez em quando, um frutuoso tipo de amplos convívios vindos desde a segunda metade dos anos Sessenta, entre estudantes e conhecidos lutadores antifascistas, em certas "repúblicas" académicas - além de outras e em especial o Quimbo dos Sobas, também os Mil-Y-Onários, a Ay-Ó-Linda, a Rás-Te-Parta e depois, com particular relevância, a Cinco de Outubro. Em ambos esses períodos, a par igualmente de quase diárias e tradicionais tertúlias democráticas, de café e outras, com destaque para o Ateneu, a Clepsidra e A Brasileira.

Eram pois bastantes e significativos os debates abertos e outras realizações de vários tipos - mormente culturais, de conteúdo antifascista e contra a guerra colonial - que iam acontecendo, embora não expressamente políticos quanto aos públicos, como no Ateneu.

Assim, desde o Outono de 1971 ou 1972, neste enquadramento e mercê de iniciativas da UEC e do PCP, tornou-se possível e consolidou-se um numeroso núcleo dinamizador composto por elementos daquelas origens políticas e outros democratas. O Movimento Democrático de Coimbra, como veio a chamar-se, adquiriu então uma renovada e importante dinâmica, com alguns métodos novos e muita gente nova - cujos nomes seriam longos de enumerar - mas também com relevantes contributos e experiências anteriores e que em parte persistiam.

Num outro ângulo, devem apontar-se também nessa mesma época não propriamente a ASP ou, depois, o entretanto criado PS, porque sem peso orgânico ou dinamizador, mas sim e acompanhando no essencial várias das lutas e acções unitárias do MDC alguns socialistas individualmente considerados: Maria Judite Mendes de Abreu, Fernando Vale e António Campos. E, claro, contando-se com a adesão maior ou menor de vários outros antifascistas, desta e de diferentes ou não definidas tendências.

Entre muitas outras expressões práticas de tudo isto, anteriores e posteriores àquela redinamização, podem apontar-se: a pré-existente Comissão de Socorro aos Presos Políticos; reiteradas movimentações estudantis (algumas reprimidas e suscitando solidariedades de advogados e outras); a participação no Congresso da Oposição Democrática em Aveiro e na sua preparação (1972 e 1973), inclusive com caravanas automóveis organizadas; as campanhas de recenseamento e eleitoral em 1973 (abrindo um gabinete e uma sede, com agitação, propaganda e outras acções de vulto, como caravanas, comícios - superlotado e arrebatador o de encerramento - e outras sessões mas com rejeição às urnas-burla); várias outras lutas mobilizadas directa ou indirectamente através de grandes abaixo-assinados contra a carestia de vida, contra a falta de segurança das automotoras da CP na linha da Lousã e pela defesa do pequeno comércio, esta até com cariz quase grevístico. Tudo a par ainda de uma muito apreciável reactivação do movimento sindical livre, que vinha a acentuar-se em termos de organização, com bons contributos locais à criação da Intersindical e com lutas próprias.

Já em 1974, além de diversas acções em curso como as apontadas e por meio de muitos dos seus membros, o MDC fomentou ainda a organização das comemorações do 31 de Janeiro em Coimbra (que todavia vieram a ser proibidas) e em Março participou na homenagem à professora Cristina Torres, destacada democrata figueirense. Com adesões alargadas, embora de tipos diversos, estas duas iniciativas tiveram apoios mesmo entre alguns dos que de longa data vinham recuando e dificultando por diferentes formas.

É que - agravando as dificuldades de constituição da lista de candidatos a deputados em 1973, resultantes de alguns dos seus activistas estarem impedidos de a integrarem por terem os direitos políticos cortados ou situações equiparáveis - havia outras, aliás antigas.

Com causas muito concretas: o individualismo elitista e até o obstrucionismo revelados por meia dúzia de figuras, algumas com projecção pública mas indisponíveis para se organizarem então numa linha colectiva e de massas (ao arrepio, diga-se, de parte considerável dos seus próprios passados políticos), tal como o demissionismo dessas e de duas ou três outras tocadas por radicalismos verbais e inoperantes a esse tempo captados de Argel via rádio. Afinal, todas elas ultrapassadas e desconfortadas por uma dinâmica que lhes fugia das mãos, mas mantendo influências desmobilizadoras. Agiam habitualmente dessa forma, não obstante pontual erro numa reunião preparatória da lista - condicionado por aquela conduta, mas não conseguido ou podido evitar - e mesmo os seus outros méritos e algumas das suas posteriores prestações políticas no período pós-revolução.

Nesse circunstancialismo, acabara por surgir um novo conceito (ou expressão), o de "democrata activo", com que o MDC combatia o silêncio propugnado pelos auto-excluídos, o qual veio a ser usado num documento colectivo da candidatura, já em Outubro, e para cuja redacção contribuí nessa parte:

"Passou o tempo de ser democrata para - com ou sem eleições, com ou sem campanhas eleitorais - se ser democrata activo: antes, durante e para além dos seus períodos", pois "o único caminho é o da luta efectiva, permanente e unida dos democratas".

O êxito das acções levadas a cabo na campanha eleitoral de 1973, apesar da não desejada menor abertura da lista, bem como as lutas desencadeadas antes e nos meses seguintes impuseram o inequívoco prestígio do Movimento e reforçaram sem dúvida a experiência de muitos activistas, criando-a em alguns dos neófitos também.

Deste modo, havia extensas camadas populares sensibilizadas para agirem e os que constituíamos a área dinamizadora do MDC estávamos preparados para e sabíamos muito bem o que fazer quando se verificasse a hora decisiva (como veio a ser o 25 de Abril de 1974), de resto tal como havíamos feito em muitas outras, não decisivas mas adequadas: designadamente, pôr o Povo nas ruas.

Ora, para além da natural efervescência nas conversas de rua, da incerteza quanto ao verdadeiro sentido do que estava a acontecer, da busca de notícias pela rádio e pela televisão, de movimentos frenéticos de pides e da ousadia do governador civil ao reunir alguns presidentes de câmaras do distrito, segundo disse, e publicar um comunicado de fidelidade a Marcelo Caetano (fazendo mesmo ordenar ao jornal diário local, e por este sendo obedecido, que por ele fosse substituída a pequena nota que sobre o "pronunciamento" militar fora afixada no respectivo placard), a revolução quase não se sentiu em Coimbra no seu primeiro dia.

Mas algo se movimentara durante a noite. Álvaro Matos, militante do PCP, hoje advogado em Coimbra e então oficial miliciano na Figueira da Foz, estava aí ligado ao MFA através do capitão Dinis de Almeida (que na madrugada revolucionária comandou uma das forças para Lisboa) e nessa qualidade era responsável por contactos com civis locais em missões de vigilância e segurança.

Informado na véspera acerca da iminência da acção militar, viu-se na necessidade de vir no fim de jantar a Coimbra, em cuja residência familiar guardava a imprensa do PCP destinada à região das Beiras nesse mês. Um eventual desaire do movimento dos capitães poderia levá-lo à prisão e, por tabela, atingir o Partido se em sua casa fosse encontrado pela PIDE todo aquele material.

Houve pois que avisar Carlos Fraião, a sua ligação partidária, e tomarem as medidas que se impunham. Depois regressou à "praia da claridade" e Fraião dedicou-se a outras diligências exigidas pelas circunstâncias.

Quanto a mim, só quase a meio da manhã me chegou a notícia do que se passava em Lisboa. De imediato fui para a rua e falei com numerosas pessoas, mas não consegui encontrar outros dos principais activistas democráticos.

Só na primeira metade da tarde me apareceu Victor Costa, quase de certeza no café A Brasileira. E, como só muito mais tarde vim a saber, estava marcada para essa manhã, fora de Coimbra, uma reunião do comité local do PCP. Para lá haviam ido ele e, mal dormido, Carlos Fraião, tendo-se ambos encontrado e discutido a situação com António Lopes. Daí, no que a esses respeita, não ter eu conseguido avistá-los antes.

Com a opinião também e pelo menos do comerciante Aurélio Santos, outro membro do MDC, trocámos impressões e logo ponderámos se seria viável promover uma manifestação popular de apoio à revolução. Considerámos que sim, em princípio, e apontámos para o dia seguinte às 18 ou 19 horas, a partir da Praça da República, caso viesse a confirmar-se a existência de ambiente para isso. Como tudo era ainda bastante incerto e em 26 de manhã eu tinha um serviço judicial inadiável longe de Coimbra, ficou combinado que eles avançariam se aquela ambiência se verificasse e eu iria de tarde, logo que pudesse, para o dito local apalavrado.

E assim foi.

Aurélio Santos, pessoa muito inserida no meio comercial da cidade e que aliás vinha liderando vários movimentos da sua classe profissional, melhor do que ninguém se apercebeu da receptividade popular à nossa ideia e no dia seguinte, à hora de almoço, foi à Clepsidra informar disto Victor Costa, aí chegado pouco após Manuel Matos (hoje engenheiro e então responsável pelos aparelhos técnicos da UEC e do MDC).

Na sequência do falado na véspera, concretamente lhes dizendo que na Baixa da cidade estava "tudo em polvorosa", havia um "ambiente explosivo" e ele próprio já começara a avisar as pessoas para, a partir das 18 horas, aparecerem na Praça da República. O primeiro cochichou rapidamente com Fraião, também presente, e de imediato encarregou o segundo de fazer as necessárias tarjetas convocatórias, subscritas pelo MDC.

Era o ruir da paz podre que entretanto se vivera em Coimbra.

Impressas a copiógrafo e distribuídas aquelas, cerca das 16 horas, preparados também alguns dísticos para a manifestação (nomeadamente com a palavra "Socialismo"), fez-se de seguida um contacto com o brigadeiro comandante da Região Militar do Centro, informando-o do que ia suceder e responsabilizando-o com vista a que não houvesse qualquer intimidação ou repressão policial, para o que acabou por prometer ficar vigilante.

Sim, porque mesmo ele não se definia como apoiante do MFA ou da Junta de Salvação Nacional, usando palavras ambíguas, e todas as estruturas fascistas da cidade permaneciam incólumes. Além do provocatório e público comunicado do governador civil, o emissor regional tinha sido desligado da rede nacional, sendo a programação colocada sob tutela local. Ademais, como só mais tarde veio a saber-se por testemunho oral do então major Lestro Henriques, dias após colocado como delegado do MFA em Coimbra e como comandante distrital da PSP, o 2º comandante desta havia recebido ordem (que não cumpriu) para dinamitar a ponte de Montemor-o-Velho.

A essa hora, já Victor Costa e Fraião se haviam encontrado de novo na Curia com António Lopes e Carlos Luís Figueira, recebendo e trazendo destes o primeiro comunicado da Comissão Executiva do PCP, após o 25 de Abril. E que de imediato passou a ser distribuído em frente à Igreja de Santa Cruz, a dois passos do quilómetro zero do concelho, e noutros locais, por António Martins, comunista então organizado na UEC e hoje professor da Faculdade de Ciências, e por outros jovens.

Entretanto, realizava-se também uma Assembleia Magna no jardim da Associação Académica, junto à Praça da República, a qual foi suspensa para os estudantes se incorporarem na manifestação.

Às 19 horas era já grande, pois, a multidão ali aglomerada, sobretudo juvenil.

Calhou-me a incumbência de fazer uma brevíssima alocução e recordo-me designadamente das seguintes palavras, ditas do varandim do Teatro Gil Vicente, anexo àquela Associação:

- O fascismo apanhou um soco na boca do estômago, está encolhido, mas ainda não está derrubado. Pertence agora a nós, pertence ao Povo acabar de o atirar ao chão. Nesse sentido, vamos pois para a Baixa em manifestação.

E esta engrossou com sempre crescentes milhares de pessoas ao longo do percurso, descendo a Avenida Sá da Bandeira e dando a volta pela Rua da Sofia e pela Avenida Fernão de Magalhães até ao central Largo da Portagem, nas vizinhanças do Governo Civil, deste modo confrontado e desautorizado.

A revolução chegara finalmente a Coimbra. E já de algum modo, usando a expressão que depois se popularizou, com a "Aliança Povo-MFA" avant la lettre.

Era aquele apenas o nosso objectivo imediato, com regresso pela Rua Ferreira Borges, voltando a subir até à Praça da República e aí desmobilizando. Mas as massas em movimento ganham sempre uma dinâmica própria.

E assim é que uma parte substancial dos manifestantes prosseguiu pelas próximas Ruas Tenente Valadim e Antero de Quental, indo postar-se hostilmente diante da sede da PIDE (DGS, com Marcelo Caetano) e aí se mantendo pela noite fora.

Criando aliás uma situação perigosa. Os pides estavam armados, os vizinhos já os tinham visto na varanda do respectivo pátio das traseiras com armas de fogo apontadas à Praça da República e à Associação Académica, que dali são dominadas. E viram igualmente o fumo de papéis queimados (necessariamente comprometedores) num bidon, onde depois os jornalistas vieram a encontrar restos de cinzas fumegantes.

Entretanto, passava da hora de jantar e muitos activistas do MDC concentraram-se no Ateneu de Coimbra, prestigiada colectividade popular e cultural de grandes tradições democráticas, onde se instalou uma espécie de "posto de comando".

Enquanto especialmente eu coordenava uma reunião de análise à situação política e quanto a formas de actuação, Victor Costa meteu-se na sala da Direcção do clube, agarrado grande parte da noite ao telefone e fazendo contactos, primeiro com o Rádio Clube Português (já então designado Rádio Liberdade) e depois com o comando do MFA, através do Quartel Mestre General.

Por outro lado, íamos recebendo e enviando emissários de algumas unidades militares onde conhecíamos oficiais milicianos anti-fascistas, inclusive alguns membros da UEC (por exemplo, Serpa Soares, hoje médico em Castelo de Vide, e Virgílio Ribeiro, hoje advogado em Alcobaça).

Do nosso lado, nos telefonemas, insistíamos na imperiosa necessidade e urgência de que o MFA deslocasse forças para Coimbra. Era respondido que esta região não tinha militarmente prioridade estratégica e só estava previsto o envio de uma companhia de paraquedistas "lá para domingo".

O nosso ponto de vista era diferente. Tinha-a politicamente. Pela própria importância de Coimbra como cidade, pelas suas projecção e tradição culturais e de lutas democráticas e estudantis, muito em especial porque o povo estava nas ruas, as estruturas fascistas continuavam completamente de pé e o cerco entretanto feito à sede da PIDE podia mesmo propiciar a esta o desencadeamento de acontecimentos graves, tanto mais que a PSP veio durante a noite a colocar-se em anel rodeando os populares.

Entrementes, soubemos por aqueles dois milicianos (e outros havia) que alguns oficiais do quadro no RAL (Regimento de Artilharia Ligeira), ou do CICA (Centro de Instrução de Condutores Auto), em Santa Clara, nomeadamente os capitães Pereirinha e Pegado, estavam dispostos a sair à rua (na linguagem por eles e por nós usada e transmitida ao Quartel Mestre, estavam "sobre rodas") a fim de alterar a situação, em especial cercar a PIDE e proteger as pessoas lá concentradas. Mas pretendiam receber ordens por via hierárquica.

Pelo telefone do Ateneu foi transmitido este "recado". Os nossos emissários assistiram aos telefonemas e foram informar os militares dispostos a actuar. Por força do "recado" e daquela argumentação, as ordens foram dadas alta madrugada e, sob o comando de Pegado, a PSP foi desalojada, sendo o cerco militar efectivado então entre os populares, protegendo-os, e o próprio edifício da PIDE. Ao mesmo tempo que essa, outras forças do CICA foram ocupar a sede da Legião Portuguesa (ao lado do Governo Civil) e ocupar as antenas do Trevim (Lousã), repondo as ligações nacionais de rádio.

Diga-se mais: foram acções levadas a cabo por militares que, todos ou alguns, ainda não eram do MFA, que não estavam anteriormente comprometidos com nem tinham participado no "golpe", mas que aderiram, como em muitos outros lados, alargando-o e dando-lhe características de um outro tipo de movimento e de revolução, mesmo só no plano militar. Como aliás também em Coimbra se viu especialmente no 1º de Maio seguinte, conforme adiante se aludirá.

Mas também por catálise popular e por forças políticas organizadas e de Esquerda, como eram o PCP, a UEC e o MDC.

O dia 27 nasceu com um entusiástico avolumar de gente junto à sede da PIDE, num cerco contínuo e crescente. Então e enquanto a multidão aí se manteve, até à retirada dos pides no dia imediato, funcionou como verdadeira assembleia popular permanente, que vários de nós visitavam de vez em quando ou aí se mantinham prolongadamente, fazendo intervenções e apresentando moções políticas que eram aprovadas, transmitidas a várias entidades e publicitadas.

Por força dos telefonemas nocturnos, também pouco antes das 14 horas desse dia 27, sábado (e não só no anunciado "lá para domingo"), chegou uma força de paraquedistas, em vários veículos motorizados e comandada pelo tenente-coronel Rafael Durão, representando a Junta de Salvação Nacional e que afastou e substituiu o anterior comandante da Região Militar. A meio da tarde, eu, Victor Costa e Carlos Fraião fomos cumprimentá-lo em nome do MDC (ainda a única força política antifascista clara e legalmente visível), estabelecendo desde logo um óptimo relacionamento, que influiu em tudo o que se seguiu.

A nossa rápida recepção foi aliás facilitada por uma diligência prévia do médico Lousã Henriques perante o 2º comandante paraquedista, de quem fora colega.

Em certa altura, um enorme alarido junto à sede da PIDE, situada na mesma rua e a cerca de cem metros do quartel general, trouxe-nos cá fora. Mas tudo estava normal.

Quando muito, como sucedeu nesses dois dias, alguns populares mais exaltados teriam virado um ou outro automóvel dos pides, estacionado nas imediações.

Durão, preocupado com este estado de coisas, não sabia bem o que fazer, propondo-se ouvir os pides um a um, para avaliar as culpas de cada, o que faria prolongar imenso tempo essa mesma situação.

O nosso conselho foi imediato:

- Não se meta nisso, mande-os quanto antes para Caxias ou Peniche e eles que sejam interrogados lá.

E assim sucedeu. Um dia depois, foi feito o transporte. Entretanto, alguns outros pides vieram a ser detidos quando confiantes se apresentavam na sua sede, ainda em 27.

Neste mesmo dia, foi também lançado um importante manifesto do MDC, depois divulgado largamente.

No domingo, alguns de nós (que me lembre, eu, Regina Carvalheiro, Victor Costa, Carlos Fraião, João Vilar e Luís Carlos Januário) fomos para Lisboa, aí participando num primeiro encontro nacional de delegados democráticos de vários pontos do país, onde se definiram linhas de actuação.

Recordo bem a chegada e a travessia da capital no início da manhã, cruzando com soldados empunhando armas com os célebres cravos vermelhos enfiados nos canos.

A revolução dos cravos Bem vistas as coisas, quanto a este aspecto, uma ocasional reinvenção do que, ao que se conta, já haviam feito os soldados liberais comandados pelo então futuro rei D. Pedro IV quando, desembarcados perto do Mindelo, em 8/7/1832, avançaram sobre o Porto e aí entraram no dia seguinte, colhendo pelo caminho e enfiando hortênsias nos canos das espingardas; claro que num contexto qualitativamente diferente e sem a dinâmica da interacção de povo, militares e flores.

Na reunião, efectuada num apartamento à beira da Avenida Infante Santo, havia também uma delegação oficial do PCP (António Dias Lourenço, José Magro, José Bernardino e Rogério Carvalho), mas não do PS.

Todavia, após insistentes telefonemas de Urbano Tavares Rodrigues para Salgado Zenha, às tantas e só a meio da tarde, apareceram fugazmente Mário Soares, Zenha, Sottomayor Cardia, Ramos da Costa e creio que Tito de Morais,

apenas para marcar presença, logo se retirando. Mário Soares saudou e explicou não poderem participar por estarem numa reunião do seu próprio Partido, ter ido cumprimentar Spínola e, por maioria de razão, devia vir fazê-lo aos seus companheiros de luta e resistência ao fascismo.

Já aí se percebia a importância que davam à acção unitária.

Mas houve abraços de quem não se encontrava há muito tempo. Por exemplo, mesmo à minha frente, Ramos da Costa dirigiu-se a José Magro tratando-o por antigo pseudónimo da clandestinidade e dizendo qualquer coisa como isto:

- Agora, unidade para sempre!

Resposta pronta e seca de Magro, própria de quem se sente gato escaldado:

- A ver vamos, a ver vamos.

E viu-se

Nesse mesmo dia, em Coimbra, Rafael Durão desmantelava a PIDE, exportando os agentes detidos para Caxias com enorme gáudio dos populares que assistiam à sua saída do respectivo edifício e entrada para o veículo de transporte. E ocupava a Cidadela, cooperativa de jovens fascistas activos.

Alfredo Misarela e outros cooperavam localmente com Durão e informavam-nos por telefone para Lisboa acerca do que se ia passando.

Nomeadamente, a sede da Acção Nacional Popular, travesti caetanista da União Nacional salazarista, instalada no Páteo da Inquisição, foi ocupada de tarde e entregue ao MDC. Em contrapartida e provocatoriamente, a Universidade era encerrada pelo reitor Cotelo Neiva, sem nada que o justificasse.

Regressámos de madrugada. Logo na manhã dessa segunda-feira, 29, cerca das dez horas, foi efectuada no largo em frente à Porta Férrea (vulgo: Largo das Mamudas) uma reunião geral de docentes e investigadores, de estudantes e de funcionários: os que apareceram por mobilização da UEC e de outros democratas, alguns convocados talvez mesmo com tarjetas, e os que, dirigindo-se às suas actividades normais, ali se depararam surpreendidos com as portas da Universidade fechadas.

À hora de abertura do comércio, às nove horas, já João Vilar fora comprar um megafone, objecto de venda até então altamente condicionada. E Victor Costa, encarrapitado no plinto de uma das estátuas, pôde assim falar com facilidade e expor uma proposta logo aprovada e levada à prática: eleger-se uma comissão tripartida em representação dos três apontados sectores, de imediato reunidos separadamente para o efeito, que assumiria a gestão corrente e garantiria a normalidade da vida universitária (para cuja presidência foi escolhido o Prof. Teixeira Ribeiro, dias depois reitor), devendo para tal contactar de seguida Rafael Durão para obter o seu acordo.

Tudo isto cumprido, no início da tarde a Universidade estava aberta e funcionava regularmente, assim tendo sido frustrada mais uma tentativa de desestabilização fascista em Coimbra.

Após uma noite quase sem dormir e regressado de mais um julgamento feito à pressa em Soure, no fim do almoço e uma vez mais na Brasileira, meu local habitual de tomar a bica, falando com vários dos amigos de tertúlia, entre eles o bancário Pires Rocha, como todos apoiante do MDC, expliquei em breves minutos o que na véspera se decidira em Lisboa, mormente quanto aos órgãos autárquicos e à forma de actuar a seu respeito.

Tão bem apreendeu a linha traçada que a meio da tarde estava a caminho de Condeixa, sua terra natal e situada a pouco mais de uma dúzia de quilómetros de Coimbra, mobilizando gente para depois do jantar se concentrar nas instalações da Câmara Municipal. E aí se fez então um plenário popular que apeou a câmara fascista e elegeu uma comissão administrativa constituída por democratas e presidida por João Pimentel Neves.

Creio que foi a primeira em todo o país.

Por outro lado, em 29 e 30, várias entidades colectivas (públicas e privadas) manifestavam públicos apoios ao novo poder constituído. As que de tal careciam reestruturavam-se em termos democráticos.

A Associação Académica, encerrada pelo poder fascista desde antes da revolução, realizou uma enorme Assembleia Magna no dia 30, na qual se destacou como orador José Roupiço Simões, dirigente da UEC acabado de surdir da clandestinidade, a que fora forçado pela PIDE anos antes, interrompendo então os estudos. E que já tivera um importante e mal conhecido papel (como os de outros) no movimento estudantil de 1969 - de que também e assim se tem feito quase apenas a história visível.

Nesses mesmos dias, já com facilidades de contactos e de reuniões no Páteo da Inquisição, e aí reunindo unitariamente democratas de todo o distrito e de todas as tendências, preparou-se o 1º de Maio em conjunto com o movimento sindical democratizado (o qual tinha naturalmente a seu cargo essa especial tarefa) e a substituição das outras câmaras do distrito. Mas esse bom ambiente de reuniões unitárias na ex-sede da União Nacional foi sol de pouca dura, pois o PS em breve passou a impedir os seus filiados de nelas participarem, hostilizando mesmo o MDC.

Nomeadamente para aquele dia, conseguiu-se preparar e realizar manifestações e saneamentos de câmaras em mais uns seis concelhos - salvo erro Coimbra, Figueira da Foz, Penacova, Arganil, Oliveira do Hospital e Mira. Desejávamos e necessitávamos , claro, do reconhecimento de Durão, como veio a concretizar-se de imediato quanto a Condeixa e depois quanto a todas as restantes.

Para Coimbra, organizámos uma lista presidida pelo professor universitário Rui Carrington e com elementos de diferentes sensibilidades, inclusive do movimento sindical. Aliás com manifestações de obreirismo por parte de alguns sindicalistas, que pretendiam que fossem os próprios sindicatos a gerir a câmara... A lista seria sujeita a votação no comício do dia 1.

Quanto ao plano comum de saneamento de câmaras, em concreto a de Coimbra, que de início perturbou o representante da Junta de Salvação Nacional, foi-lhe o mesmo exposto por Victor Costa, que concluiu:

- Só há uma dificuldade a ultrapassar, garantir o acesso aos paços do concelho, caso se decida o saneamento.

Convencido já, aí falou o militar:

- Deixem isso comigo. Isso resolvo já eu.

E pegou de imediato no telefone, mandou ligar ao engenheiro Araújo Vieira, presidente da última câmara fascista, dizendo-lhe em tom de comando:

- A partir das 16 horas, o senhor está na Câmara para garantir a abertura da porta.

Assim foi, após uma gigantesca manifestação de muitos milhares de pessoas, seguramente a maior de sempre em Coimbra, convocada pelo MDC através dos jornais e de milhentas tarjetas espalhadas nas freguesias urbanas e rurais. Percorreu várias ruas da cidade até ao estádio universitário, no lado sul do Mondego, onde teve lugar um grandioso comício em cujo final aquela lista foi apresentada e aprovada unanimemente por aclamação.

O próprio Durão participou e quando o desfile passava em frente ao comando da PSP, já assumido pelo delegado do MFA, Lestro Henriques, os manifestantes foram saudados por uma exibição musical da banda da polícia, que de seguida se incorporou no cortejo.

Outro ponto alto do comício foi o aparecimento, e o entusiasmo que causou, de uma coluna com centenas de militares autocomandada, marchando em formatura e levando na frente um marinheiro que empunhava uma bandeira vermelha com a foice e o martelo a ouro.

Esse marujo pegara-a das muitas então distribuídas e que durante a noite o comité de mulheres do PCP e outros elementos haviam estado a fazer no Ateneu.

Era uma vez mais o levantamento militar, para além das meras acções operacionais, ainda que basilares, organizadas pelos capitães.

Houve ainda os previsíveis discursos (Durão, Costa e Roque, respectivamente pelo MFA, pelo MDC e pelos sindicatos), em que também, pela voz de António Lopes e já não em simples folhetos, apareceu o PCP pela primeira vez em público em Coimbra.

Neste momento, surpreso e a meu lado, um membro do PS perguntou-me se também podia falar, o que fez após a minha óbvia resposta, de algo como isto:

- Claro que sim!

Com semelhantes substituições de câmaras que se verificaram como planeado, e de outras posteriores com processos idênticos, nos dezassete concelhos do distrito de Coimbra e em meados de Maio restavam apenas três para serem saneadas (Góis, Tábua e Pampilhosa da Serra).

O nosso foi de tal modo pioneiro, rápido e experiente neste tipo de acções, que alguns de nós foram solicitados por democratas de outros distritos, inclusive com deslocações para reuniões nesse sentido, a fim de "ensinar" como se saneava uma câmara fascista.

A par dos cravos vermelhos, em Coimbra e nas outras localidades onde houve manifestações do 1ª de Maio, abundavam os autocolantes do MDC.

Nas minhas mãos e nas de outros dos seus activistas, durante o percurso para o comício apareceu o já falado megafone, coisa indisponível (e invejável) para antifascistas antes do 25 de Abril e que se tornou depois vulgar em outras manifestações do período revolucionário. No imediato causou mesmo um misto de espanto e frustração em alguém que em Outubro ainda rondava o silêncio mas agora, embora na unidade própria do dia, já ia pensando nas suas diferenciações partidárias:

- Empresta-me isso? Posso utilizá-lo?

- Ó homem, à vontade!

Este era o espírito de então, todos éramos democratas e anti-fascistas (mesmo um que eu nunca imaginara de cravo vermelho ao peito ou outro que se me intitulou de "neo-democrata").

O 1º de Maio é data universal dos trabalhadores, símbolo das suas lutas e dos direitos sociais e laborais.

Mas em Portugal, em Coimbra como no resto do país, em 1974 tornou-se mais do que isso e como pretendíamos: a consagração popular e a consolidação da revolução.

Um ou dois dias depois, como já contei noutro lugar, Carlos Luís Figueira e António Lopes (revolucionários profissionais, recém-saídos da clandestinidade) e eu próprio procurávamos encontrar um local para sede do PCP ("centro de trabalho", como as circunstâncias da época levaram a baptizá-las), e que aliás logo conseguimos arrendar.

O trabalho unitário ia continuar na medida do possível (e com as amplitudes possíveis) no Páteo da Inquisição e por outras vias.

Mas fechava-se um ciclo e outro se abria. Muito mais poderia continuar a contar no desenvolvimento da revolução. Por agora, há que ficar por aqui.

Estamos num ano especial quanto às suas comemorações (um quarto de século passou).

Pode comemorar-se de muitas maneiras, porventura também com recordações singelas de pequenos factos locais como estes.

Contra certas más consciências e usando a linguagem de um recentíssimo e promovido livro, trata-se não apenas de amar "a História com H grande" e sim de procurar contribuir, por forma tão conscienciosa quanto possível, para melhor se conhecer "a história que verdadeiramente acontece". Só que, ao contrário do critério nesse livro defendido, quem pode sentir-se incomodado e "em relação difícil" com esta - concretamente com vários aspectos do que realmente aconteceu em Coimbra e agora foi evocado - são precisamente alguns de postura oposta à aqui assumida e atacada com aquela fraseologia.

Importa por isso e sobretudo (e sem dúvida bastante se fez este ano nesse sentido, do que também tenho alguma experiência pessoal) levar aos jovens, em especial nas escolas, mas não só, o conhecimento do que foi a ditadura fascista, do que foi a luta contra ela, de como há que desenvolver no mundo de hoje (como com aquela luta e a revolução se fez) os valores da Democracia e da Paz e o que do 25 de Abril ficou de válido. Mas também denunciar aquilo em que a revolução foi traída, explicar que mesmo sem ditadura política pode haver (e há) perda e negação de direitos sociais e laborais, exploração do homem pelo homem, obscurantismo cultural e político, adulteração da História (seja com H grande ou com h pequeno) e dos reais papéis dos seus protagonistas, alienação de jovens pelo incutimento da ideologia das "não ideologias", enfim humilhação e submissão de povos aos interesses do capital sem pátria, hoje disfarçado com nomes eufemísticos.

Comemorar Abril é também dizer (e desenvolver) tudo isto.

Mas mínimo dos mínimos é não o deixar só para um dia ou uma semana do ano, é não o deixar só para os programas escolares de História, é garantir o desenvolvimento do tema sem que faltas de "tempo" ou outras "razões" o minimizem na prática. É fazer valer permanentemente aqueles valores no dia a dia, sempre e a propósito de tudo.

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