Rasgar Coimbra ou a estratégia da sedução

27-04-2004
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Rasgar Coimbra Ou a Estratégia da Sedução

Sábado, 07 de Fevereiro de 2004

%Nuno Franco

Imagine-se uma sala de cinema, a projecção de um filme sobre uma cidade conhecida, mas transformada, tornada outra pelos poderes infernais da arquitectura, da natureza, do homem. Há qualquer coisa que reconhecemos, são os pontos de apoio onde a visão se agarra antes de empreender uma viagem por um mundo romântico, histórico, douto, contemporâneo. As personagens alinham-se e assumem os seus papéis, são os transeuntes, os edifícios, as nuvens, as ruas que num movimento lancinante se atiram contra a retina e não a abandonam mais. "Os velhos doutores" vestem outros trajes, a cidade antiga, dos amores impossíveis e das capas negras, cede ao tempo presente para com ele proceder a mais um movimento de sublime sedução, de erotismo arrebatador. São imagens que criam planos, realizam cisões, alteram a percepção e convidam a imaginação a colocar-se no centro do todo para que nesse lugar as transformações e exercícios do olhar possam acontecer.

Trata-se de "SMS: SOS. A nova visualidade de Coimbra" concebido e organizado por Jorge Figueira. É um livro, e não um filme, que fala de uma nova cidade, imaginada, fotografada, escrita, construída, vivida. Mas fala como quem conta uma história e envolve o leitor, neste caso o visitante, na mais esplêndida aventura. Tratou-se de "imaginar, saindo do lugar comum e baseado em níveis de realismo diferentes, uma nova visualidade para a cidade e fazê-lo não partindo de utopias, mas antes das entranhas que existem na cidade, dentro do território, da cultura e não contra ela", diz o organizador. São dez capítulos e em cada um acontece, porque se trata de um acontecimento e não de uma proposta literária, um novo olhar sobre uma cultura, uma história, uma cidade. Arquitectura, fotografia, música, artes plásticas e cinema, simultaneamente, cedem ao convite e revelam novas cores, novos sons, novas imagens em que "o denominador comum é a cidade que envolve o olhar e onde o protagonista são edifícios" acrescenta Figueira.

Logo no texto de abertura de Jorge Figueira é-se colocado na pista correcta de decifração deste conjunto invulgar de elementos, feito de conjunções, justaposições e em que o 'ontem' surge vestido de 'hoje' e o amanhã como a certeza de uma promessa. Sobre o misterioso título lê-se: "enviar um SMS transformou-se num hábito como antes se costumava fumar; letras arriscadas em pequenas teclas de um pequeno instrumento que ontem não existia. Enviar um SOS significa que estamos perante um iceberg, ou outras fatalidades antigas... SMS: SOS significa a união de tecnologias, o cruzamento de tempos. É um deslizamento, um rasganço" (p.15) E o conceito de "rasganço" torna-se capital para a plena realização ou, se se preferir, visualização da acção. Simultaneamente, a cidade e o leitor são rasgados, não para os dilacerar e deixar sem vida, mas com o objectivo de os construir mutuamente. É um movimento congénere: rasgar implica coser, voltar a unir, repor a ordem inicial e é assim que se pode ler esta arte de fazer cidades que é também uma arte de criar comunidades políticas, sociais, humanas.

A arquitectura surge como "medicina incerta" a qual podemos traduzir como gesto fundador, o primeiro momento que dá origem a uma sucessão de transformações ou mesmo criações demiúrgicas, é como se a trama do tecido que é a paisagem visual das cidades fosse urdida sob a pedra, o betão, as janelas e as varandas, nas avenidas que traçam linhas no horizonte e "rasgam" o solo de maneira a conseguirem oferecer um novo apoio terreno aos que vivem hoje e aos ainda sem rosto, mas que sabemos um dia irem habitar o mesmo plano. A cidade nasce e cresce a dois tempos, num primeiro como abrigo ou habitat do presente que cuida e trata do existente sob a terra e na terra, no seguinte é fruto da esperança, tida como certeza, que outros seguirão os passos terrenos dos humanos o que faz surgir a visão das cidades à luz da herança - trata-se do sinal que outros vão nascer, o mistério da natalidade (recorde-se Walter Benjamin e as suas anotações sobre a cidade de Paris). Esta expectativa traduz-se na construção de um esquema sedutor das gentes e dos tempos. Talvez seja este o papel do Atelier do Corvo de Carlos Antunes e Désirée Pedro, os grandes sedutores da enorme comunidade dos que ainda não nasceram, nos seus projectos são ideias do futuro que são construídas permitindo "imaginar o projecto de arquitectura como um instrumento ágil e perturbador na inventariação e reinvenção de uma geografia global" (p. 156)

Paulo Varela Gomes e Paulo Freire apresentam um novo céu: são fotografias de Coimbra onde o céu parece colar-se à pele daquele que um dia por aí passar. Jorge Figueira em "today's most popular brands" dá-a-ver as marcas de um tempo futuro que existe hoje, é a emergência de uma nova expressão ou voz, uma nova linguagem ou retórica: o Parque Verde do Mondego, o Colégio das Artes, as universidades construídas de fresco são novos elementos donde se parte para a (re)construção de uma identidade, de um sentimento de pertença. A crise estudantil de 1969 é o acontecimento resgatado do esquecimento na lógica do "rasganço" físico, intimo, definitivo, trata-se, novamente, de uma herança que faz parte da construção de uma identidade e a emergência do novo assume esses gestos como símbolos de um passado que é preciso rever e requalificar. Não esquecendo a presença da arte contemporânea na cidade, Victor Diniz, numa bela apresentação, refaz a história das instituições e eventos locais. Também a música, desde Lou Reed aos grupos pós 25 de Abril, é revista à luz da emergência de uma nova visualidade e de uma nova cultura marcada pelas imagens. Mas no conjunto a procura é pelos sinais dessa vitalidade constante no tecido urbano constituído por obras, sons, harmonias e dissonâncias.

"Out of focus" é, talvez, o capítulo em que melhor se pode observar a intenção de salvar a velha Coimbra dos clichés e, sem a tocar, sem a anular, sem a esquecer, traze-la à superfície. Catarina Fortuna e Patrícia Almeida descem às profundezas de lugares esquecidos e trazem "o retrato possível de Coimbra" que se faz "de evidentes contrastes e de alguma indefinição. Entre o passado, enquanto legado qualificado da história, ou a persistência atávica de formas anacrónicas, e a actualidade, visualmente imprecisa, genérica e incaracterística" (p. 134). Surpreendente é a contribuição de Luis Urbano que conta a história de um "misterioso realizador" cuja enorme produção cinematográfica, financiada com a sua herança paterna ganha na criação e venda das famosas bolachas Maria, deverá, por disposição testamentária, ficar invisível. Charlie Chaplin, Buster Keaton, Jacques Tati, Monica Vitti, invasões terroristas e futuristas são os elementos da sua "cartografia" de Coimbra - realidade ou ficção, a decisão é melhor ficar em suspenso, o que interessa é o que se mostra, aquilo que é fixado na lente da máquina e no olho da imaginação. A imagem surge aqui como elemento irresistível, cómico, único, luminoso, trata-se de uma espécie de enigma, convite à inteligência para se superar a si própria na decifração dos sinais, das presenças reais e imaginárias.

Rasgar Coimbra Ou a Estratégia da Sedução

Sábado, 07 de Fevereiro de 2004

%Nuno Franco

Imagine-se uma sala de cinema, a projecção de um filme sobre uma cidade conhecida, mas transformada, tornada outra pelos poderes infernais da arquitectura, da natureza, do homem. Há qualquer coisa que reconhecemos, são os pontos de apoio onde a visão se agarra antes de empreender uma viagem por um mundo romântico, histórico, douto, contemporâneo. As personagens alinham-se e assumem os seus papéis, são os transeuntes, os edifícios, as nuvens, as ruas que num movimento lancinante se atiram contra a retina e não a abandonam mais. "Os velhos doutores" vestem outros trajes, a cidade antiga, dos amores impossíveis e das capas negras, cede ao tempo presente para com ele proceder a mais um movimento de sublime sedução, de erotismo arrebatador. São imagens que criam planos, realizam cisões, alteram a percepção e convidam a imaginação a colocar-se no centro do todo para que nesse lugar as transformações e exercícios do olhar possam acontecer.

Trata-se de "SMS: SOS. A nova visualidade de Coimbra" concebido e organizado por Jorge Figueira. É um livro, e não um filme, que fala de uma nova cidade, imaginada, fotografada, escrita, construída, vivida. Mas fala como quem conta uma história e envolve o leitor, neste caso o visitante, na mais esplêndida aventura. Tratou-se de "imaginar, saindo do lugar comum e baseado em níveis de realismo diferentes, uma nova visualidade para a cidade e fazê-lo não partindo de utopias, mas antes das entranhas que existem na cidade, dentro do território, da cultura e não contra ela", diz o organizador. São dez capítulos e em cada um acontece, porque se trata de um acontecimento e não de uma proposta literária, um novo olhar sobre uma cultura, uma história, uma cidade. Arquitectura, fotografia, música, artes plásticas e cinema, simultaneamente, cedem ao convite e revelam novas cores, novos sons, novas imagens em que "o denominador comum é a cidade que envolve o olhar e onde o protagonista são edifícios" acrescenta Figueira.

Logo no texto de abertura de Jorge Figueira é-se colocado na pista correcta de decifração deste conjunto invulgar de elementos, feito de conjunções, justaposições e em que o 'ontem' surge vestido de 'hoje' e o amanhã como a certeza de uma promessa. Sobre o misterioso título lê-se: "enviar um SMS transformou-se num hábito como antes se costumava fumar; letras arriscadas em pequenas teclas de um pequeno instrumento que ontem não existia. Enviar um SOS significa que estamos perante um iceberg, ou outras fatalidades antigas... SMS: SOS significa a união de tecnologias, o cruzamento de tempos. É um deslizamento, um rasganço" (p.15) E o conceito de "rasganço" torna-se capital para a plena realização ou, se se preferir, visualização da acção. Simultaneamente, a cidade e o leitor são rasgados, não para os dilacerar e deixar sem vida, mas com o objectivo de os construir mutuamente. É um movimento congénere: rasgar implica coser, voltar a unir, repor a ordem inicial e é assim que se pode ler esta arte de fazer cidades que é também uma arte de criar comunidades políticas, sociais, humanas.

A arquitectura surge como "medicina incerta" a qual podemos traduzir como gesto fundador, o primeiro momento que dá origem a uma sucessão de transformações ou mesmo criações demiúrgicas, é como se a trama do tecido que é a paisagem visual das cidades fosse urdida sob a pedra, o betão, as janelas e as varandas, nas avenidas que traçam linhas no horizonte e "rasgam" o solo de maneira a conseguirem oferecer um novo apoio terreno aos que vivem hoje e aos ainda sem rosto, mas que sabemos um dia irem habitar o mesmo plano. A cidade nasce e cresce a dois tempos, num primeiro como abrigo ou habitat do presente que cuida e trata do existente sob a terra e na terra, no seguinte é fruto da esperança, tida como certeza, que outros seguirão os passos terrenos dos humanos o que faz surgir a visão das cidades à luz da herança - trata-se do sinal que outros vão nascer, o mistério da natalidade (recorde-se Walter Benjamin e as suas anotações sobre a cidade de Paris). Esta expectativa traduz-se na construção de um esquema sedutor das gentes e dos tempos. Talvez seja este o papel do Atelier do Corvo de Carlos Antunes e Désirée Pedro, os grandes sedutores da enorme comunidade dos que ainda não nasceram, nos seus projectos são ideias do futuro que são construídas permitindo "imaginar o projecto de arquitectura como um instrumento ágil e perturbador na inventariação e reinvenção de uma geografia global" (p. 156)

Paulo Varela Gomes e Paulo Freire apresentam um novo céu: são fotografias de Coimbra onde o céu parece colar-se à pele daquele que um dia por aí passar. Jorge Figueira em "today's most popular brands" dá-a-ver as marcas de um tempo futuro que existe hoje, é a emergência de uma nova expressão ou voz, uma nova linguagem ou retórica: o Parque Verde do Mondego, o Colégio das Artes, as universidades construídas de fresco são novos elementos donde se parte para a (re)construção de uma identidade, de um sentimento de pertença. A crise estudantil de 1969 é o acontecimento resgatado do esquecimento na lógica do "rasganço" físico, intimo, definitivo, trata-se, novamente, de uma herança que faz parte da construção de uma identidade e a emergência do novo assume esses gestos como símbolos de um passado que é preciso rever e requalificar. Não esquecendo a presença da arte contemporânea na cidade, Victor Diniz, numa bela apresentação, refaz a história das instituições e eventos locais. Também a música, desde Lou Reed aos grupos pós 25 de Abril, é revista à luz da emergência de uma nova visualidade e de uma nova cultura marcada pelas imagens. Mas no conjunto a procura é pelos sinais dessa vitalidade constante no tecido urbano constituído por obras, sons, harmonias e dissonâncias.

"Out of focus" é, talvez, o capítulo em que melhor se pode observar a intenção de salvar a velha Coimbra dos clichés e, sem a tocar, sem a anular, sem a esquecer, traze-la à superfície. Catarina Fortuna e Patrícia Almeida descem às profundezas de lugares esquecidos e trazem "o retrato possível de Coimbra" que se faz "de evidentes contrastes e de alguma indefinição. Entre o passado, enquanto legado qualificado da história, ou a persistência atávica de formas anacrónicas, e a actualidade, visualmente imprecisa, genérica e incaracterística" (p. 134). Surpreendente é a contribuição de Luis Urbano que conta a história de um "misterioso realizador" cuja enorme produção cinematográfica, financiada com a sua herança paterna ganha na criação e venda das famosas bolachas Maria, deverá, por disposição testamentária, ficar invisível. Charlie Chaplin, Buster Keaton, Jacques Tati, Monica Vitti, invasões terroristas e futuristas são os elementos da sua "cartografia" de Coimbra - realidade ou ficção, a decisão é melhor ficar em suspenso, o que interessa é o que se mostra, aquilo que é fixado na lente da máquina e no olho da imaginação. A imagem surge aqui como elemento irresistível, cómico, único, luminoso, trata-se de uma espécie de enigma, convite à inteligência para se superar a si própria na decifração dos sinais, das presenças reais e imaginárias.

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