[n] indústria d'arte: Profissões com história(s)

23-07-2004
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Profissões com história(s) - Carlos Antunes, caldeireiro (Castelo Branco)

“É bom não ter concorrência”

Artesão: Carlos Antunes

Profissão: Caldeireiro

Local de trabalho: Rua de São Tiago, Castelo Branco

Rodeado de metais de tons alaranjados e de amarelos reluzentes por toda a oficina, aos 54 anos Carlos Antunes é o último de várias gerações que na região se dedicam à moldagem do cobre e do latão, criando objectos tradicionais com uma utilidade hoje cada vez mais decorativa na cozinha, sala ou adega de qualquer familia portuguesa. Os artefactos ali expostos, cujas formas revelam curvas que se espreguiçam quase até ao infinito, parecem saídos de um típico bazar árabe. Nesta profissão desde os 12 anos, altura em que saiu da Escola Primária da Senhora da Piedade, em Castelo Branco, desde logo Carlos Antunes juntou as suas mãos às do pai, caldeireiro de tradição, e que viera de Alcaíns. “O meu pai comprou aqui a casa, que foi onde eu já nasci e onde comecei a trabalhar. Entre os 12 e os 16 era tipo brincadeira. Ainda era um bocado novito, até que o meu pai me obrigou a ver como fazia, e comecei a ganhar caule nisto”, afirma o caldeireiro, fintando uma peça que aguarda por mais umas pancadas que lhe revelem a forma definitiva. “Era o braço direito dele. Ainda que quizesse estudar, fazia-lhe muita falta, e os empregados eram muito caros”, revela o caldeireiro. “Como era filho dele e tinha de dar continuidade a isto, tive de vir trabalhar para aqui”, explica, deixando transparecer algum constrangimento por não ter podido escolher o seu futuro profissional. “Se aos 15 anos soubesse o que viria a acontecer, já não pegava nisto”, confessa Carlos Antunes, cujos três filhos, dois deles rapazes, não deram continuidade à transmissão do saber de pais para filhos, algo inimaginável há apenas meio século, época em que um progenitor era visto como o melhor mestre dos seus rebentos. “Tínhamos na altura dois empregados. Isto não era rentável para eles e, passado uns tempos, abandonaram isto”, conclui o artesão. No entanto, ainda há pessoas que ocasionalmente vão procurando esta arte ancestral. “O Centro de Emprego pediu-me para dar formação durante um ano, mas a malta era praticamente mais velha do que eu e não aderiu. É um pouco complicado para eles, que não nasceram nisto. Isto só vai lá com tempo, demora anos a aprender e tem de se ter uma certa vocação”, comenta o caldeireiro, enquanto vai surpreendendo a máquina fotográfica com o seu olhar ocupado. Regressando de novo ao passado, o avô deste artesão era já caldeireiro em Alcaíns. “Uns ficaram na vila, outros vieram para Castelo Branco, mas hoje sou o único no distrito, embora ainda lá tenha um famíliar caldeireiro, mas que está já nos setenta e tal anos”, explica Carlos Antunes. Hoje fabrica floreiras, alambiques, caldeiras, bengaleiros, escalfetas, braseiras, lanternas, vasos, entre outros como caços (caçarola que servia para aquecer o leite), cataplanas (uma espécie de tacho com tampa) e alquitarras (alambique de destilação lenta), usando como ferramentas de trabalho maços de madeira, martelos de ferro, uma palanca (para dar forma e fazer cravação), estacas (para moldar as peças e fazer a “bola”), uma bigorna, uma fieira (para meter os arames), um polidor eléctrico ou ainda um paçarico para soldar as peças. Um dia é tudo quanto Carlos Antunes precisa para fazer nascer uma peça específica e única. “O problema, por vezes, é não ter a ferramenta adequada para a fazer. Mas mesmo demorando um pouco mais, em princípio faço-a”, refere o caldeireiro. “Às vezes aparecem encomendas mais difíceis. E como é a primeira vez que as faço, tenho receio de que fiquem mal feitas e que a pessoa não goste”, conclui. Argumentos que não demovem todos aqueles que se deslocam até à Rua de Santiago para comprar os objectivos produzidos por Carlos Antunes. “Há muita gente, e até de Espanha, que aqui vêm em busca de cataplanas e tachos em cobre”, relembra. E caldeireiro que se preze, também repara velharias fabricadas nestes materiais, como é o caso. “São mais pessoas de fora que trazem objectos para restaurar. Não dá muito lucro, mas vai dando alguma coisa. É bom não ter concorrência”, admite Carlos Antunes, lamentando no entanto, provavelmente com alguma ironia, não poder fazer uma exposição dos seus trabalhos, já que estes são logo adquiridos pelos seus clientes. Ainda que sem a luz natural a iluminar-lhe a vitrina, o trabalho de Carlos Antunes prossegue, enfeitiçado por quatro décadas de rotina que continuam a moldar impacientemente os mais valiosos dos materiais: o saber e a imaginação de um artesão como ele.

JORGE COSTA

(publicado no jornal Povo da Beira, nº511 - 18 de Novembro de 2003)

Posted by industriadarte at novembro 18, 2003 05:25 PM

Profissões com história(s) - Carlos Antunes, caldeireiro (Castelo Branco)

“É bom não ter concorrência”

Artesão: Carlos Antunes

Profissão: Caldeireiro

Local de trabalho: Rua de São Tiago, Castelo Branco

Rodeado de metais de tons alaranjados e de amarelos reluzentes por toda a oficina, aos 54 anos Carlos Antunes é o último de várias gerações que na região se dedicam à moldagem do cobre e do latão, criando objectos tradicionais com uma utilidade hoje cada vez mais decorativa na cozinha, sala ou adega de qualquer familia portuguesa. Os artefactos ali expostos, cujas formas revelam curvas que se espreguiçam quase até ao infinito, parecem saídos de um típico bazar árabe. Nesta profissão desde os 12 anos, altura em que saiu da Escola Primária da Senhora da Piedade, em Castelo Branco, desde logo Carlos Antunes juntou as suas mãos às do pai, caldeireiro de tradição, e que viera de Alcaíns. “O meu pai comprou aqui a casa, que foi onde eu já nasci e onde comecei a trabalhar. Entre os 12 e os 16 era tipo brincadeira. Ainda era um bocado novito, até que o meu pai me obrigou a ver como fazia, e comecei a ganhar caule nisto”, afirma o caldeireiro, fintando uma peça que aguarda por mais umas pancadas que lhe revelem a forma definitiva. “Era o braço direito dele. Ainda que quizesse estudar, fazia-lhe muita falta, e os empregados eram muito caros”, revela o caldeireiro. “Como era filho dele e tinha de dar continuidade a isto, tive de vir trabalhar para aqui”, explica, deixando transparecer algum constrangimento por não ter podido escolher o seu futuro profissional. “Se aos 15 anos soubesse o que viria a acontecer, já não pegava nisto”, confessa Carlos Antunes, cujos três filhos, dois deles rapazes, não deram continuidade à transmissão do saber de pais para filhos, algo inimaginável há apenas meio século, época em que um progenitor era visto como o melhor mestre dos seus rebentos. “Tínhamos na altura dois empregados. Isto não era rentável para eles e, passado uns tempos, abandonaram isto”, conclui o artesão. No entanto, ainda há pessoas que ocasionalmente vão procurando esta arte ancestral. “O Centro de Emprego pediu-me para dar formação durante um ano, mas a malta era praticamente mais velha do que eu e não aderiu. É um pouco complicado para eles, que não nasceram nisto. Isto só vai lá com tempo, demora anos a aprender e tem de se ter uma certa vocação”, comenta o caldeireiro, enquanto vai surpreendendo a máquina fotográfica com o seu olhar ocupado. Regressando de novo ao passado, o avô deste artesão era já caldeireiro em Alcaíns. “Uns ficaram na vila, outros vieram para Castelo Branco, mas hoje sou o único no distrito, embora ainda lá tenha um famíliar caldeireiro, mas que está já nos setenta e tal anos”, explica Carlos Antunes. Hoje fabrica floreiras, alambiques, caldeiras, bengaleiros, escalfetas, braseiras, lanternas, vasos, entre outros como caços (caçarola que servia para aquecer o leite), cataplanas (uma espécie de tacho com tampa) e alquitarras (alambique de destilação lenta), usando como ferramentas de trabalho maços de madeira, martelos de ferro, uma palanca (para dar forma e fazer cravação), estacas (para moldar as peças e fazer a “bola”), uma bigorna, uma fieira (para meter os arames), um polidor eléctrico ou ainda um paçarico para soldar as peças. Um dia é tudo quanto Carlos Antunes precisa para fazer nascer uma peça específica e única. “O problema, por vezes, é não ter a ferramenta adequada para a fazer. Mas mesmo demorando um pouco mais, em princípio faço-a”, refere o caldeireiro. “Às vezes aparecem encomendas mais difíceis. E como é a primeira vez que as faço, tenho receio de que fiquem mal feitas e que a pessoa não goste”, conclui. Argumentos que não demovem todos aqueles que se deslocam até à Rua de Santiago para comprar os objectivos produzidos por Carlos Antunes. “Há muita gente, e até de Espanha, que aqui vêm em busca de cataplanas e tachos em cobre”, relembra. E caldeireiro que se preze, também repara velharias fabricadas nestes materiais, como é o caso. “São mais pessoas de fora que trazem objectos para restaurar. Não dá muito lucro, mas vai dando alguma coisa. É bom não ter concorrência”, admite Carlos Antunes, lamentando no entanto, provavelmente com alguma ironia, não poder fazer uma exposição dos seus trabalhos, já que estes são logo adquiridos pelos seus clientes. Ainda que sem a luz natural a iluminar-lhe a vitrina, o trabalho de Carlos Antunes prossegue, enfeitiçado por quatro décadas de rotina que continuam a moldar impacientemente os mais valiosos dos materiais: o saber e a imaginação de um artesão como ele.

JORGE COSTA

(publicado no jornal Povo da Beira, nº511 - 18 de Novembro de 2003)

Posted by industriadarte at novembro 18, 2003 05:25 PM

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