Suplemento Pública

22-06-2003
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Levante-se o Réu

Segunda-feira, 16 de Junho de 2003 %Rui Cardoso Martins O ciumento Mário e Maria. O que sobra de 32 anos de marido e mulher, e da mercearia, são dois filhos e a história que se conta num instante. A juíza estava a ler a sentença de Mário, e Maria a ouvir. Ele tinha o sorriso parado a meio dos dentes, o lábio de cima colara-se ao marfim seco e amarelo dos incisivos. Queria mostrar que não precisava daquela conversa para nada. - O senhor foi condenado em 15 meses de prisão, suspensa. Sabe o que isso quer dizer? Não respondeu. E quando a juíza lho explicou, ficou igual, talvez mais divertido no banco dos réus. Bateu nela, disse umas verdades, um homem já não se pode enervar? - Quer dizer que durante dois anos não pode cometer nenhum crime. Seria preciso convencê-lo de que fez algo de errado. Isso é impossível. Maria mostrou-o, por assim dizer, ao não mostrar nada. Sentou-se e ficou à espera, como se tivesse uma senha na mão para ser atendida, e houvesse mais gente para pagar a luz antes dela, e tivesse o dia todo para isso. E mal se ouviu a sentença, ela saiu da sala com a mesma cara, saiu sem um sorriso, nem lágrima, saiu para a rua e continuou a andar junto do muro da penitenciária, à mesma velocidade com que se levantara nas costas de Mário, a andar em frente com as suas pernas gordas. Ninguém assiste ao fim do seu processo judicial tão facilmente, só uma pessoa esgotada. No ano de 2001, depois de 32 anos de vida marital, de criar dois filhos com Maria, o senhor Mário ficou ciumento. Foi um cogumelo que lhe nasceu na careca depois de uma chuva imprevista. Ficou ciumento. Maria diz que ele nunca teve motivos para isso. Os vizinhos e amigos juram o mesmo, que era invenção maluca daquela cabeça. Mas quanto menos sabia, mais ele acreditava, quanto menores os indícios, maiores as certezas do ciúme. É uma arma de destruição maciça. Um ciumento alimenta o seu veneno até apodrecer o sangue e ficar verde. Ao mesmo tempo, é um processo criativo. Quando os clientes entravam na mercearia, Mário gritava para Maria: - És uma puta, uma vaca, uma fressureira, uma paneleira. Se Maria não estava presente, ou ia às traseiras, ele desabafava então com os clientes: - Já a ouvi gritar quando está a foder com outros homens. Quando está com um homem está três horas debaixo dele. Era mau para o negócio. Um dia, na estação de Santa Apolónia, atacou-a, dizendo que a ia matar, e ao amante, e aos dois filhos. Deu-lhe murros, pontapés, e nesse manhã ela decidiu que não podia mais e fez queixa na polícia. Mário nunca pediu desculpas, nem depois da separação. Há um suspeito neste triste caso: a mercearia. Ele passava muitas noites no estabelecimento, preparando a abertura na madrugada, arrumando os legumes, tirando as batatas, revendo as continhas com o lápis no papel cinzento. E dormia numa enxerga a cheirar a cevada torrada, a chouriças, o bafo das couves frescas e das couves que azedavam no escuro, com os detergentes e os vinhos de pacote. Ele dormia a vida nocturna e diurna das mercearias e a escravidão das férias que é melhor não, os clientes mudam para os hiper e não voltam. Como ela, agora. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

Ideias Fortes Capoulas Santos Comissão Europeia não conseguirá fazer a reforma que a agricultura portuguesa necessita

O sociólogo a que chamam engenheiro

Livro

Objectivo 2008?

A mulher arco-íris na crise dos quarenta

CRÓNICAS

Fronteiras Perdidas

Levante-se o réu

COCKTAIL

Cocktails de Verão

RECEITA

Receitas de Verão

CARTAS DA MAYA

Cartas da Maya

DESAFIOS

Desafios

Levante-se o Réu

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