Fronteiras Perdidas

20-06-2003
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Fronteiras Perdidas

Segunda-feira, 16 de Junho de 2003 %José Eduardo Agualusa Uma silhueta ardendo ao crepúsculo O sol entrava pelas janelas como um rio, e era puríssimo, sem a ferrugem triste que por vezes carrega quando alcança o chão. As nuvens cintilavam, aos tufos, desalinhadas, e, no entanto, havia nessa desordem uma tal harmonia que o velho se lembrou dos jardins japoneses. Sim, era um jardim, aquilo, um vasto jardim de nuvens. A luz corria por sobre os flocos, alvíssimos!, até bater atordoada contra o rápido metal das asas. Devia ser assim a morte, pensou sem surpresa: a luz ao invés do pó. Um homem ganharia, pouco a pouco, a alada leveza das aves. A pele tornar-se-ia mais diáfana, até que fosse possível intuir o lento palpitar do coração, um pequeno lume, pulsando, pulsando, sob a carne branda. A luz correndo nas veias. As pessoas despedir-se-iam da família, dos amigos, um por um, sem lágrimas, sem dor alguma, e quando se lhes apagasse a voz já não seriam mais do que uma silhueta ardendo ao crepúsculo. Fogo fátuo. Ardência marítima. Um leve rumor acesso: adeus. O velho voava de regresso a casa. Não gostava de aviões. Nunca gostara. Os aviões, é bem certo, reduziram a Terra a uma rede de metro. Tiraram-lhe o mistério e a grandeza. Também não gostava de auto-estradas, nem de pontes, e tão pouco de telefones. Odiava a Internet. As viagens rápidas, dizia, eram da mesma perversa natureza que o fast food - o triunfo da barbárie através da tecnologia. Defendia com vigor o regresso da humanidade à lentidão: "Quanto mais corremos menos tempo temos". Nas grandes cidades há uma frase que a cada instante se repete, como um mantra, aqui, ali, por toda a parte - "não tenho tempo não tenho tempo não tenho tempo não tenho tempo não tenho tempo não tenho tempo". Ninguém tem tempo. Os pais não têm tempo para contar aos filhos as histórias com que, quando eram crianças, os seus pais (ou as avós) os adormeciam. Os maridos não têm tempo para escutar as esposas. As esposas não têm tempo para escutar os maridos. Nas aldeias, pelo contrário, o tempo cresce, como as ervas, à sombra fresca dos muros. O velho pensou nisto e sorriu. Voava de regresso à sua cidade natal. Quando a deixara era ainda uma pequena vila de província. Galos puxavam a aurora. Cães, ao longe, ladravam aos sinos. Os pássaros dormiam, em bandos chilreantes, sob a espessa folhagem das árvores. As crianças, domingo à tarde, dançavam de mão dada em redor do coreto. As pessoas sentavam-se à soleira das portas vendo a noite baixar sobre os jardins. O rádio era um milagre. Havia poucos. Os mais velhos espreitavam o céu com desconfiança, podia lá ser!, o ar, o mesmo ar de sempre, agora cheio de vozes. As crianças, essas, espreitavam curiosas para dentro dos rádios, que eram móveis enormes e solenes, e viam lá dentro as luzes coloridas das cidades grandes, as multidões apressadas do futuro, todas as vozes, todo o estrépito de um novo mundo em construção. Tinham passado sessenta anos. Encontraria ainda o casarão feliz, o largo quintal com muros de adobe, onde vivera a infância? Seria capaz de reconhecer as velhas ruas por entre os altos escombros do progresso? E se não houvesse já, em lado algum, sinais da sua infância? O velho estremeceu. Se a sua infância não sobrevivera, nem sequer sob a forma de um abacateiro (com o seu nome gravado no ramo mais alto); sob a forma de um riacho de águas afáveis, de um pátio de terra batida, de uma escola, ou, nem isso, do canto rouco das cigarras ao entardecer - então não lhe restaria nada. A velhice rouba-nos o futuro. O futuro rouba-nos o passado. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

Ideias Fortes Capoulas Santos Comissão Europeia não conseguirá fazer a reforma que a agricultura portuguesa necessita

O sociólogo a que chamam engenheiro

Livro

Objectivo 2008?

A mulher arco-íris na crise dos quarenta

CRÓNICAS

Fronteiras Perdidas

Levante-se o réu

COCKTAIL

Cocktails de Verão

RECEITA

Receitas de Verão

CARTAS DA MAYA

Cartas da Maya

DESAFIOS

Desafios

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