A Constituição que legitimou o regime

10-01-2004
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A Constituição Que Legitimou o Regime

Por EUNICE LOURENÇO

Segunda-feira, 29 de Dezembro de 2003 A 27 de Novembro, o primeiro-ministro, Durão Barroso, disse que em Portugal "a Constituição não surgiu democraticamente", "surgiu muito sectária, ideológica". Já no mês anterior tinha dito, no Conselho Nacional do PSD, que não se revia na Constituição Portuguesa. Estas afirmações e o projecto conjunto de revisão constitucional do PSD e do CDS, ao acolher a intenção muito proclamada por Paulo Portas de "tirar a ideologia" da Constituição, fazem com que o debate sobre a próxima revisão constitucional acabe, inevitavelmente, por tirar do baú das memórias a Assembleia Constituinte, eleita em 1975, e a primeira Constituição do novo regime, aprovada em Junho de 1976. O próprio acto eleitoral para a eleição daquela assembleia esteve em risco. Foi adiado de 12 para 25 de Abril de 1975. Nesse dia, mais de 90 por cento dos portugueses votaram, com os seguintes resultados: 37,8 por cento para o PS, 26,3 por cento para o PPD, 12,5 por cento para o PCP, 7,6 por cento para o CDS. O MDP teve 4,1 por cento e a UDP teve 0, 79. "Fizemos tudo, até o pacto MFA/partidos, em nome deste bem maior" que foram as eleições, dizia Basílio Horta ao PÚBLICO num trabalho a propósito dos 25 anos do cerco à Assembleia Constituinte. O Pacto MFA/partidos, de seu nome completo "Plataforma de Acordo Constitucional celebrada pelo Conselho da Revolução e pelos partidos políticos", assinado a 11 de Abril, dava poderes legislativos ao Conselho da Revolução, consagrava a eleição do Presidente da República por colégio eleitoral, constituído pela assembleia do MFA e pela assembleia legislativa, e impunha que a Constituição devia "consagrar os princípios do MFA, as conquistas legitimamente obtidas ao longo do processo, bem como os desenvolvimentos ao programa impostos pela dinâmica revolucionária que, aberta e irreversivelmente, empenhou o país na via original para um socialismo português". Depois do 25 de Novembro, começou a ser negociado um segundo pacto, que seria assinado, pelo Presidente da Republica, o PS, o PPD, o PCP, o CDS e o MDP/CDE, a 26 de Fevereiro de 1976. Este novo documento mitigava a influência do sector militar na vida política porque retirava a Assembleia do MFA dos órgãos de soberania, reduzia as competências do Conselho da Revolução e aceitava a eleição do Presidente da República por sufrágio directo e universal. A 2 de Junho, a Assembleia Constituinte aprovava a Constituição, que teve apenas o voto contra do CDS. Sá Machado explica as razões, em plenário: "O nosso voto exprime o inconformismo e a frustração pela oportunidade que, na lei fundamental, se perdeu de mais democracia e de mais autêntico pluralismo. (...) Seria necessário que a Constituição não fosse, sobretudo, um instrumento de forças temporalmente maioritárias, mas que se traduzisse, isso sim, numa base flexível, de sólidas e bem delimitadas fronteiras decorativas, para o exercício pleno, criador, eficaz e progressivo da vontade popular." Mas primeiro reconhecia: "Só em democracia é possível dizer não, só em democracia é possível assumir, em liberdade, a coerência, sustentar o pluralismo, recusar a unanimidade." Já o PPD, pela voz de Barbosa de Melo, assumia a lei fundamental: "Votámos a Constituição porque ela foi o produto honrado do jogo democrático. Votámos a Constituição porque, no essencial, ela também recolhe o fundamental do nosso programa." Primeiro órgão eleito, a Assembleia Constituinte dava ao país uma Constituição que foi a "grande fonte de legitimidade para o novo regime", como dizia o socialista António Reis, em 2000. E explicava: "Foi a Constituição possível de compromisso entre correntes altamente contraditórias e a Constituição necessária para um país que tinha acabado de viver duas experiências traumáticas: a ditadura e a revolução cheia de contradições. A ditadura fascista levou-nos a pôr uma ênfase muito forte nos direitos e liberdades e a aprofundar os direitos, também como maneira de colocar barreiras contra as tentações da esquerda não socialista." Já Pedro Roseta, hoje ministro da Cultura, salientava aspectos como a consagração de uma sociedade sem classes, de um país em transição para o socialismo, do MFA como garante da Revolução, como sinais de que "a Constituição tinha algumas soluções que eram muito datadas e deterministas" e considerava mesmo o papel dado ao Conselho da Revolução "uma entorse aos princípios democráticos". O fim do Conselho da Revolução e a criação do Tribunal Constitucional foram tratados logo na revisão de 1982 - que para Durão Barroso marca o início da Constituição democrática -, e os "determinismos económicos", como a irreversibilidade das nacionalizações, estiveram no centro da revisão de 1989. Passados 27 anos da sua aprovação e concluídas cinco revisões (duas delas extraordinárias), a Constituição vai entrar na sua sexta revisão. O único partido que, em 76, votou contra continua a ser o mais insatisfeito com o texto. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE Maioria quer substituir igualdade de direitos por equidade

Oposição recusa discutir contornos ideológicos da Constituição

Mota Amaral

Manuel Alegre

A Constituição que legitimou o regime

A Constituição Que Legitimou o Regime

Por EUNICE LOURENÇO

Segunda-feira, 29 de Dezembro de 2003 A 27 de Novembro, o primeiro-ministro, Durão Barroso, disse que em Portugal "a Constituição não surgiu democraticamente", "surgiu muito sectária, ideológica". Já no mês anterior tinha dito, no Conselho Nacional do PSD, que não se revia na Constituição Portuguesa. Estas afirmações e o projecto conjunto de revisão constitucional do PSD e do CDS, ao acolher a intenção muito proclamada por Paulo Portas de "tirar a ideologia" da Constituição, fazem com que o debate sobre a próxima revisão constitucional acabe, inevitavelmente, por tirar do baú das memórias a Assembleia Constituinte, eleita em 1975, e a primeira Constituição do novo regime, aprovada em Junho de 1976. O próprio acto eleitoral para a eleição daquela assembleia esteve em risco. Foi adiado de 12 para 25 de Abril de 1975. Nesse dia, mais de 90 por cento dos portugueses votaram, com os seguintes resultados: 37,8 por cento para o PS, 26,3 por cento para o PPD, 12,5 por cento para o PCP, 7,6 por cento para o CDS. O MDP teve 4,1 por cento e a UDP teve 0, 79. "Fizemos tudo, até o pacto MFA/partidos, em nome deste bem maior" que foram as eleições, dizia Basílio Horta ao PÚBLICO num trabalho a propósito dos 25 anos do cerco à Assembleia Constituinte. O Pacto MFA/partidos, de seu nome completo "Plataforma de Acordo Constitucional celebrada pelo Conselho da Revolução e pelos partidos políticos", assinado a 11 de Abril, dava poderes legislativos ao Conselho da Revolução, consagrava a eleição do Presidente da República por colégio eleitoral, constituído pela assembleia do MFA e pela assembleia legislativa, e impunha que a Constituição devia "consagrar os princípios do MFA, as conquistas legitimamente obtidas ao longo do processo, bem como os desenvolvimentos ao programa impostos pela dinâmica revolucionária que, aberta e irreversivelmente, empenhou o país na via original para um socialismo português". Depois do 25 de Novembro, começou a ser negociado um segundo pacto, que seria assinado, pelo Presidente da Republica, o PS, o PPD, o PCP, o CDS e o MDP/CDE, a 26 de Fevereiro de 1976. Este novo documento mitigava a influência do sector militar na vida política porque retirava a Assembleia do MFA dos órgãos de soberania, reduzia as competências do Conselho da Revolução e aceitava a eleição do Presidente da República por sufrágio directo e universal. A 2 de Junho, a Assembleia Constituinte aprovava a Constituição, que teve apenas o voto contra do CDS. Sá Machado explica as razões, em plenário: "O nosso voto exprime o inconformismo e a frustração pela oportunidade que, na lei fundamental, se perdeu de mais democracia e de mais autêntico pluralismo. (...) Seria necessário que a Constituição não fosse, sobretudo, um instrumento de forças temporalmente maioritárias, mas que se traduzisse, isso sim, numa base flexível, de sólidas e bem delimitadas fronteiras decorativas, para o exercício pleno, criador, eficaz e progressivo da vontade popular." Mas primeiro reconhecia: "Só em democracia é possível dizer não, só em democracia é possível assumir, em liberdade, a coerência, sustentar o pluralismo, recusar a unanimidade." Já o PPD, pela voz de Barbosa de Melo, assumia a lei fundamental: "Votámos a Constituição porque ela foi o produto honrado do jogo democrático. Votámos a Constituição porque, no essencial, ela também recolhe o fundamental do nosso programa." Primeiro órgão eleito, a Assembleia Constituinte dava ao país uma Constituição que foi a "grande fonte de legitimidade para o novo regime", como dizia o socialista António Reis, em 2000. E explicava: "Foi a Constituição possível de compromisso entre correntes altamente contraditórias e a Constituição necessária para um país que tinha acabado de viver duas experiências traumáticas: a ditadura e a revolução cheia de contradições. A ditadura fascista levou-nos a pôr uma ênfase muito forte nos direitos e liberdades e a aprofundar os direitos, também como maneira de colocar barreiras contra as tentações da esquerda não socialista." Já Pedro Roseta, hoje ministro da Cultura, salientava aspectos como a consagração de uma sociedade sem classes, de um país em transição para o socialismo, do MFA como garante da Revolução, como sinais de que "a Constituição tinha algumas soluções que eram muito datadas e deterministas" e considerava mesmo o papel dado ao Conselho da Revolução "uma entorse aos princípios democráticos". O fim do Conselho da Revolução e a criação do Tribunal Constitucional foram tratados logo na revisão de 1982 - que para Durão Barroso marca o início da Constituição democrática -, e os "determinismos económicos", como a irreversibilidade das nacionalizações, estiveram no centro da revisão de 1989. Passados 27 anos da sua aprovação e concluídas cinco revisões (duas delas extraordinárias), a Constituição vai entrar na sua sexta revisão. O único partido que, em 76, votou contra continua a ser o mais insatisfeito com o texto. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE Maioria quer substituir igualdade de direitos por equidade

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