Suplemento Mil Folhas

21-01-2005
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Doze Notas Musicais

Sábado, 01 de Janeiro de 2005 %Augusto M. Seabra 1- Passou 2004 e permanece por definir o estatuto da Casa da Música. Já lá vão três governos, e os ministros Augusto Santos Silva, Pedro Roseta e Maria João Bustorff, e a indefinição permanece, com especiais responsabilidades do segundo, que, tendo estado em funções mais de dois anos, acabou por sair sem resolver politicamente a questão que se arrasta desde o Porto 2001. O consenso estabelecido sobre o modelo de fundação tem muito de fictício, pois sem programação e linhas de actividade definidas é ilusória a suposição de que os participantes privados (a seguir-se, como seria recomendável, o modelo de parceria existente em Serralves) irão afluir. Alves Monteiro, o presidente do conselho de administração nomeado na sequência da crise de Junho de 2003, acabou por se demitir, não sem antes ter concretizado a tarefa política de agrado do sócio minoritário e reclamante maximal, a Câmara Municipal do Porto, ou mais exactamente Rui Rio: o afastamento de Pedro Burmester, idealizador do projecto. Anthony Wiggworth-Jones, que certamente não conhecia os condicionalismos políticos, foi nomeado director artístico; para além das circunstâncias, o seu "curriculum" é de molde a manter expectativas, embora claramente esteja perdida a referência principal apontada, da Cité de la Musique em Paris. A actividade da Casa prosseguiu ainda assim com algumas manifestações importantes no âmbito do Estúdio de Ópera e do Remix Ensemble. Uma dessas foi mesmo um dos eventos mais relevantes do ano, a estreia mundial no Porto de "Philomela", primeira ópera de um dos mais importantes compositores da actualidade, James Dillon. Houve também a presença de outro autor dos mais salientes, Magnus Lindberg. 2 - Não se pode esquecer que a indefinição sobre o modelo da Casa da Música arrasta outro problema, o da futura articulação com aquela da Orquestra Nacional do Porto, uma entidade própria. Os maus exemplos que se sucedem no campo das orquestras públicas ainda mais relevo dão a esta questão, importando preservar uma actividade regular que a orquestra tem desenvolvido. 3 - Passou mais um ano e continua por resolver o problema do modelo institucional do São Carlos, embora há muito estivesse admitido pelo então secretário de Estado da Cultura Amaral Lopes que cabia esclarecer esse modelo, dados os limites reais de autonomia administrativa e financeira. Mas o mesmo Amaral Lopes impôs um conceito de "empresarialização" dos institutos culturais públicos, expresso numa transformação - simbolicamente extraordinária - do Dona Maria em sociedade anónima, prescrevendo que se ficava a aguardar a experiência daquele para atender ao São Carlos. Como se os limites não fossem já mais muitos, o teatro nacional de ópera foi ainda o mais penalizado no Orçamento para 2005! 4 - Decorre desses limites do teatro que a orquestra chamada Sinfónica Portuguesa, não tenha modos - número e regularidade de concertos - para se afirmar nos termos da sua designação, e esse é outro problema que se arrastou ao longo do ano, e que se tornou tanto mais notório quanto o regresso ao Centro Cultural de Belém, como local dos concertos, poderia potenciar um público maior. 5 - Ainda assim, o São Carlos e a Orquestra Sinfónica Portuguesa possibilitaram alguns dos acontecimentos mais marcantes do ano, como as estreias em Portugal do "Stiffelio" de Verdi e, enfim, dos "Gurrelieder" de Schönberg, um "Werther" de Massenet com uma maravilhosa encenação de Graham Vick, o "Projecto Feldman" que incluiu a ópera "Neither", ou ainda as realizações de "A Canção da Terra" de Mahler, com Petra Lang e Keith Lewis, direcção de Jeffrey Tate, e do Acto I da "Valquíria", com um sublime Siegmund, Robert Gambill, uma inspirada Sieglinde, Elisabete Matos, e um magnífico Hunding, Robert Fink, e uma direcção por uma vez compenetrada de Zoltán Peskó. O teatro nacional de ópera pôde ainda realizar duas obrigações de que andava arredado, uma de âmbito territorial, com a apresentação de "La Bohème" e "O Elixir de Amor" na Figueira da Foz, e com as encomendas de Quatro Postais de Compositores Portugueses a Haydn e Mozart. 6 - No âmbito da distribuição territorial, o ano ficou marcado por um episódio absolutamente vergonhoso, o da extinção da Filarmonia das Beiras, a solução "encontrada" pelas câmaras de Coimbra, Viseu e Vila Real (todas de maioria PSD), para não satisfazerem a reivindicação elementar de 27 músicos terem contrato de trabalho e regulamento interno! Para tornar o episódio ainda mais rocambolesco, a Câmara de Aveiro (PS) participou também inicialmente na peripécia, por meio do seu vereador da Cultura, depois desautorizado pelo presidente. A falta de eco nacional deste imbróglio calamitoso é infelizmente um péssimo sinal de falta de consideração por problemas reais da actividade musical. 7 - Para completar o quase desastre do panorama público, a música é potencialmente o sector mais periclitante com as desventuras do Centro Cultural de Belém, onde o presidente do conselho de administração, Fraústo da Silva, assumiu os poderes da sua ambição, forçando primeiro à saída precipitada do administrador Francisco Motta Veiga, já perigosamente perto da Festa da Música, e depois do sucessor daquele, Miguel Vaz, bem como da administradora com o pelouro financeiro, Adelaide Rocha - com a saída destes tendo-se entretanto demitido também o assessor musical regressado, António Pinho Vargas. A quatro meses da próxima Festa da Música, permanece a incógnita dos modos de negociação e de execução daquela, incluindo saber quem faz a selecção de intérpretes portugueses a participar não só na Festa em Belém, como nos eventos em Nantes, Bilbau e Tóquio. Quanto à Festa de 2004, dedicada à Geração Romântica (Schumann, Mendelssohn, Liszt e Chopin), não deixou memórias tão fortes como algumas anteriores, a não ser a integral dos Estudos de Execução Transcendente de Liszt por Boris Berezovski. Mas ela assinalou uma nova etapa, com a extensão a Viseu, em parceria com o Teatro Viriato. 8 - A Fundação Gulbenkian é o marco de estabilidade continuado na actividade musical. Que tenham estado presentes no Grande Auditório as duas cantoras mais em destaque no ano, Magdalena Kozená e Renée Fleming, é indicador suficiente da firme inscrição nos grandes circuitos internacionais. Contudo, não podem deixar de ser ainda atendidas as opções decorrentes do fim dos Encontros de Música Contemporânea e das Jornadas de Música Antiga. Se no primeiro campo, o novo módulo de "Grandes compositores interpretam as suas obras" foi aberto por um memorável ciclo com Heinz Holliger, já surpreende que seja no segundo, que inicialmente parecia o menos afectado, que se vá constatando um desinvestimento real - tanto mais sentido por coincidir com a falta dos Concertos Em Órbita, cujo regresso previsto em parceria com o CCB acabou por ser também inviabilizado pelos jogos de poder naquele. 9 - A mesma fundação iniciou um novo programa de formação artística, no âmbito do qual ocorreu um curso de encenação de ópera, em parceria com o São Carlos. Que dos seis trabalhos apresentados fiquem na lista de expectativas para novas apresentações três deles, "Riders to the Sea" de Vaughan Wiliams encenado por André E. Teodósio, "O Urso" de William Walton por Andrea Lupi e "O Esquilo Esperto" de Nino Rota por Erica Mandillo, diz do sucesso da proposta. 10 - Prosseguiu a internacionalização do Remix Ensemble e iniciou-se a da outra formação votada à música contemporânea, a OrquestrUtopica. O percussionista Pedro Carneiro editou um notável disco dedicado a obras de Xenakis na Zig-Zag Territoires. 11 - O ano foi absolutamente excepcional na estreia sucessiva de três óperas de autores portugueses, "A Floresta" de Eurico Carrapatoso, "O Fim" de Carlos Marecos e "Os Fugitivos" de José Eduardo Rocha. 12 - O ano de 2004 foi igualmente excepcional na edição de três importantes discos, a ópera "Os Dias Levantados" de António Pinho Vargas, a integral das Sonatas para Piano de Fernando Lopes-Graça, no 10º aniversário da sua morte, por António Rosado (numa iniciativa da Câmara de Matosinhos) e enfim o primeiro (duplo) disco do Remix, que inclui os dois autores decisivos da nossa "modernidade", Jorge Peixinho com "A Soma dos Sons que Soam", e Emmanuel Nunes, com "Trames", e dois compositores mais recentes, Miguel Azguime, com "Derrière Son Double", e Nuno Corte-Real, com "Andarilhos". Que venham mais! OUTROS TÍTULOS EM MIL FOLHAS A realidade como ficção

Bandas desenhadas que marcaram 2004

Magia e intemporalidade

CRÓNICA

UM ANO REPUBLICANO

Letra Pequena/ Uma princesa insuportável

Escolha e destino

MÚSICA CLÁSSICA

12 discos

Doze notas musicais

Escolhas 2004

Três concertos

3 discos

Concertos

ARTES PLÁSTICAS

Em torno da pintura

Dorner, Schiess, Brandl, Calapez

Espírito do Tempo II

Caminhos da fotografia

ARQUITECTURA

Cinco razões para se falar de arquitectura em 2004

Que País Somos Nós?

Ano Débil: Arquitectura em 2004

Doze Notas Musicais

Sábado, 01 de Janeiro de 2005 %Augusto M. Seabra 1- Passou 2004 e permanece por definir o estatuto da Casa da Música. Já lá vão três governos, e os ministros Augusto Santos Silva, Pedro Roseta e Maria João Bustorff, e a indefinição permanece, com especiais responsabilidades do segundo, que, tendo estado em funções mais de dois anos, acabou por sair sem resolver politicamente a questão que se arrasta desde o Porto 2001. O consenso estabelecido sobre o modelo de fundação tem muito de fictício, pois sem programação e linhas de actividade definidas é ilusória a suposição de que os participantes privados (a seguir-se, como seria recomendável, o modelo de parceria existente em Serralves) irão afluir. Alves Monteiro, o presidente do conselho de administração nomeado na sequência da crise de Junho de 2003, acabou por se demitir, não sem antes ter concretizado a tarefa política de agrado do sócio minoritário e reclamante maximal, a Câmara Municipal do Porto, ou mais exactamente Rui Rio: o afastamento de Pedro Burmester, idealizador do projecto. Anthony Wiggworth-Jones, que certamente não conhecia os condicionalismos políticos, foi nomeado director artístico; para além das circunstâncias, o seu "curriculum" é de molde a manter expectativas, embora claramente esteja perdida a referência principal apontada, da Cité de la Musique em Paris. A actividade da Casa prosseguiu ainda assim com algumas manifestações importantes no âmbito do Estúdio de Ópera e do Remix Ensemble. Uma dessas foi mesmo um dos eventos mais relevantes do ano, a estreia mundial no Porto de "Philomela", primeira ópera de um dos mais importantes compositores da actualidade, James Dillon. Houve também a presença de outro autor dos mais salientes, Magnus Lindberg. 2 - Não se pode esquecer que a indefinição sobre o modelo da Casa da Música arrasta outro problema, o da futura articulação com aquela da Orquestra Nacional do Porto, uma entidade própria. Os maus exemplos que se sucedem no campo das orquestras públicas ainda mais relevo dão a esta questão, importando preservar uma actividade regular que a orquestra tem desenvolvido. 3 - Passou mais um ano e continua por resolver o problema do modelo institucional do São Carlos, embora há muito estivesse admitido pelo então secretário de Estado da Cultura Amaral Lopes que cabia esclarecer esse modelo, dados os limites reais de autonomia administrativa e financeira. Mas o mesmo Amaral Lopes impôs um conceito de "empresarialização" dos institutos culturais públicos, expresso numa transformação - simbolicamente extraordinária - do Dona Maria em sociedade anónima, prescrevendo que se ficava a aguardar a experiência daquele para atender ao São Carlos. Como se os limites não fossem já mais muitos, o teatro nacional de ópera foi ainda o mais penalizado no Orçamento para 2005! 4 - Decorre desses limites do teatro que a orquestra chamada Sinfónica Portuguesa, não tenha modos - número e regularidade de concertos - para se afirmar nos termos da sua designação, e esse é outro problema que se arrastou ao longo do ano, e que se tornou tanto mais notório quanto o regresso ao Centro Cultural de Belém, como local dos concertos, poderia potenciar um público maior. 5 - Ainda assim, o São Carlos e a Orquestra Sinfónica Portuguesa possibilitaram alguns dos acontecimentos mais marcantes do ano, como as estreias em Portugal do "Stiffelio" de Verdi e, enfim, dos "Gurrelieder" de Schönberg, um "Werther" de Massenet com uma maravilhosa encenação de Graham Vick, o "Projecto Feldman" que incluiu a ópera "Neither", ou ainda as realizações de "A Canção da Terra" de Mahler, com Petra Lang e Keith Lewis, direcção de Jeffrey Tate, e do Acto I da "Valquíria", com um sublime Siegmund, Robert Gambill, uma inspirada Sieglinde, Elisabete Matos, e um magnífico Hunding, Robert Fink, e uma direcção por uma vez compenetrada de Zoltán Peskó. O teatro nacional de ópera pôde ainda realizar duas obrigações de que andava arredado, uma de âmbito territorial, com a apresentação de "La Bohème" e "O Elixir de Amor" na Figueira da Foz, e com as encomendas de Quatro Postais de Compositores Portugueses a Haydn e Mozart. 6 - No âmbito da distribuição territorial, o ano ficou marcado por um episódio absolutamente vergonhoso, o da extinção da Filarmonia das Beiras, a solução "encontrada" pelas câmaras de Coimbra, Viseu e Vila Real (todas de maioria PSD), para não satisfazerem a reivindicação elementar de 27 músicos terem contrato de trabalho e regulamento interno! Para tornar o episódio ainda mais rocambolesco, a Câmara de Aveiro (PS) participou também inicialmente na peripécia, por meio do seu vereador da Cultura, depois desautorizado pelo presidente. A falta de eco nacional deste imbróglio calamitoso é infelizmente um péssimo sinal de falta de consideração por problemas reais da actividade musical. 7 - Para completar o quase desastre do panorama público, a música é potencialmente o sector mais periclitante com as desventuras do Centro Cultural de Belém, onde o presidente do conselho de administração, Fraústo da Silva, assumiu os poderes da sua ambição, forçando primeiro à saída precipitada do administrador Francisco Motta Veiga, já perigosamente perto da Festa da Música, e depois do sucessor daquele, Miguel Vaz, bem como da administradora com o pelouro financeiro, Adelaide Rocha - com a saída destes tendo-se entretanto demitido também o assessor musical regressado, António Pinho Vargas. A quatro meses da próxima Festa da Música, permanece a incógnita dos modos de negociação e de execução daquela, incluindo saber quem faz a selecção de intérpretes portugueses a participar não só na Festa em Belém, como nos eventos em Nantes, Bilbau e Tóquio. Quanto à Festa de 2004, dedicada à Geração Romântica (Schumann, Mendelssohn, Liszt e Chopin), não deixou memórias tão fortes como algumas anteriores, a não ser a integral dos Estudos de Execução Transcendente de Liszt por Boris Berezovski. Mas ela assinalou uma nova etapa, com a extensão a Viseu, em parceria com o Teatro Viriato. 8 - A Fundação Gulbenkian é o marco de estabilidade continuado na actividade musical. Que tenham estado presentes no Grande Auditório as duas cantoras mais em destaque no ano, Magdalena Kozená e Renée Fleming, é indicador suficiente da firme inscrição nos grandes circuitos internacionais. Contudo, não podem deixar de ser ainda atendidas as opções decorrentes do fim dos Encontros de Música Contemporânea e das Jornadas de Música Antiga. Se no primeiro campo, o novo módulo de "Grandes compositores interpretam as suas obras" foi aberto por um memorável ciclo com Heinz Holliger, já surpreende que seja no segundo, que inicialmente parecia o menos afectado, que se vá constatando um desinvestimento real - tanto mais sentido por coincidir com a falta dos Concertos Em Órbita, cujo regresso previsto em parceria com o CCB acabou por ser também inviabilizado pelos jogos de poder naquele. 9 - A mesma fundação iniciou um novo programa de formação artística, no âmbito do qual ocorreu um curso de encenação de ópera, em parceria com o São Carlos. Que dos seis trabalhos apresentados fiquem na lista de expectativas para novas apresentações três deles, "Riders to the Sea" de Vaughan Wiliams encenado por André E. Teodósio, "O Urso" de William Walton por Andrea Lupi e "O Esquilo Esperto" de Nino Rota por Erica Mandillo, diz do sucesso da proposta. 10 - Prosseguiu a internacionalização do Remix Ensemble e iniciou-se a da outra formação votada à música contemporânea, a OrquestrUtopica. O percussionista Pedro Carneiro editou um notável disco dedicado a obras de Xenakis na Zig-Zag Territoires. 11 - O ano foi absolutamente excepcional na estreia sucessiva de três óperas de autores portugueses, "A Floresta" de Eurico Carrapatoso, "O Fim" de Carlos Marecos e "Os Fugitivos" de José Eduardo Rocha. 12 - O ano de 2004 foi igualmente excepcional na edição de três importantes discos, a ópera "Os Dias Levantados" de António Pinho Vargas, a integral das Sonatas para Piano de Fernando Lopes-Graça, no 10º aniversário da sua morte, por António Rosado (numa iniciativa da Câmara de Matosinhos) e enfim o primeiro (duplo) disco do Remix, que inclui os dois autores decisivos da nossa "modernidade", Jorge Peixinho com "A Soma dos Sons que Soam", e Emmanuel Nunes, com "Trames", e dois compositores mais recentes, Miguel Azguime, com "Derrière Son Double", e Nuno Corte-Real, com "Andarilhos". Que venham mais! OUTROS TÍTULOS EM MIL FOLHAS A realidade como ficção

Bandas desenhadas que marcaram 2004

Magia e intemporalidade

CRÓNICA

UM ANO REPUBLICANO

Letra Pequena/ Uma princesa insuportável

Escolha e destino

MÚSICA CLÁSSICA

12 discos

Doze notas musicais

Escolhas 2004

Três concertos

3 discos

Concertos

ARTES PLÁSTICAS

Em torno da pintura

Dorner, Schiess, Brandl, Calapez

Espírito do Tempo II

Caminhos da fotografia

ARQUITECTURA

Cinco razões para se falar de arquitectura em 2004

Que País Somos Nós?

Ano Débil: Arquitectura em 2004

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