Realismo e ousadia na promoção da leitura

05-02-2003
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Realismo e Ousadia na Promoção da Leitura

Sábado, 04 de Janeiro de 2003

Que efeito pode ter a colecção Mil Folhas? Ela associa o livro e o jornal, ampliando o circuito de distribuição do primeiro e apostando nos benefícios recíprocos da integração; e usa as potencialidades de atracção e fidelização dos consumidores ligadas ao coleccionismo, proporcionando ao longo de 30 semanas um conjunto relativamente amplo e coerente de títulos. Ora, que resultados positivos para a leitura literária podem gerar estas características?

%Augusto Santos Silva

Abordarei a questão sociologicamente. Havendo vários estudos realizados em Portugal, destacarei os ensinamentos dos que melhor aliam inquérito e teoria. Refiro-me aos livros de Eduardo de Freitas e Maria de Lourdes Lima dos Santos, "Hábitos de Leitura em Portugal", e de Eduardo de Freitas, José Luís Casanova e Nuno de Almeida Alves, "Hábitos de Leitura", ambos publicados pela Dom Quixote, o primeiro em 1992, trabalhando os dados de um inquérito de 1988, e o segundo em 1997, trabalhando os dados de um inquérito de 1995. As grandes tendências então postas em relevo são corroboradas por várias pesquisas subsequentes, desde as sondagens regulares encomendadas pela Associação Portuguesa de Escritores e Livreiros e os estudos do Observatório das Actividades Culturais sobre o sector da edição e o funcionamento das bibliotecas públicas, até aos inquéritos extensivos acerca das práticas culturais, que tomam naturalmente a leitura como um indicador fundamental.

Vale a pena sumariar essas tendências. A prática da leitura é claramente minoritária. Na estimativa de Eduardo de Freitas, 1,7 milhões de portugueses estão afastados de qualquer leitura (de livros, revistas ou jornais), 4 milhões não lêem livros e os "leitores confirmados" de livros (isto é, aqueles sobre cuja prática regular não ficam dúvidas, e são 1,8 milhões) representam um quarto da população com idade igual ou superior a 15 anos. A leitura depende da familiaridade dos indivíduos com o universo da cultura escrita: varia com a origem social e cultural, o nível de instrução e a inserção profissional. Entre as determinações, avulta o "índice de relacionamento primário com a leitura": ser filho de pais que lêem e de pais que lêem para o seus filhos constitui uma vantagem essencial. Assim se configura, desde a primeira infância, a disponibilidade cultural para o universo letrado. O peso destas determinações é tão grande que quase apaga a evolução no tempo: são relativamente pequenas e pouco significativas, em termos tendenciais, as variações dos valores de aquisição e leitura entre um e outro inquérito. Comparada com esse peso, é reduzida a influência da acessibilidade física e financeira dos livros: não é sobretudo por os livros serem caros ou a sua distribuição irregular que as pessoas não lêem.

Consideremos, ainda, outros elementos de caracterização do universo de leitores. Nele, a televisão não é alternativa à leitura. Quer dizer: a televisão penetra bastante nos segmentos de menor qualificação escolar e social, chegando a monopolizar a ocupação dos tempos livres; nesse sentido, é aí alternativa à leitura. Mas, nos segmentos de maior qualificação, as duas práticas tendem a complementar-se mais do que a concorrer. Por outro lado, o uso das bibliotecas públicas é sobredeterminado pela sua funcionalidade escolar. O que é apenas um dos factos que obriga a complexificar a relação entre escolarização e leitura. Se, em geral, a instrução intermédia (à escala portuguesa) é uma condição necessária e a instrução elevada é uma condição favorável ao hábito da leitura, em nenhum caso podemos falar de condição suficiente: a leitura literária quotidiana é uma prática minoritária mesmo entre os indivíduos com diploma superior e bom estatuto profissional. A escola, se obriga ao contacto com o mundo do livro e da imprensa, fá-lo muitas vezes de forma a sobrevalorizar a leitura funcional, utilitária, em prejuízo da leitura literária. Finalmente, os "leitores cumulativos" (que consomem os três tipos de impresso, jornais, revistas e livros) são bem menos frequentes do que os "leitores parcelares", os "grandes leitores" são mais raros do que os "pequenos leitores" e são em maior número os "leitores enfastiados" (que compram muito e lêem pouco) do que os "leitores carentes" (que compram pouco e lêem muito).

Este conhecimento previne contra ilusões, mas indica recursos e oportunidades. Os hiatos entre os diferentes círculos que a inquirição sociológica vai desenhando são outros tantos desafios à oferta editorial: são os escolarizados que não lêem, os leitores de imprensa que não são leitores de livros, os que lêem por dever escolar ou profissional e não por gosto, os que lêem pouco ou irregularmente, não chegando a formar, portanto, hábitos de leitura. Só melhorias sensíveis e complementares na socialização, na educação formal e na produção e distribuição editorial podem preencher os vários espaços vazios. A socialização das crianças é terreno de fortíssimo potencial, como bem o demonstram o êxito comercial e a influência social da literatura infanto-juvenil, de tal modo que a questão fundamental é hoje a articulação entre o contacto com esta literatura e o gosto adulto. Na educação formal, do que mais precisamos é ultrapassar a obsessão do cânone historicista: conceda-se estímulo, liberdade e orientação aos jovens para lerem os autores e as obras que fazem sentido na sua idade e tempo, que os cânones serão progressivamente conhecidos! Na produção e distribuição editorial, a chave é a combinação entre diversidade e banalização: pluralidade das estéticas e dos géneros, dessacralização do livro, da livraria, da leitura.

É neste plano que reside a potencialidade específica de uma iniciativa como a colecção Mil Folhas. Oferta de produto coerente e qualificante; procedimentos de atracção e fidelização dos clientes; naturalização da relação das pessoas com o livro, o qual pode ser comprado, no quiosque, com o jornal, em condições vantajosas de qualidade e preço. O efeito é, aliás, recíproco: não só se efectivará alguma da procura potencial de livros contida no público (mais vasto) dos leitores do jornal, como a associação ao jornal de livros que se situam na mesma gama contribui para reforçar a sua marca.

Felizmente, a sociologia não prevê nem prescreve comportamentos individuais. Peço-lhe só que se lembre, caro leitor ou leitora, da fortíssima influência do "relacionamento primário com a leitura" sobre os futuros leitores. É tão simples quanto isto: se os filhos virem os pais a ler e ouvirem o que os livros dizem pela voz amorosa dos pais, terão ganho um trunfo fundamental para uma relação familiar com a leitura.

E, já agora, olhe que há cada vez mais estudos de psicologia e sociologia da educação a sugerirem o mesmo nexo causal com o sucesso escolar...

Realismo e Ousadia na Promoção da Leitura

Sábado, 04 de Janeiro de 2003

Que efeito pode ter a colecção Mil Folhas? Ela associa o livro e o jornal, ampliando o circuito de distribuição do primeiro e apostando nos benefícios recíprocos da integração; e usa as potencialidades de atracção e fidelização dos consumidores ligadas ao coleccionismo, proporcionando ao longo de 30 semanas um conjunto relativamente amplo e coerente de títulos. Ora, que resultados positivos para a leitura literária podem gerar estas características?

%Augusto Santos Silva

Abordarei a questão sociologicamente. Havendo vários estudos realizados em Portugal, destacarei os ensinamentos dos que melhor aliam inquérito e teoria. Refiro-me aos livros de Eduardo de Freitas e Maria de Lourdes Lima dos Santos, "Hábitos de Leitura em Portugal", e de Eduardo de Freitas, José Luís Casanova e Nuno de Almeida Alves, "Hábitos de Leitura", ambos publicados pela Dom Quixote, o primeiro em 1992, trabalhando os dados de um inquérito de 1988, e o segundo em 1997, trabalhando os dados de um inquérito de 1995. As grandes tendências então postas em relevo são corroboradas por várias pesquisas subsequentes, desde as sondagens regulares encomendadas pela Associação Portuguesa de Escritores e Livreiros e os estudos do Observatório das Actividades Culturais sobre o sector da edição e o funcionamento das bibliotecas públicas, até aos inquéritos extensivos acerca das práticas culturais, que tomam naturalmente a leitura como um indicador fundamental.

Vale a pena sumariar essas tendências. A prática da leitura é claramente minoritária. Na estimativa de Eduardo de Freitas, 1,7 milhões de portugueses estão afastados de qualquer leitura (de livros, revistas ou jornais), 4 milhões não lêem livros e os "leitores confirmados" de livros (isto é, aqueles sobre cuja prática regular não ficam dúvidas, e são 1,8 milhões) representam um quarto da população com idade igual ou superior a 15 anos. A leitura depende da familiaridade dos indivíduos com o universo da cultura escrita: varia com a origem social e cultural, o nível de instrução e a inserção profissional. Entre as determinações, avulta o "índice de relacionamento primário com a leitura": ser filho de pais que lêem e de pais que lêem para o seus filhos constitui uma vantagem essencial. Assim se configura, desde a primeira infância, a disponibilidade cultural para o universo letrado. O peso destas determinações é tão grande que quase apaga a evolução no tempo: são relativamente pequenas e pouco significativas, em termos tendenciais, as variações dos valores de aquisição e leitura entre um e outro inquérito. Comparada com esse peso, é reduzida a influência da acessibilidade física e financeira dos livros: não é sobretudo por os livros serem caros ou a sua distribuição irregular que as pessoas não lêem.

Consideremos, ainda, outros elementos de caracterização do universo de leitores. Nele, a televisão não é alternativa à leitura. Quer dizer: a televisão penetra bastante nos segmentos de menor qualificação escolar e social, chegando a monopolizar a ocupação dos tempos livres; nesse sentido, é aí alternativa à leitura. Mas, nos segmentos de maior qualificação, as duas práticas tendem a complementar-se mais do que a concorrer. Por outro lado, o uso das bibliotecas públicas é sobredeterminado pela sua funcionalidade escolar. O que é apenas um dos factos que obriga a complexificar a relação entre escolarização e leitura. Se, em geral, a instrução intermédia (à escala portuguesa) é uma condição necessária e a instrução elevada é uma condição favorável ao hábito da leitura, em nenhum caso podemos falar de condição suficiente: a leitura literária quotidiana é uma prática minoritária mesmo entre os indivíduos com diploma superior e bom estatuto profissional. A escola, se obriga ao contacto com o mundo do livro e da imprensa, fá-lo muitas vezes de forma a sobrevalorizar a leitura funcional, utilitária, em prejuízo da leitura literária. Finalmente, os "leitores cumulativos" (que consomem os três tipos de impresso, jornais, revistas e livros) são bem menos frequentes do que os "leitores parcelares", os "grandes leitores" são mais raros do que os "pequenos leitores" e são em maior número os "leitores enfastiados" (que compram muito e lêem pouco) do que os "leitores carentes" (que compram pouco e lêem muito).

Este conhecimento previne contra ilusões, mas indica recursos e oportunidades. Os hiatos entre os diferentes círculos que a inquirição sociológica vai desenhando são outros tantos desafios à oferta editorial: são os escolarizados que não lêem, os leitores de imprensa que não são leitores de livros, os que lêem por dever escolar ou profissional e não por gosto, os que lêem pouco ou irregularmente, não chegando a formar, portanto, hábitos de leitura. Só melhorias sensíveis e complementares na socialização, na educação formal e na produção e distribuição editorial podem preencher os vários espaços vazios. A socialização das crianças é terreno de fortíssimo potencial, como bem o demonstram o êxito comercial e a influência social da literatura infanto-juvenil, de tal modo que a questão fundamental é hoje a articulação entre o contacto com esta literatura e o gosto adulto. Na educação formal, do que mais precisamos é ultrapassar a obsessão do cânone historicista: conceda-se estímulo, liberdade e orientação aos jovens para lerem os autores e as obras que fazem sentido na sua idade e tempo, que os cânones serão progressivamente conhecidos! Na produção e distribuição editorial, a chave é a combinação entre diversidade e banalização: pluralidade das estéticas e dos géneros, dessacralização do livro, da livraria, da leitura.

É neste plano que reside a potencialidade específica de uma iniciativa como a colecção Mil Folhas. Oferta de produto coerente e qualificante; procedimentos de atracção e fidelização dos clientes; naturalização da relação das pessoas com o livro, o qual pode ser comprado, no quiosque, com o jornal, em condições vantajosas de qualidade e preço. O efeito é, aliás, recíproco: não só se efectivará alguma da procura potencial de livros contida no público (mais vasto) dos leitores do jornal, como a associação ao jornal de livros que se situam na mesma gama contribui para reforçar a sua marca.

Felizmente, a sociologia não prevê nem prescreve comportamentos individuais. Peço-lhe só que se lembre, caro leitor ou leitora, da fortíssima influência do "relacionamento primário com a leitura" sobre os futuros leitores. É tão simples quanto isto: se os filhos virem os pais a ler e ouvirem o que os livros dizem pela voz amorosa dos pais, terão ganho um trunfo fundamental para uma relação familiar com a leitura.

E, já agora, olhe que há cada vez mais estudos de psicologia e sociologia da educação a sugerirem o mesmo nexo causal com o sucesso escolar...

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