DEIXEMOS QUE ESTE LIVRO SE FECHE

23-06-2004
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DEIXEMOS QUE ESTE LIVRO SE FECHE

Sábado, 10 de Abril de 2004

%Eduardo Prado Coelho

Este livro - falo de "Lições de Trevas", de Fernando Guimarães, nas edições Quasi - é uma invulgar e perturbante experiência de leitura. Como se o seu autor - um dos nomes mais significativos na poesia, no ensaio e na reflexão sobre a literatura da segunda metade do século XX - tivesse atingido uma densidade de palavra que todas as distinções entre poesia e prosa se desvanecem para ficar apenas uma atmosfera, um caminho, um movimento, uma concentração nas páginas de um livro. Como sucede com outros autores poetas portugueses, e estou-me a lembrar de Pedro Tamen, de Manuel António Pina, de António Mega Ferreira, há uma marca da idade que ganha contornos diversos segundo a índole e o humor de cada poeta - mas em todos eles o enigma do tempo é a questão que não pode ser iludida: com que pressa passou tudo o que passou às vezes tão devagar?

A poesia de Fernando Guimarães anda por vezes muito perto daquilo a que chamamos prosa. É uma questão de ritmo, de equilíbrio interior, de serenidade das palavras. Se não fossem os cortes dos supostos versos, e o consequente efeito de transporte, com que alguns definem formalmente a poesia, poderíamos alinhar estas frases como se fossem um texto "normal". Contudo, há determinados traços que criam o alarme. Em primeiro lugar, a noção de "aviso". Estas palavras inscritas nas páginas deste volume têm uma relação com o mundo que não é de adequação, mas, sim, de prenúncio: vêm avisar-nos que há um segredo que sustenta a visibilidade do visível. Daí que Fernando Guimarães escreva: "A verdade cabia nos teus olhos, mas estes fecham-se / com um movimento que se torna simples. Apenas a espuma / era trazida pelas ondas e outros vestígios chegaram / de um dia humedecido; depois, vimos como se deteve / e ficou de novo submersa. Mas é dela que talvez se receba / um aviso. Ainda hoje a esperamos quando junto de nós / finalmente se encontra uma nova imagem abandonada / pela proximidade da noite. Sabias que a verdade é um aviso?"

O que cria esta oscilação entre a poesia e a prosa é, para utilizarmos categorias clássicas, uma longa oscilação entre o som e o sentido (embora o sentido absorva a presença cada vez mais imaterial do som), entre a marcha e a dança. Esta poesia não dança, mas avança, e contudo consegue ser poesia. É nisso que reside o fascínio que ela nos proporciona. Esta poesia dialoga num diálogo entre seres que são apenas vultos de uma identidade que lentamente se esfuma. Se quisermos encontrar a marca formal do seu movimento, podemos dizer que é um deslizar aveludado em que cada palavra é cada vez mais uma assombração ciciada, um segredo murmurado que se silencia na luz que o envolve. Espaço habitado por desconhecidos que acenam entre si, que enviam sinais de um fogo abstracto, que se deixam corromper pelo branco a que desde a origem pertencem. E é nisto, nesta dimensão de atmosfera, que este livro em que cada rosto é já um rosto qualquer produz aquilo que é a morte antes da morte: uma singularidade esvaída. Daí que o movimento nos conduza até à circularidade de uns olhos que tudo contêm (e que podem ser os meus ou os teus), à cadência das ondas que eternamente se duplicam, à imobilidade definitiva dos seres: "Quem veio escrever estas palavras? Abre / sem pressa o livro, mas nem sequer o leias / todo. Deixem que fiquem algumas dessas páginas / caídas ao teu lado. Assim talvez encontres / a imobilidade que finalmente existe / no seu interior. É tudo o que recebes / de alguém que nem sequer te pode conhecer / quando faz para ti um derradeiro gesto." Se quiséssemos encontrar afinidades cúmplices, poderíamos evocar o trajecto que vai de Kafka a Blanchot. Mas dificilmente encontraríamos na literatura portuguesa o mesmo tom, o mesmo timbre. De Blanchot há sobretudo a celebração da vida (ou melhor, a apoteose do "sim") no limite em que a vida se deixa contaminar pela "loucura do dia": "Quando era criança o tempo passava sem me tocar. Mas depois / aproximou-se, como se nele existisse uma estranha curiosidade, e senti / que ia descer finalmente sobre o meu peito. Aí nasceram / duas palavras circulares, aquecidas, redondas. Sinto o seu estranho / poder, a escuridão que as habita. O meu receio, que julgava / ter desaparecido, aumentou. Há-de essa escuridão pertencer a alguém. Talvez tenha chegado a minha hora. Diria que os caminhos / são mais extensos, tornados flexíveis pela seiva. / E eu, criança, fico a aguardar por quem me vinha entregar / estas pétalas mais largas da idade. Tenho a certeza / de que tudo o que acontecer será assim. No meu ventre / que estava vazio, o que floresce era apenas este segredo, a espessa / simetria de outro corpo. Sinto-me agora feliz! A felicidade / desce sobre mim e estende-se como se fosse estes lençóis / manchados por uma humidade pura e tranquila."

Gostaria de salientar dois pontos: em primeiro lugar, uma lei de envolvimento. Por outras palavras, pouco a pouco, as coisas envolvem-se a si próprias numa vertigem lenta, numa dança estupefacta. E a última volta vem dos teus olhos ou da narrativa a que esse olhos se entregam. O envolvimento é uma concentração quando o centro se tornou errante. Todos dele se aproximam, num sonambulismo sem tréguas, mas ninguém sabe de que se aproxima. A tautologia é agora o vértice da alegria: "É dentro de uma flor que fica outra flor. Mas / esta é maior ainda. Nela é que se encontravam / as pétalas sobrepostas, a mais alta de todas / as hastes, o súbito perfume que procurava o corpo / de ninguém e, depois, se torna ali mais puro / até que continue noutra flor, que ficava perdida / no interior das duas para que já não tenha / limites. E há-de ser esta por fim aquela que colhemos."

Em segundo lugar, a redistribuição tranquila entre os homens e os deuses - que é uma nova configuração das relações entre imanência e transcendência. Encontrando uma terceira flor (a flor entre as duas flores sobrepostas), aprende-se a encontrar o espaço terceiro em que a imanência se transcendencializa e a transcendência se imanentiza. Escreve Fernando Guimarães em nome de Ovídio: "Há quem julgue que nos meus versos me refiro aos deuses / e aos homens. Eu próprio contribuí para isso. Mas posso dizer-vos / que sigo outros caminhos. Falo dos seres. Sempre o fiz. As nuvens / chegam de longe e ficam reflectidas na superfície límpida / do mar. Se me perguntas o que é um ser, direi apenas / que tudo o que for trazido pelas ondas delas recebe / uma outra realidade, esse estremecimento que parece ter / origem num ventre materno fecundado pela areia / ou pela luz. Há quem olhe e não o reconheça; por isso tenho / de o escrever."

Há um poema final que de certo modo faz a síntese do livro. Nele se fala da narrativa estranha que o texto atravessou. Dos diálogos entre personagens espectrais em que cada um vai dizendo cada vez mais o mesmo que o outro. Do segredo que é a arquitectura de tudo. Do esquecimento que prevalece. "Já é tarde. Deixemos que este livro se feche. Outrora / pude nele encontrar uma narrativa estranha. Não havia / personagens. Mas sempre foi como se os houvesse. Escutava respostas e perguntas, palavras de súbito pronunciadas, o ruído / de passos. Uma porta fechava-se. E sabíamos como ficara / ali sozinho alguém."

DEIXEMOS QUE ESTE LIVRO SE FECHE

Sábado, 10 de Abril de 2004

%Eduardo Prado Coelho

Este livro - falo de "Lições de Trevas", de Fernando Guimarães, nas edições Quasi - é uma invulgar e perturbante experiência de leitura. Como se o seu autor - um dos nomes mais significativos na poesia, no ensaio e na reflexão sobre a literatura da segunda metade do século XX - tivesse atingido uma densidade de palavra que todas as distinções entre poesia e prosa se desvanecem para ficar apenas uma atmosfera, um caminho, um movimento, uma concentração nas páginas de um livro. Como sucede com outros autores poetas portugueses, e estou-me a lembrar de Pedro Tamen, de Manuel António Pina, de António Mega Ferreira, há uma marca da idade que ganha contornos diversos segundo a índole e o humor de cada poeta - mas em todos eles o enigma do tempo é a questão que não pode ser iludida: com que pressa passou tudo o que passou às vezes tão devagar?

A poesia de Fernando Guimarães anda por vezes muito perto daquilo a que chamamos prosa. É uma questão de ritmo, de equilíbrio interior, de serenidade das palavras. Se não fossem os cortes dos supostos versos, e o consequente efeito de transporte, com que alguns definem formalmente a poesia, poderíamos alinhar estas frases como se fossem um texto "normal". Contudo, há determinados traços que criam o alarme. Em primeiro lugar, a noção de "aviso". Estas palavras inscritas nas páginas deste volume têm uma relação com o mundo que não é de adequação, mas, sim, de prenúncio: vêm avisar-nos que há um segredo que sustenta a visibilidade do visível. Daí que Fernando Guimarães escreva: "A verdade cabia nos teus olhos, mas estes fecham-se / com um movimento que se torna simples. Apenas a espuma / era trazida pelas ondas e outros vestígios chegaram / de um dia humedecido; depois, vimos como se deteve / e ficou de novo submersa. Mas é dela que talvez se receba / um aviso. Ainda hoje a esperamos quando junto de nós / finalmente se encontra uma nova imagem abandonada / pela proximidade da noite. Sabias que a verdade é um aviso?"

O que cria esta oscilação entre a poesia e a prosa é, para utilizarmos categorias clássicas, uma longa oscilação entre o som e o sentido (embora o sentido absorva a presença cada vez mais imaterial do som), entre a marcha e a dança. Esta poesia não dança, mas avança, e contudo consegue ser poesia. É nisso que reside o fascínio que ela nos proporciona. Esta poesia dialoga num diálogo entre seres que são apenas vultos de uma identidade que lentamente se esfuma. Se quisermos encontrar a marca formal do seu movimento, podemos dizer que é um deslizar aveludado em que cada palavra é cada vez mais uma assombração ciciada, um segredo murmurado que se silencia na luz que o envolve. Espaço habitado por desconhecidos que acenam entre si, que enviam sinais de um fogo abstracto, que se deixam corromper pelo branco a que desde a origem pertencem. E é nisto, nesta dimensão de atmosfera, que este livro em que cada rosto é já um rosto qualquer produz aquilo que é a morte antes da morte: uma singularidade esvaída. Daí que o movimento nos conduza até à circularidade de uns olhos que tudo contêm (e que podem ser os meus ou os teus), à cadência das ondas que eternamente se duplicam, à imobilidade definitiva dos seres: "Quem veio escrever estas palavras? Abre / sem pressa o livro, mas nem sequer o leias / todo. Deixem que fiquem algumas dessas páginas / caídas ao teu lado. Assim talvez encontres / a imobilidade que finalmente existe / no seu interior. É tudo o que recebes / de alguém que nem sequer te pode conhecer / quando faz para ti um derradeiro gesto." Se quiséssemos encontrar afinidades cúmplices, poderíamos evocar o trajecto que vai de Kafka a Blanchot. Mas dificilmente encontraríamos na literatura portuguesa o mesmo tom, o mesmo timbre. De Blanchot há sobretudo a celebração da vida (ou melhor, a apoteose do "sim") no limite em que a vida se deixa contaminar pela "loucura do dia": "Quando era criança o tempo passava sem me tocar. Mas depois / aproximou-se, como se nele existisse uma estranha curiosidade, e senti / que ia descer finalmente sobre o meu peito. Aí nasceram / duas palavras circulares, aquecidas, redondas. Sinto o seu estranho / poder, a escuridão que as habita. O meu receio, que julgava / ter desaparecido, aumentou. Há-de essa escuridão pertencer a alguém. Talvez tenha chegado a minha hora. Diria que os caminhos / são mais extensos, tornados flexíveis pela seiva. / E eu, criança, fico a aguardar por quem me vinha entregar / estas pétalas mais largas da idade. Tenho a certeza / de que tudo o que acontecer será assim. No meu ventre / que estava vazio, o que floresce era apenas este segredo, a espessa / simetria de outro corpo. Sinto-me agora feliz! A felicidade / desce sobre mim e estende-se como se fosse estes lençóis / manchados por uma humidade pura e tranquila."

Gostaria de salientar dois pontos: em primeiro lugar, uma lei de envolvimento. Por outras palavras, pouco a pouco, as coisas envolvem-se a si próprias numa vertigem lenta, numa dança estupefacta. E a última volta vem dos teus olhos ou da narrativa a que esse olhos se entregam. O envolvimento é uma concentração quando o centro se tornou errante. Todos dele se aproximam, num sonambulismo sem tréguas, mas ninguém sabe de que se aproxima. A tautologia é agora o vértice da alegria: "É dentro de uma flor que fica outra flor. Mas / esta é maior ainda. Nela é que se encontravam / as pétalas sobrepostas, a mais alta de todas / as hastes, o súbito perfume que procurava o corpo / de ninguém e, depois, se torna ali mais puro / até que continue noutra flor, que ficava perdida / no interior das duas para que já não tenha / limites. E há-de ser esta por fim aquela que colhemos."

Em segundo lugar, a redistribuição tranquila entre os homens e os deuses - que é uma nova configuração das relações entre imanência e transcendência. Encontrando uma terceira flor (a flor entre as duas flores sobrepostas), aprende-se a encontrar o espaço terceiro em que a imanência se transcendencializa e a transcendência se imanentiza. Escreve Fernando Guimarães em nome de Ovídio: "Há quem julgue que nos meus versos me refiro aos deuses / e aos homens. Eu próprio contribuí para isso. Mas posso dizer-vos / que sigo outros caminhos. Falo dos seres. Sempre o fiz. As nuvens / chegam de longe e ficam reflectidas na superfície límpida / do mar. Se me perguntas o que é um ser, direi apenas / que tudo o que for trazido pelas ondas delas recebe / uma outra realidade, esse estremecimento que parece ter / origem num ventre materno fecundado pela areia / ou pela luz. Há quem olhe e não o reconheça; por isso tenho / de o escrever."

Há um poema final que de certo modo faz a síntese do livro. Nele se fala da narrativa estranha que o texto atravessou. Dos diálogos entre personagens espectrais em que cada um vai dizendo cada vez mais o mesmo que o outro. Do segredo que é a arquitectura de tudo. Do esquecimento que prevalece. "Já é tarde. Deixemos que este livro se feche. Outrora / pude nele encontrar uma narrativa estranha. Não havia / personagens. Mas sempre foi como se os houvesse. Escutava respostas e perguntas, palavras de súbito pronunciadas, o ruído / de passos. Uma porta fechava-se. E sabíamos como ficara / ali sozinho alguém."

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