Artistas e intermediários

25-12-2002
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FORA DO MERCADO

Artistas e Intermediários

Sábado, 21 de Dezembro de 2002

%Jorge Silva Melo

"Se calhar os autores e músicos deviam organizar-se e criar uma rádio!", disse Vitorino um dia destes ao PÚBLICO. E, farto de anúncios a telemóveis mal acordo, fiquei suspenso: uma rádio dos artistas! Programas do José Mário Branco ou do Pinho Vargas, do Jorge Palma, da Maria João Pires e do Luís Tinoco. E não necessariamente da música: uma rádio dos autores, do Paulo Rocha, do Gastão Cruz ou do Manuel António Pina, do Vasco sobre Saint Germain des Près, do Pedro Tamen, da Madalena Victorino, uma rádio "do produtor ao consumidor", sem intermediários!

E adormeci sonhando com cartas brancas e emissões. E, emaranhado, acordei em memórias dos tempos em que, em Itália, os livros eram escolhidos, traduzidos, divulgados, disputados entre Turim e Milão não por impolutos funcionários do "marketing" mas justamente por injustos escritores formados na dura Resistência. Os tempos em que, nos escritórios da Einaudi, Pavese recitava Homero em grego e a Ginzburg, ao lado, traduzia Anne Frank ou Tolstoi, perante Gadda, que, barroco, sempre imagino a resmungar e Calvino relendo clássicos, tarots e franceses. E leio a correspondência de Vittorini na sua actividade editorial (também na Einaudi e na Mondadori), traduzindo Poe e Lawrence, revendo, comentando, dirigindo colecções, orientando antologias, anotando traduções. A edição era o prolongamento natural da escrita e da política. (Era? Porque é que deixou de o ser?) E, claro, covil de imundas injustiças, esquecimentos, ignóbeis cegueiras, Proust recusado pelos sábios da Gallimard, Lampedusa pelo mesmo Vittorini que tantos tão aceradamente descobriu (Calvino, precisamente, mas também Lalla Romano, Beppe Fenoglio, Carlo Cassola). E, no alto de Russel Square, austero, T.S. Eliot revia provas da Faber com temeroso lápis.

É voz corrente que os artistas agora são condomínios fechados, andam de festa em lançamentos; e, ficam lá por casa, olhando a chuva que mói almas. Talvez seja por isso que gosto ainda tanto dos que - em Itália, mas também na Barcelona de Carlos Barral - sujaram as mãos no mundo editorial, escolhendo, prefaciando, recusando, indo à tipografia, criticando até, polemicando, negociando contratos e exigindo prazos.

E queixam-se hoje os pintores do convencionalismo do mercado; os espectadores do monolitismo das instituições; queixam-se os músicos; queixaram-se os cineastas. Ainda no outro dia se sentou à minha mesa um poeta amigo e só encolhemos ombros naquele "Isto anda mau" dos reformados dos jardins, que, ao menos, lá têm o dominó para se entreterem.

Dizem que já lá vai o tempo em que os artistas assaltaram o poder cultural, tempo romântico e outro, outros os sonhos, outro, mais inocente, fervoroso ou totalitário, o mercado.

Mas a proposta do Vitorino volta-me na cabeça. Uma rádio dos artistas? Uma arte sem intermediários?

Ou não foi a mais surpreendente exposição que vi o Klee da Hayward Gallery "curado" por artista, Bridget Riley? Ou não foi a melhor crítica de poesia destes anos todos o que escreveu o Armando Silva Carvalho (era uma crítica? era uma poesia?) na "Relâmpago" sobre a Fiama?

Ah, mas o Vitorino queria uma rádio para defender a "música portuguesa". E disso já não gosto, nada mesmo. Gostava de uma rádio - de editoras, de distribuidoras, de cinemas... - que desse música, isso sim. Que me mostrasse a que não conheço ou de que não me lembro, fosse ela romena, nova-iorquina ou de Santarém. Mas não necessariamente a do Guadiana para cá.

E se inventássemos uma internacional? Não podia ser já para o ano, este que aí vem?

FORA DO MERCADO

Artistas e Intermediários

Sábado, 21 de Dezembro de 2002

%Jorge Silva Melo

"Se calhar os autores e músicos deviam organizar-se e criar uma rádio!", disse Vitorino um dia destes ao PÚBLICO. E, farto de anúncios a telemóveis mal acordo, fiquei suspenso: uma rádio dos artistas! Programas do José Mário Branco ou do Pinho Vargas, do Jorge Palma, da Maria João Pires e do Luís Tinoco. E não necessariamente da música: uma rádio dos autores, do Paulo Rocha, do Gastão Cruz ou do Manuel António Pina, do Vasco sobre Saint Germain des Près, do Pedro Tamen, da Madalena Victorino, uma rádio "do produtor ao consumidor", sem intermediários!

E adormeci sonhando com cartas brancas e emissões. E, emaranhado, acordei em memórias dos tempos em que, em Itália, os livros eram escolhidos, traduzidos, divulgados, disputados entre Turim e Milão não por impolutos funcionários do "marketing" mas justamente por injustos escritores formados na dura Resistência. Os tempos em que, nos escritórios da Einaudi, Pavese recitava Homero em grego e a Ginzburg, ao lado, traduzia Anne Frank ou Tolstoi, perante Gadda, que, barroco, sempre imagino a resmungar e Calvino relendo clássicos, tarots e franceses. E leio a correspondência de Vittorini na sua actividade editorial (também na Einaudi e na Mondadori), traduzindo Poe e Lawrence, revendo, comentando, dirigindo colecções, orientando antologias, anotando traduções. A edição era o prolongamento natural da escrita e da política. (Era? Porque é que deixou de o ser?) E, claro, covil de imundas injustiças, esquecimentos, ignóbeis cegueiras, Proust recusado pelos sábios da Gallimard, Lampedusa pelo mesmo Vittorini que tantos tão aceradamente descobriu (Calvino, precisamente, mas também Lalla Romano, Beppe Fenoglio, Carlo Cassola). E, no alto de Russel Square, austero, T.S. Eliot revia provas da Faber com temeroso lápis.

É voz corrente que os artistas agora são condomínios fechados, andam de festa em lançamentos; e, ficam lá por casa, olhando a chuva que mói almas. Talvez seja por isso que gosto ainda tanto dos que - em Itália, mas também na Barcelona de Carlos Barral - sujaram as mãos no mundo editorial, escolhendo, prefaciando, recusando, indo à tipografia, criticando até, polemicando, negociando contratos e exigindo prazos.

E queixam-se hoje os pintores do convencionalismo do mercado; os espectadores do monolitismo das instituições; queixam-se os músicos; queixaram-se os cineastas. Ainda no outro dia se sentou à minha mesa um poeta amigo e só encolhemos ombros naquele "Isto anda mau" dos reformados dos jardins, que, ao menos, lá têm o dominó para se entreterem.

Dizem que já lá vai o tempo em que os artistas assaltaram o poder cultural, tempo romântico e outro, outros os sonhos, outro, mais inocente, fervoroso ou totalitário, o mercado.

Mas a proposta do Vitorino volta-me na cabeça. Uma rádio dos artistas? Uma arte sem intermediários?

Ou não foi a mais surpreendente exposição que vi o Klee da Hayward Gallery "curado" por artista, Bridget Riley? Ou não foi a melhor crítica de poesia destes anos todos o que escreveu o Armando Silva Carvalho (era uma crítica? era uma poesia?) na "Relâmpago" sobre a Fiama?

Ah, mas o Vitorino queria uma rádio para defender a "música portuguesa". E disso já não gosto, nada mesmo. Gostava de uma rádio - de editoras, de distribuidoras, de cinemas... - que desse música, isso sim. Que me mostrasse a que não conheço ou de que não me lembro, fosse ela romena, nova-iorquina ou de Santarém. Mas não necessariamente a do Guadiana para cá.

E se inventássemos uma internacional? Não podia ser já para o ano, este que aí vem?

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