Perder o Norte, guardar o Sul

23-04-2004
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Perder o Norte, Guardar o Sul

Sábado, 27 de Março de 2004

%Manuela Barreto

"Porque é de noite e estamos ambos sós,

leitura e escritura, criador e criatura,

na mesma inumerável voz"

in "Os Livros", Manuel António Pina

No cenário de uma Alemanha ordenada, como se espera, reúne-se um grupo de estudantes europeus (num curso onde vão aprender a ser líderes) e entre os personagens surgem escritores putativos, Catarina-flor, uma mastodonta (feminino de "mastodonte"), maluca ainda por cima, uma futura agente literária (de uma persistência germânica), gnomos, bruxas, pistoleiros, mágicos e um tal Joe Dangerous que telefona directamente de 1890, de El Paso, para o protagonista - o narrador. Por aqui já se vê que a ironia (fina) não anda arredada de "O Medo Longe de Ti". Mas não apenas. O narrador, qual maestro, possui o poder de convocar figurinhas, solistas, muito pequenas (capazes de se esconderem num bolso de casaco), de se passear com elas, embora momentos haja em que se vê forçado a enxotá-las, pois podem ser benignas ou ter uma vontade danada de lhe fazer mal. Semelhante narrador tece então uma ponte entre a narrativa que ante nós se desenrola e o seu delírio íntimo e assim opera a junção entre uma história ancorada num espaço e tempo "reais" e o mundo da imaginação, conotado com o Sul e a sua floresta desordenada, manancial de perigos, mas também doce memória da infância, de onde provém o protagonista e aonde regressa no final. O Sul opõe-se pois ao Norte, à floresta alemã "das regras", onde até os bichos parecem obedecer aos ditames das autoridades municipais.

Muito bem escrito, num tom sempre próximo, convocando um universo próprio, "O Medo Longe de Ti", se desenvolve de modo algo monocórdico o seu tópico narrativo - o amor e as suas perplexidades -, não se fecha porém dentro dele e, além de alfinetadas à Europa organizadinha, com posto de comando em Bruxelas, sem alma nem jeito para as pessoas, aflora com ironia recentes evoluções no mundo laboral: "Havia mágicos reunidos à porta da Feira Popular, muitos, centenas deles, todos dispensados da fábrica das minha lágrimas. Os avanços tecnológicos... As leis laborais... Centenas de mágicos desocupados à porta da Feira Popular, apenas capazes de produzir lágrimas, mas sem lugar na fábrica onde agora vinte ou trinta davam conta do recado" (p. 169).

Interessante é o facto de a trama narrativa debater implicitamente o próprio processo criativo - neste caso, em literatura (há um caso de sucesso com um escritor que escreve em cima das árvores...) -, a par do tema da recepção do produto literário.

Se for verdade que é à infância que se vai buscar a inspiração, depois transfigurada, então também este tema é aqui tratado, ora sob a forma de motivos (a floresta do Sul, as caçadas aos grilos, os campos de trigo evocados nos cabelos da amada), ora nas tais figurinhas em destaque (gnomos, bruxas, mágicos, pistoleiros...) que possuem a enorme vantagem de encenar um teatro interior, que é como quem diz, alguém a falar de si para si e a abordar e esclarecer os medos e as dúvidas que a todos percorrem nesta experiência sem rascunho, a da própria vida. Dir-se-ia então que esta história é a prova acabada da teoria de que os personagens são partes clivadas de um autor. "Os mágicos... Sim, eram eles, todos unidos. Falavam uns com os outros, animavam-se, para que houvesse uma boa produção de lágrimas (...) Eu haveria de chorar até ao amanhecer (...) Tinha dormido no cimo da árvore (...) agarrado não sei como, talvez ajudado pelos meus instintos de criança" (p. 147). E o narrador assim desce (ou ascende) aos medos da infância e distribui aflições e pensamentos por vozes diversas.

O amor definitivo e acabado - não há a "mácula" das contingências do quotidiano, talvez porque não houve "tempo" para se aí chegar - é o sonho do narrador. Mas os seres que o vivem são frágeis, temerosos, o seu mundo interior é demasiado poderoso (pelo menos o daquele que melhor ficamos a conhecer) e esse amor está condenado a falhar. Porém, esse desejo mais largo do que será aqui humanamente realizável permanece o voto poético de quem narra: "Eu tinha alguns beijos teus nas estrelas do céu (...) Comecei a pensar em ti a afastares-te no comboio, a rapariga mais bonita do mundo, o meu amor a afastar-se, e o beijo da estrela pequenina sempre cravado numa das pontas, que quase não se via" (p. 133 e p. 136).

Para o final da história, que nos reserva uma surpresa mesmo no seu termo, há como que um apaziguamento eternecido: "O mágico velhinho, se estava na hora do sono, acordava logo, de mau humor. Deixava as sacas de serapilheira debaixo da minha secretária e ia buscar o realejo (...) Saía pela varanda, dizendo que ia dar uma volta até chegar a hora de tocar no Rossio (...) eu aproveitava para escrever, sem o ressonar do mágico velhinho a incomodar-me. Porque, quando ele ressonava, invariavelmente eu pegava nas chaves do carro, vestia o casaco (...)" (p. 169). O resto, pois para isso há que ler a história e saboreá-la. Deixar-se ir. Sem mais.

Perder o Norte, Guardar o Sul

Sábado, 27 de Março de 2004

%Manuela Barreto

"Porque é de noite e estamos ambos sós,

leitura e escritura, criador e criatura,

na mesma inumerável voz"

in "Os Livros", Manuel António Pina

No cenário de uma Alemanha ordenada, como se espera, reúne-se um grupo de estudantes europeus (num curso onde vão aprender a ser líderes) e entre os personagens surgem escritores putativos, Catarina-flor, uma mastodonta (feminino de "mastodonte"), maluca ainda por cima, uma futura agente literária (de uma persistência germânica), gnomos, bruxas, pistoleiros, mágicos e um tal Joe Dangerous que telefona directamente de 1890, de El Paso, para o protagonista - o narrador. Por aqui já se vê que a ironia (fina) não anda arredada de "O Medo Longe de Ti". Mas não apenas. O narrador, qual maestro, possui o poder de convocar figurinhas, solistas, muito pequenas (capazes de se esconderem num bolso de casaco), de se passear com elas, embora momentos haja em que se vê forçado a enxotá-las, pois podem ser benignas ou ter uma vontade danada de lhe fazer mal. Semelhante narrador tece então uma ponte entre a narrativa que ante nós se desenrola e o seu delírio íntimo e assim opera a junção entre uma história ancorada num espaço e tempo "reais" e o mundo da imaginação, conotado com o Sul e a sua floresta desordenada, manancial de perigos, mas também doce memória da infância, de onde provém o protagonista e aonde regressa no final. O Sul opõe-se pois ao Norte, à floresta alemã "das regras", onde até os bichos parecem obedecer aos ditames das autoridades municipais.

Muito bem escrito, num tom sempre próximo, convocando um universo próprio, "O Medo Longe de Ti", se desenvolve de modo algo monocórdico o seu tópico narrativo - o amor e as suas perplexidades -, não se fecha porém dentro dele e, além de alfinetadas à Europa organizadinha, com posto de comando em Bruxelas, sem alma nem jeito para as pessoas, aflora com ironia recentes evoluções no mundo laboral: "Havia mágicos reunidos à porta da Feira Popular, muitos, centenas deles, todos dispensados da fábrica das minha lágrimas. Os avanços tecnológicos... As leis laborais... Centenas de mágicos desocupados à porta da Feira Popular, apenas capazes de produzir lágrimas, mas sem lugar na fábrica onde agora vinte ou trinta davam conta do recado" (p. 169).

Interessante é o facto de a trama narrativa debater implicitamente o próprio processo criativo - neste caso, em literatura (há um caso de sucesso com um escritor que escreve em cima das árvores...) -, a par do tema da recepção do produto literário.

Se for verdade que é à infância que se vai buscar a inspiração, depois transfigurada, então também este tema é aqui tratado, ora sob a forma de motivos (a floresta do Sul, as caçadas aos grilos, os campos de trigo evocados nos cabelos da amada), ora nas tais figurinhas em destaque (gnomos, bruxas, mágicos, pistoleiros...) que possuem a enorme vantagem de encenar um teatro interior, que é como quem diz, alguém a falar de si para si e a abordar e esclarecer os medos e as dúvidas que a todos percorrem nesta experiência sem rascunho, a da própria vida. Dir-se-ia então que esta história é a prova acabada da teoria de que os personagens são partes clivadas de um autor. "Os mágicos... Sim, eram eles, todos unidos. Falavam uns com os outros, animavam-se, para que houvesse uma boa produção de lágrimas (...) Eu haveria de chorar até ao amanhecer (...) Tinha dormido no cimo da árvore (...) agarrado não sei como, talvez ajudado pelos meus instintos de criança" (p. 147). E o narrador assim desce (ou ascende) aos medos da infância e distribui aflições e pensamentos por vozes diversas.

O amor definitivo e acabado - não há a "mácula" das contingências do quotidiano, talvez porque não houve "tempo" para se aí chegar - é o sonho do narrador. Mas os seres que o vivem são frágeis, temerosos, o seu mundo interior é demasiado poderoso (pelo menos o daquele que melhor ficamos a conhecer) e esse amor está condenado a falhar. Porém, esse desejo mais largo do que será aqui humanamente realizável permanece o voto poético de quem narra: "Eu tinha alguns beijos teus nas estrelas do céu (...) Comecei a pensar em ti a afastares-te no comboio, a rapariga mais bonita do mundo, o meu amor a afastar-se, e o beijo da estrela pequenina sempre cravado numa das pontas, que quase não se via" (p. 133 e p. 136).

Para o final da história, que nos reserva uma surpresa mesmo no seu termo, há como que um apaziguamento eternecido: "O mágico velhinho, se estava na hora do sono, acordava logo, de mau humor. Deixava as sacas de serapilheira debaixo da minha secretária e ia buscar o realejo (...) Saía pela varanda, dizendo que ia dar uma volta até chegar a hora de tocar no Rossio (...) eu aproveitava para escrever, sem o ressonar do mágico velhinho a incomodar-me. Porque, quando ele ressonava, invariavelmente eu pegava nas chaves do carro, vestia o casaco (...)" (p. 169). O resto, pois para isso há que ler a história e saboreá-la. Deixar-se ir. Sem mais.

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