Com que palavras e sem que palavras?

09-05-2004
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Com Que Palavras e Sem Que Palavras?

Sábado, 31 de Janeiro de 2004

%Maria da Conceição Caleiro

Desde sempre, na poesia de Manuel António Pina se manifesta uma certa consaguinidade entre pensamento e poesia, na senda, como já foi afirmado, de um Pessoa ortónimo. Assente, como o próprio confessou, sobre uma mundividência ideal, xintoísta. Isenta de sobrecargas metaforizantes ou expressionistas. Pelo contrário, ressalta uma delicadeza muito bela, se bem que dolorida, no que a luz deixa ficar nas brechas do que foi mas reverbera ainda, e sempre. Na memória, "alguma voz anterior fala no que posso escrever", "como aquele antiquíssimo burro, talvez o da minha infância,/ ave imortal não nascida para morrer/ que imovelmente me fita da lembrança".

O seu novo livro "Os Livros" continua, e reitera ainda mais intensamente, a infinita subtracção do mundo ao ser, à presença, à unidade do Mesmo que se dissolve, ficando a pairar noutra coisa.

A figura do duplo, do desdobramento, marca de resto toda a obra, confunde o de dentro e o de fora, o interior e o exterior, fazendo deste o idêntico - esse desprendimento irisado de sombra em sombra, imparável desde o mais arcaico e inabsorvível corpo que a memória traz, mesmo dentro do sonho ou do sono. Ao passar, por exemplo, "o segundo gato": "Em cada gato há outro gato/ (...) Um gato incoincidente/ com o gato iridescente,/ caminhando à sua frente// ou a seu lado,/ espírito alado/ do que é terrestre no gato.// É o segundo gato/ que permanece acordado/ com o gato afundado// em sono abstracto, aos seus pés enrolado,/ espécie de gato do gato//(...) O próprio gato/ não sabe// que anda por ali algo que não cabe/ dentro nem fora de si."

"Será prudente - perguntou ele - confiar/ o Verdadeiro a tanta ausência?" Ele: livro ou o escritor? Estes e outros surgem no enunciado poético como sujeitos. Ou ainda, tantas vezes, é o poema ou o leitor, directamente interpelado, envolvido na configuração de um "nós". Todos se trespassam e a todos, ou a afinal a nenhum, se diz "tu" e o próprio sujeito poético se cinde, exortando, aquém ou além da retórica, outro de si, porque tudo (re)nasce já dividido, incoincidente, e por isso irreparavelmente plural, já não é possível "desimaginar o mundo, descriá-lo" - "Para cá de mim e para lá de mim, antes e depois./ E entre mim eu, isto é, palavras,/ formas indecisas/ procurando um eixo que/ lhes dê peso, um sentido capaz de conter/ a sua inocência/ uma voz (uma palavra) a que se prender/ antes de se despedaçarem/ contra tanto silêncio./ São elas, as tuas palavras, quem diz 'eu'."

A poesia do autor mantém viva a aporia - essa coexistência de contrários que não se anulam, nem aqui se precipitam num niilismo, nem se ultrapassam na dialéctica. Antes afirmam "entre mim" uma voz, ou "tanto silêncio" que se povoará de vozes, uma terceira instância irrenunciável que respira, sem se imobilizar. "O Mestre não respondeu (...) pois,/ ao contrário de Bill, não tinha para dizer nada/ que pudesse ser dito com palavras ou sem palavras"; ou ainda um lugar que os reúne e relança - o do coração? Ou o fosso da palavra coração? Ou o coração entre aspas abrindo por dentro o aberto? Um lugar onde se escuta "algo mais elementar que o espaço e o tempo,/ (...) antes do pensamento,/ uma sílaba só de uma palavra não dita,// sem sentido e sem finalidade, apenas uma ocasião,/ como um olho único e cego que vê/ do fundo da sepultura da razão,/ 'vaste comme la nuit et comme la clarté'// Um sonho/ de uma sombra de quê?"

No movimento que (a)firma necessariamente a "ocasião", o acontecimento, enfim, o poema, toda uma literatura é convocada, explicitamente, e pulsam por entre esta escrita os seus ecos e os seus mortos, "o escritor// é um ladrão de túmulos. E é um morto/ dormindo um sono alheio, o do livro,/ que a si mesmo se sonha digerindo/ sua carne e seu sangue e dirigindo/ a sua mão e o seu livre arbítrio. /(...) Nem a sua morte lhe pertence, roubou-a/ a outro e outro lha roubará". Toda uma linhagem de espectros é chamada - de Baudelaire a Villon ou Keats e Joyce, ou mesmo os AC\u2044 DC, do sábio Tchouang Tseu ao Talmude, e ainda outros pedaços que se reconhecem incorporados. E é esse devir incessante que assina a curvatura do tempo, povoando de espíritos o (im)provável corpo do mundo por vir. As "inúmeras vozes" de uma voz que menciona o seu próprio modo de acontecer. O que temos "temo-lo como se o perdêssemos/ ficando uma sombra, a nossa sombra./ Estamos longe de casa e essa sombra/ é a única morada a que podemos acolher-nos. (...) Um murmúrio a que alguma razão passada/ prende os sentidos e que perdura/ no meio da vozearia da solidão e das interrogações,/ um olho cego, um animal indecifrável atravessando a/distância e olhando-nos ainda, a nós que os nossos olhos já não podem ver".

O primeiro e o último poema são como que o emblema, a moldura que enquadra esta arte poética. Respectivamente "O livro" e "Emet": "Se encontraste o que procuravas/ perdeste-o e não começou ainda a tua procura;/ (...) tudo o que tens: literatura, /(...) aquilo que podes saber está noutro sítio." Em "Emet", a verdade em hebraico, por Yehuda ben Bezaiel, rabino de Praga, erudito e místico, que teria da massa informe feito uma criatura com figura humana a que deu vida pela concentração do seu espírito insuflado, o "golem", cravando-lhe na boca um versículo bíblico, ou o nome impronunciável de Deus, nesse poema final diz-se: "Ninguém (...)/ sabe quem recebeu tal carga, se tu se eu.// Por isso, eu Yehuda ben Bezaiel, gravei na tua fronte os caracteres/ da morte e da verdade. Protege-os bem;/ e protege-te deles, se puderes.// Porque é de noite e estamos ambos sós,/ leitura e escritura/ criador e criatura,/ na mesma inumerável voz."

A materialidade do mundo desgasta-se, a si mesma se devorou, cega. E não é sem lamento, ou até grito em surdina, que a tonalidade de perda imparável se exprime aqui. Porém, sem sentimentalismo ou lirismo mais ou menos romântico. O mundo, e nós incluídos, perdeu "carne, sangue, nervos", "afastámo-nos de mais", fomos abandonados pelo real, pela desde sempre já impossível literalidade. Aliás, não saberíamos ouvir "a voz literal/ que desocultadamente fala/ sob tanta literatura", não saberíamos estar tão próximo do que sentem os sentidos sem nós. "E no entanto, houvera um tempo/ em que tínhamos sido talvez felizes, / quando não nos dizia respeito a felicidade,// e em que tínhamos estado perto/ de alguma coisa maior que nós/ ou do nosso exacto tamanho." A sensação de se ser depois de um sono ou sonho que alguém sonhou, e que de súbito de si mesmo ausente se acordou, é a de perda de peso, dimensão e existência do mundo que "paira agora/ como uma luz algures do lado de fora".

Manuel António Pina povoa essa inexistência de pequenas histórias e referências factuais, o (ir)real possível, fragmentos de humor e ironia: "cheguei demasiadamente tarde/(...).Resta-me ver televisão,/ votar, passear o cão/ (a cidadania!)"; assim como em "Km 82" ou o delicioso poema "Velhice e morte de Bartholomew, bispo de B" onde se ouve também O'Neil - "Clérigo sem ser crente/ nem descrente (nem céptico)/ apenas um pouco menos que indiferente,/ (...) Cultivou a Banalidade como nenhum outro Autor/ e fez da Irrelevância uma Arte Maior.// 'Bateram à porta, Ilda, vê se é gente morta ou viva).'"

Uma poesia para ser lida meticulosamente, na mira do vasto silêncio que pulsa entre as suas linhas.

OS LIVROS

AUTOR Manuel António Pina

EDITOR Assírio & Alvim

60 págs., ... euros

Com Que Palavras e Sem Que Palavras?

Sábado, 31 de Janeiro de 2004

%Maria da Conceição Caleiro

Desde sempre, na poesia de Manuel António Pina se manifesta uma certa consaguinidade entre pensamento e poesia, na senda, como já foi afirmado, de um Pessoa ortónimo. Assente, como o próprio confessou, sobre uma mundividência ideal, xintoísta. Isenta de sobrecargas metaforizantes ou expressionistas. Pelo contrário, ressalta uma delicadeza muito bela, se bem que dolorida, no que a luz deixa ficar nas brechas do que foi mas reverbera ainda, e sempre. Na memória, "alguma voz anterior fala no que posso escrever", "como aquele antiquíssimo burro, talvez o da minha infância,/ ave imortal não nascida para morrer/ que imovelmente me fita da lembrança".

O seu novo livro "Os Livros" continua, e reitera ainda mais intensamente, a infinita subtracção do mundo ao ser, à presença, à unidade do Mesmo que se dissolve, ficando a pairar noutra coisa.

A figura do duplo, do desdobramento, marca de resto toda a obra, confunde o de dentro e o de fora, o interior e o exterior, fazendo deste o idêntico - esse desprendimento irisado de sombra em sombra, imparável desde o mais arcaico e inabsorvível corpo que a memória traz, mesmo dentro do sonho ou do sono. Ao passar, por exemplo, "o segundo gato": "Em cada gato há outro gato/ (...) Um gato incoincidente/ com o gato iridescente,/ caminhando à sua frente// ou a seu lado,/ espírito alado/ do que é terrestre no gato.// É o segundo gato/ que permanece acordado/ com o gato afundado// em sono abstracto, aos seus pés enrolado,/ espécie de gato do gato//(...) O próprio gato/ não sabe// que anda por ali algo que não cabe/ dentro nem fora de si."

"Será prudente - perguntou ele - confiar/ o Verdadeiro a tanta ausência?" Ele: livro ou o escritor? Estes e outros surgem no enunciado poético como sujeitos. Ou ainda, tantas vezes, é o poema ou o leitor, directamente interpelado, envolvido na configuração de um "nós". Todos se trespassam e a todos, ou a afinal a nenhum, se diz "tu" e o próprio sujeito poético se cinde, exortando, aquém ou além da retórica, outro de si, porque tudo (re)nasce já dividido, incoincidente, e por isso irreparavelmente plural, já não é possível "desimaginar o mundo, descriá-lo" - "Para cá de mim e para lá de mim, antes e depois./ E entre mim eu, isto é, palavras,/ formas indecisas/ procurando um eixo que/ lhes dê peso, um sentido capaz de conter/ a sua inocência/ uma voz (uma palavra) a que se prender/ antes de se despedaçarem/ contra tanto silêncio./ São elas, as tuas palavras, quem diz 'eu'."

A poesia do autor mantém viva a aporia - essa coexistência de contrários que não se anulam, nem aqui se precipitam num niilismo, nem se ultrapassam na dialéctica. Antes afirmam "entre mim" uma voz, ou "tanto silêncio" que se povoará de vozes, uma terceira instância irrenunciável que respira, sem se imobilizar. "O Mestre não respondeu (...) pois,/ ao contrário de Bill, não tinha para dizer nada/ que pudesse ser dito com palavras ou sem palavras"; ou ainda um lugar que os reúne e relança - o do coração? Ou o fosso da palavra coração? Ou o coração entre aspas abrindo por dentro o aberto? Um lugar onde se escuta "algo mais elementar que o espaço e o tempo,/ (...) antes do pensamento,/ uma sílaba só de uma palavra não dita,// sem sentido e sem finalidade, apenas uma ocasião,/ como um olho único e cego que vê/ do fundo da sepultura da razão,/ 'vaste comme la nuit et comme la clarté'// Um sonho/ de uma sombra de quê?"

No movimento que (a)firma necessariamente a "ocasião", o acontecimento, enfim, o poema, toda uma literatura é convocada, explicitamente, e pulsam por entre esta escrita os seus ecos e os seus mortos, "o escritor// é um ladrão de túmulos. E é um morto/ dormindo um sono alheio, o do livro,/ que a si mesmo se sonha digerindo/ sua carne e seu sangue e dirigindo/ a sua mão e o seu livre arbítrio. /(...) Nem a sua morte lhe pertence, roubou-a/ a outro e outro lha roubará". Toda uma linhagem de espectros é chamada - de Baudelaire a Villon ou Keats e Joyce, ou mesmo os AC\u2044 DC, do sábio Tchouang Tseu ao Talmude, e ainda outros pedaços que se reconhecem incorporados. E é esse devir incessante que assina a curvatura do tempo, povoando de espíritos o (im)provável corpo do mundo por vir. As "inúmeras vozes" de uma voz que menciona o seu próprio modo de acontecer. O que temos "temo-lo como se o perdêssemos/ ficando uma sombra, a nossa sombra./ Estamos longe de casa e essa sombra/ é a única morada a que podemos acolher-nos. (...) Um murmúrio a que alguma razão passada/ prende os sentidos e que perdura/ no meio da vozearia da solidão e das interrogações,/ um olho cego, um animal indecifrável atravessando a/distância e olhando-nos ainda, a nós que os nossos olhos já não podem ver".

O primeiro e o último poema são como que o emblema, a moldura que enquadra esta arte poética. Respectivamente "O livro" e "Emet": "Se encontraste o que procuravas/ perdeste-o e não começou ainda a tua procura;/ (...) tudo o que tens: literatura, /(...) aquilo que podes saber está noutro sítio." Em "Emet", a verdade em hebraico, por Yehuda ben Bezaiel, rabino de Praga, erudito e místico, que teria da massa informe feito uma criatura com figura humana a que deu vida pela concentração do seu espírito insuflado, o "golem", cravando-lhe na boca um versículo bíblico, ou o nome impronunciável de Deus, nesse poema final diz-se: "Ninguém (...)/ sabe quem recebeu tal carga, se tu se eu.// Por isso, eu Yehuda ben Bezaiel, gravei na tua fronte os caracteres/ da morte e da verdade. Protege-os bem;/ e protege-te deles, se puderes.// Porque é de noite e estamos ambos sós,/ leitura e escritura/ criador e criatura,/ na mesma inumerável voz."

A materialidade do mundo desgasta-se, a si mesma se devorou, cega. E não é sem lamento, ou até grito em surdina, que a tonalidade de perda imparável se exprime aqui. Porém, sem sentimentalismo ou lirismo mais ou menos romântico. O mundo, e nós incluídos, perdeu "carne, sangue, nervos", "afastámo-nos de mais", fomos abandonados pelo real, pela desde sempre já impossível literalidade. Aliás, não saberíamos ouvir "a voz literal/ que desocultadamente fala/ sob tanta literatura", não saberíamos estar tão próximo do que sentem os sentidos sem nós. "E no entanto, houvera um tempo/ em que tínhamos sido talvez felizes, / quando não nos dizia respeito a felicidade,// e em que tínhamos estado perto/ de alguma coisa maior que nós/ ou do nosso exacto tamanho." A sensação de se ser depois de um sono ou sonho que alguém sonhou, e que de súbito de si mesmo ausente se acordou, é a de perda de peso, dimensão e existência do mundo que "paira agora/ como uma luz algures do lado de fora".

Manuel António Pina povoa essa inexistência de pequenas histórias e referências factuais, o (ir)real possível, fragmentos de humor e ironia: "cheguei demasiadamente tarde/(...).Resta-me ver televisão,/ votar, passear o cão/ (a cidadania!)"; assim como em "Km 82" ou o delicioso poema "Velhice e morte de Bartholomew, bispo de B" onde se ouve também O'Neil - "Clérigo sem ser crente/ nem descrente (nem céptico)/ apenas um pouco menos que indiferente,/ (...) Cultivou a Banalidade como nenhum outro Autor/ e fez da Irrelevância uma Arte Maior.// 'Bateram à porta, Ilda, vê se é gente morta ou viva).'"

Uma poesia para ser lida meticulosamente, na mira do vasto silêncio que pulsa entre as suas linhas.

OS LIVROS

AUTOR Manuel António Pina

EDITOR Assírio & Alvim

60 págs., ... euros

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