Público TV

04-05-2004
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Precisamos de falar; precisamos de ouvir falar; precisamos de ver falar - e a televisão obedece aos nossos desejos. Há agora muitas dezenas de horas semanais de programas onde se fala de tudo e de nada, para todos e para ninguém. Entrevistas ou trocas longas de palavras e gestos. Conversas íntimas. Conversas intelectuais. Científicas. Especializadas. Conversas populares. Há até psicanálise, como a que Daniel Sampaio faz, à semana, dos seus anfitriões Ana Drago e Luís Osório e do convidado de ocasião - conversas só para psiquiatras, portanto. Há conversa privada e conversa aos gritos. Conversa fiada e conversa para chorar. Conversa política e conversa desportiva. Conversa para crianças, jovens, médios e velhos. Há tudo isso - e, depois, há as entrevistas de Ana Sousa Dias em Por Outro Lado (RTP2, segundas). Por Outro Lado é o melhor programa de entrevistas da televisão portuguesa em muitos anos. Nunca falhou, desde a primeira semana. Não precisou de alterações nem de ajustes. O título está certo: Por Outro Lado quer dizer que se procura a diferença como quem não quer a coisa. A cenografia ajuda: o mobiliário espartano diz-nos que é a conversa e não o folclore que faz o programa; um jogo de vidros permite acompanhar sempre num espelho difuso o actor secundário (a entrevistadora ou o convidado) quando o outro fala. Este jogo, muitas vezes tentado e poucas vezes conseguido, permite que não se perca nada do lado visual da conversa: vê-se quem fala e também o reflexo de quem ouve. O plano aberto do estúdio permite que o espelho central mostre imagens relacionadas mas não intrometidas. O programa passa de uma introdução para um pequeno registo de imagens que mostram o convidado em contexto. Também aqui não há novidade, apenas acerto na utilização. Outros programas do género recorreram ou recorrem a apontamentos de reportagem, mas neste, apesar de pouco felizes ou significantes, servem a função de prefácio da entrevista. Os convidados são eles mesmos "por outro lado": depois do óbvio António Mega Ferreira (Ana Sousa Dias trabalhou com ele na Expo 98), o programa encontrou pessoas interessantes e com alguma coisa para dizer. Nem sempre é fácil. O pacote de entrevistas de TV peca entre nós por uma aflitiva redundância: temos a sensação de que "eles são sempre os mesmos", as mesmas pessoas visitam as diversas capelinhas - se Fulano o entrevistou eu também tenho de o entrevistar. Como se desconfiava, a falta de imaginação é maior que a falta de gente interessante a quem convidar para uma conversa. O segredo, claro, não está apenas nos entrevistados, mas em saber entrevistar. A variedade e novidade dos entrevistados é uma das qualidades do programa, mas o principal valor de Por Outro Lado é a condução das entrevistas por Ana Sousa Dias. A jornalista não impõe perguntas, como fazem outros julgando que isso é prova de bom jornalismo. As perguntas são a condição natural do jornalista. O jornalismo é fazer perguntas. Mas o objectivo não é a eficácia da pergunta isolada, é obter a melhor resposta. Uma pergunta só acaba no fim da resposta. Ana Sousa Dias faz da pergunta elemento de uma conversa, como se houvesse reticências antes do ponto de interrogação. O convidado preenche esse espaço, daí resultando uma entrevista que o é realmente parecendo de facto uma conversa. A entrevistadora utiliza a sedução intelectual e feminina como processos legítimos e sérios de condução da conversa. O neurocirurgião e autor João Lobo Antunes reconheceu essa qualidade no programa: recordando um passado longínquo de apresentador de programa para jovens da RTP no final da década de 50, disse que essa experiência lhe permitiu depois conseguir levar o exame (a prova oral escolar) para onde queria - "é como você faz nas entrevistas". Essa conversa com João Lobo Antunes serve de paradigma do que deve e não deve ser uma entrevista televisiva deste tipo. Os programas anteriores permitiam-lhe confiar no desenrolar da conversa, mas isso só não explica a forma como Sousa Dias conduziu com inegável eficácia o entrevistado para os temas que trazia em mente. Fê-lo sem cortes bruscos, interrupções, sem recordar que o tempo é escasso, sem impor uma única pergunta, fazendo-as simplesmente. Daí resultaram não apenas respostas fixas a perguntas, mas antes uma revelação do entrevistado, uma revelação psicológica, uma personalidade que se revela por entre os factos ditos e as opiniões expressas. O único perigo que Sousa Dias enfrenta é o que já ocorreu tantas vez com outros entrevistadores: o de se entusiasmar demasiado com o seu papel ao ponto de querer, inconscientemente, entrevistar-se a si mesma, quer dizer, querer falar de si e usar-se na pergunta como exemplo motivador desta ou daquela resposta. Os nossos putativos entrevistadores ou os candidatos a tal responsabilidade deveriam estudar esta entrevista, mas mesmo assim é difícil que entendam a diferença porque lhes falta aquilo a que João Lobo Antunes chama "o currículo escondido", quer dizer, "aquilo que não se ensina, que não se ensina por palavras, que não se ensina dum modo formal, que não está nos programas (escolares), que não são três horas disto e duas horas daquilo". O currículo escondido, acrescentou, "é o que eu vivo numa sala de operações, é quando a gente se está a vestir, são as coisas que a gente aprende a pouco e pouco, é aquilo que está nas paredes das instituições por onde nós passamos, é uma tradição, isso é que é o currículo escondido, que eu acho em todos os aspectos mais importante que o currículo formal, muito difícil de avaliar e que se aprende até ao fim da vida." Este currículo escondido, forma elegante de nomear a educação que se traz de casa, da família e do ambiente social, e sobre a qual a educação formal apenas assenta, falta a muitos entrevistadores, mas não é atributo específico da nossa elite mediática, ou da nossa classe médica. É um atributo das nossas elites ponto final, consideradas na sua expressão mais limitada ou na acepção mais ampla que a sociologia permite. A um país de canudos e sem currículos escondidos corresponde uma televisão sem currículos escondidos. As excepções apenas aliviam a sede no deserto.

Precisamos de falar; precisamos de ouvir falar; precisamos de ver falar - e a televisão obedece aos nossos desejos. Há agora muitas dezenas de horas semanais de programas onde se fala de tudo e de nada, para todos e para ninguém. Entrevistas ou trocas longas de palavras e gestos. Conversas íntimas. Conversas intelectuais. Científicas. Especializadas. Conversas populares. Há até psicanálise, como a que Daniel Sampaio faz, à semana, dos seus anfitriões Ana Drago e Luís Osório e do convidado de ocasião - conversas só para psiquiatras, portanto. Há conversa privada e conversa aos gritos. Conversa fiada e conversa para chorar. Conversa política e conversa desportiva. Conversa para crianças, jovens, médios e velhos. Há tudo isso - e, depois, há as entrevistas de Ana Sousa Dias em Por Outro Lado (RTP2, segundas). Por Outro Lado é o melhor programa de entrevistas da televisão portuguesa em muitos anos. Nunca falhou, desde a primeira semana. Não precisou de alterações nem de ajustes. O título está certo: Por Outro Lado quer dizer que se procura a diferença como quem não quer a coisa. A cenografia ajuda: o mobiliário espartano diz-nos que é a conversa e não o folclore que faz o programa; um jogo de vidros permite acompanhar sempre num espelho difuso o actor secundário (a entrevistadora ou o convidado) quando o outro fala. Este jogo, muitas vezes tentado e poucas vezes conseguido, permite que não se perca nada do lado visual da conversa: vê-se quem fala e também o reflexo de quem ouve. O plano aberto do estúdio permite que o espelho central mostre imagens relacionadas mas não intrometidas. O programa passa de uma introdução para um pequeno registo de imagens que mostram o convidado em contexto. Também aqui não há novidade, apenas acerto na utilização. Outros programas do género recorreram ou recorrem a apontamentos de reportagem, mas neste, apesar de pouco felizes ou significantes, servem a função de prefácio da entrevista. Os convidados são eles mesmos "por outro lado": depois do óbvio António Mega Ferreira (Ana Sousa Dias trabalhou com ele na Expo 98), o programa encontrou pessoas interessantes e com alguma coisa para dizer. Nem sempre é fácil. O pacote de entrevistas de TV peca entre nós por uma aflitiva redundância: temos a sensação de que "eles são sempre os mesmos", as mesmas pessoas visitam as diversas capelinhas - se Fulano o entrevistou eu também tenho de o entrevistar. Como se desconfiava, a falta de imaginação é maior que a falta de gente interessante a quem convidar para uma conversa. O segredo, claro, não está apenas nos entrevistados, mas em saber entrevistar. A variedade e novidade dos entrevistados é uma das qualidades do programa, mas o principal valor de Por Outro Lado é a condução das entrevistas por Ana Sousa Dias. A jornalista não impõe perguntas, como fazem outros julgando que isso é prova de bom jornalismo. As perguntas são a condição natural do jornalista. O jornalismo é fazer perguntas. Mas o objectivo não é a eficácia da pergunta isolada, é obter a melhor resposta. Uma pergunta só acaba no fim da resposta. Ana Sousa Dias faz da pergunta elemento de uma conversa, como se houvesse reticências antes do ponto de interrogação. O convidado preenche esse espaço, daí resultando uma entrevista que o é realmente parecendo de facto uma conversa. A entrevistadora utiliza a sedução intelectual e feminina como processos legítimos e sérios de condução da conversa. O neurocirurgião e autor João Lobo Antunes reconheceu essa qualidade no programa: recordando um passado longínquo de apresentador de programa para jovens da RTP no final da década de 50, disse que essa experiência lhe permitiu depois conseguir levar o exame (a prova oral escolar) para onde queria - "é como você faz nas entrevistas". Essa conversa com João Lobo Antunes serve de paradigma do que deve e não deve ser uma entrevista televisiva deste tipo. Os programas anteriores permitiam-lhe confiar no desenrolar da conversa, mas isso só não explica a forma como Sousa Dias conduziu com inegável eficácia o entrevistado para os temas que trazia em mente. Fê-lo sem cortes bruscos, interrupções, sem recordar que o tempo é escasso, sem impor uma única pergunta, fazendo-as simplesmente. Daí resultaram não apenas respostas fixas a perguntas, mas antes uma revelação do entrevistado, uma revelação psicológica, uma personalidade que se revela por entre os factos ditos e as opiniões expressas. O único perigo que Sousa Dias enfrenta é o que já ocorreu tantas vez com outros entrevistadores: o de se entusiasmar demasiado com o seu papel ao ponto de querer, inconscientemente, entrevistar-se a si mesma, quer dizer, querer falar de si e usar-se na pergunta como exemplo motivador desta ou daquela resposta. Os nossos putativos entrevistadores ou os candidatos a tal responsabilidade deveriam estudar esta entrevista, mas mesmo assim é difícil que entendam a diferença porque lhes falta aquilo a que João Lobo Antunes chama "o currículo escondido", quer dizer, "aquilo que não se ensina, que não se ensina por palavras, que não se ensina dum modo formal, que não está nos programas (escolares), que não são três horas disto e duas horas daquilo". O currículo escondido, acrescentou, "é o que eu vivo numa sala de operações, é quando a gente se está a vestir, são as coisas que a gente aprende a pouco e pouco, é aquilo que está nas paredes das instituições por onde nós passamos, é uma tradição, isso é que é o currículo escondido, que eu acho em todos os aspectos mais importante que o currículo formal, muito difícil de avaliar e que se aprende até ao fim da vida." Este currículo escondido, forma elegante de nomear a educação que se traz de casa, da família e do ambiente social, e sobre a qual a educação formal apenas assenta, falta a muitos entrevistadores, mas não é atributo específico da nossa elite mediática, ou da nossa classe médica. É um atributo das nossas elites ponto final, consideradas na sua expressão mais limitada ou na acepção mais ampla que a sociologia permite. A um país de canudos e sem currículos escondidos corresponde uma televisão sem currículos escondidos. As excepções apenas aliviam a sede no deserto.

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