O renascer da esperança

26-10-2004
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O Renascer da Esperança

Por JOSÉ REBELO

Sexta-feira, 24 de Setembro de 2004

omo jornalista do Le Monde, e correspondente em Portugal, passei dezasseis anos a escrever sobre política. Seguiram-se catorze anos a falar sobre comunicação política aos meus alunos do ISCTE. Escrever. Falar. Olhar. Interpretar. Exterioridade, pelo menos formal. Até que, enfim, decidi comprometer-me. Na noite de 25 de Abril de 2002 aderi ao PS. Subscreveram a proposta dois grandes amigos: Ferro Rodrigues e Marques Júnior.

Vivia-se, então, um certo clima de euforia provocado pela campanha para as legislativas. Reinava a esperança de um regresso, em breve, da esquerda ao poder. E, sobretudo, reinava a expectativa de uma nova forma de fazer política. De uma nova forma de estar em política. Mas, rapidamente, o entusiasmo esmoreceu. O meu e o de muitos. Razões internas e externas ao PS haviam conduzido o partido socialista à mesma apatia, à mesma luta de interesses, à mesma lógica de grupos.

A dinâmica social tem destas imprevisibilidades: em Março de 1968, um conceituadíssimo jornalista do Le Monde, Pierre Viansson-Ponté, publicava um artigo intitulado "La France s'ennuie"; dois meses depois, a mesma França era literalmente abalada por manifestações de estudantes e de trabalhadores. Guardadas as devidas proporções, também em Portugal se deu, subitamente, um acordar para a política. Se foi essa a intenção de Jorge Sampaio, ao aceitar Santana Lopes como primeiro-ministro, aqui vai o meu pedido de desculpas por tudo o que de mal dele então pensei.

Demitiu-se Ferro Rodrigues. Apresentaram-se três candidatos à sucessão e eis que, em pleno verão, o debate irrompeu como há muito não acontecia. Confrontaram-se diferentes concepções sobre o papel do Estado, sobre o modo de ser oposição, sobre o exercício da cidadania, sobre o funcionamento das estruturas partidárias. Trocaram-se argumentos sobre questões tão concretas como o aborto, o código do trabalho, a guerra do Iraque.

Ressurgiu o entusiasmo.

De apoiante de Ferro Rodrigues passei, naturalmente, a apoiante de Manuel Alegre. E decidi participar activamente na sua campanha. Acompanhei Manuel Alegre a Beja, a Faro, ao Porto, a Coimbra. Conversei horas a fio com alguns dos principais membros da sua equipa, como João Cravinho, Manuel Maria Carrilho, Alberto Martins, Helena Roseta (não consigo libertar-me destes hábitos jornalísticos). E da experiência ficou-me uma enorme surpresa e uma não menor interrogação.

Surpresa perante o vigor e a coragem com que tantos militantes testemunham irregularidades, para não dizer perversões que, segundo parece, caracterizam a vida interna do PS (a minha recente adesão obriga-me a modalizar a frase): uma rua que tem mais militantes inscritos do que eleitores; trinta militantes que indicam a mesma residência; uma secção cuja sede está instalada na casa particular do respectivo coordenador; ameaças de despedimento ou, pelo contrário, promessas de emprego em câmaras ou empresas municipais controladas pelo partido. Asseguram-me, os mais conhecedores, que nunca estas coisas tinham sido, assim, objecto de uma denúncia pública e colectiva.

Mas se a surpresa decorre do meu estatuto de socialista, a interrogação inscreve-se na minha condição de sociólogo. Estaremos a assistir à emergência de um novo paradigma de inserção/intervenção partidária?

O rescaldo da revolução significou manifestações, greves, eleições, governos... Tudo factores que contribuíam para um constante renovar da mobilização partidária. E que, salvo algumas excepções, adiavam a resolução ou a formulação de eventuais divergências. Digamos que o "inimigo externo" alimentava coesões internas.

Vem, depois, um segundo período que correspondeu à consolidação das instituições e à plena integração na Europa. À estabilidade política acrescenta-se a amorfia social, efeito imediato de um certo pós-modernismo caseiro. Prevalece o discurso sobre o fim das ideologias, sobre a obsolescência da dicotomia esquerda/direita (a formação do chamado "bloco central" constitui exemplo flagrante deste período). Nos partidos enraíza-se um tipo de caciquismo democrático. Aqueles que souberam tirar proveito de conjunturas flutuantes impõem-se nas estruturas do poder político, local e regional. Daí partem para a conquista do poder autárquico e para a discreta ocupação de lugares-chave no sistema produtivo. A sua legitimidade repousa, é certo, em eleições. Mas em eleições cada vez mais rotineiras, cada vez menos participadas. Eleições convertidas, assim, em processo de perpetuação de uma rede de influências, de interesses, onde a entrada de novos elementos é cuidadosamente vigiada.

Por vezes, basta um simples acontecimento para pôr em causa equilíbrios que se pensava indestrutíveis. A entrada em liça de Manuel Alegre poderá ter constituído um desses acontecimentos. Ao impedir uma solução de continuidade burocrática, administrativa, Manuel Alegre desencadeou uma onda que o ultrapassa. Encarnou aquele momento Kairos que assinala a mutação qualitativa. Deu rosto ao regresso do combate ideológico. Ao inconformismo. À insurgência. Proclama-se na sua campanha que, independentemente do resultado das eleições de 24/25 de Setembro, Alegre já ganhou. E ganhámos todos nós. E ganhou o país. E ganhou a democracia. Se... Se, como secretário-geral do PS ou como sujeito relevante da política portuguesa (atributo que é, inquestionavelmente, o seu), souber dar rumo a esta tão renovada esperança.

De contrário, seria mais uma oportunidade perdida. Seria, para muitos, o fim da ilusão derradeira. A ampla mediatização que a escolha do futuro líder socialista provocou teria servido, apenas, para ocultar os erros clamorosos de um governo incompetente.

Tenho todas as razões para ser optimista. Prof. de sociologia no ISCTE, apoiante de Manuel Alegre

O Renascer da Esperança

Por JOSÉ REBELO

Sexta-feira, 24 de Setembro de 2004

omo jornalista do Le Monde, e correspondente em Portugal, passei dezasseis anos a escrever sobre política. Seguiram-se catorze anos a falar sobre comunicação política aos meus alunos do ISCTE. Escrever. Falar. Olhar. Interpretar. Exterioridade, pelo menos formal. Até que, enfim, decidi comprometer-me. Na noite de 25 de Abril de 2002 aderi ao PS. Subscreveram a proposta dois grandes amigos: Ferro Rodrigues e Marques Júnior.

Vivia-se, então, um certo clima de euforia provocado pela campanha para as legislativas. Reinava a esperança de um regresso, em breve, da esquerda ao poder. E, sobretudo, reinava a expectativa de uma nova forma de fazer política. De uma nova forma de estar em política. Mas, rapidamente, o entusiasmo esmoreceu. O meu e o de muitos. Razões internas e externas ao PS haviam conduzido o partido socialista à mesma apatia, à mesma luta de interesses, à mesma lógica de grupos.

A dinâmica social tem destas imprevisibilidades: em Março de 1968, um conceituadíssimo jornalista do Le Monde, Pierre Viansson-Ponté, publicava um artigo intitulado "La France s'ennuie"; dois meses depois, a mesma França era literalmente abalada por manifestações de estudantes e de trabalhadores. Guardadas as devidas proporções, também em Portugal se deu, subitamente, um acordar para a política. Se foi essa a intenção de Jorge Sampaio, ao aceitar Santana Lopes como primeiro-ministro, aqui vai o meu pedido de desculpas por tudo o que de mal dele então pensei.

Demitiu-se Ferro Rodrigues. Apresentaram-se três candidatos à sucessão e eis que, em pleno verão, o debate irrompeu como há muito não acontecia. Confrontaram-se diferentes concepções sobre o papel do Estado, sobre o modo de ser oposição, sobre o exercício da cidadania, sobre o funcionamento das estruturas partidárias. Trocaram-se argumentos sobre questões tão concretas como o aborto, o código do trabalho, a guerra do Iraque.

Ressurgiu o entusiasmo.

De apoiante de Ferro Rodrigues passei, naturalmente, a apoiante de Manuel Alegre. E decidi participar activamente na sua campanha. Acompanhei Manuel Alegre a Beja, a Faro, ao Porto, a Coimbra. Conversei horas a fio com alguns dos principais membros da sua equipa, como João Cravinho, Manuel Maria Carrilho, Alberto Martins, Helena Roseta (não consigo libertar-me destes hábitos jornalísticos). E da experiência ficou-me uma enorme surpresa e uma não menor interrogação.

Surpresa perante o vigor e a coragem com que tantos militantes testemunham irregularidades, para não dizer perversões que, segundo parece, caracterizam a vida interna do PS (a minha recente adesão obriga-me a modalizar a frase): uma rua que tem mais militantes inscritos do que eleitores; trinta militantes que indicam a mesma residência; uma secção cuja sede está instalada na casa particular do respectivo coordenador; ameaças de despedimento ou, pelo contrário, promessas de emprego em câmaras ou empresas municipais controladas pelo partido. Asseguram-me, os mais conhecedores, que nunca estas coisas tinham sido, assim, objecto de uma denúncia pública e colectiva.

Mas se a surpresa decorre do meu estatuto de socialista, a interrogação inscreve-se na minha condição de sociólogo. Estaremos a assistir à emergência de um novo paradigma de inserção/intervenção partidária?

O rescaldo da revolução significou manifestações, greves, eleições, governos... Tudo factores que contribuíam para um constante renovar da mobilização partidária. E que, salvo algumas excepções, adiavam a resolução ou a formulação de eventuais divergências. Digamos que o "inimigo externo" alimentava coesões internas.

Vem, depois, um segundo período que correspondeu à consolidação das instituições e à plena integração na Europa. À estabilidade política acrescenta-se a amorfia social, efeito imediato de um certo pós-modernismo caseiro. Prevalece o discurso sobre o fim das ideologias, sobre a obsolescência da dicotomia esquerda/direita (a formação do chamado "bloco central" constitui exemplo flagrante deste período). Nos partidos enraíza-se um tipo de caciquismo democrático. Aqueles que souberam tirar proveito de conjunturas flutuantes impõem-se nas estruturas do poder político, local e regional. Daí partem para a conquista do poder autárquico e para a discreta ocupação de lugares-chave no sistema produtivo. A sua legitimidade repousa, é certo, em eleições. Mas em eleições cada vez mais rotineiras, cada vez menos participadas. Eleições convertidas, assim, em processo de perpetuação de uma rede de influências, de interesses, onde a entrada de novos elementos é cuidadosamente vigiada.

Por vezes, basta um simples acontecimento para pôr em causa equilíbrios que se pensava indestrutíveis. A entrada em liça de Manuel Alegre poderá ter constituído um desses acontecimentos. Ao impedir uma solução de continuidade burocrática, administrativa, Manuel Alegre desencadeou uma onda que o ultrapassa. Encarnou aquele momento Kairos que assinala a mutação qualitativa. Deu rosto ao regresso do combate ideológico. Ao inconformismo. À insurgência. Proclama-se na sua campanha que, independentemente do resultado das eleições de 24/25 de Setembro, Alegre já ganhou. E ganhámos todos nós. E ganhou o país. E ganhou a democracia. Se... Se, como secretário-geral do PS ou como sujeito relevante da política portuguesa (atributo que é, inquestionavelmente, o seu), souber dar rumo a esta tão renovada esperança.

De contrário, seria mais uma oportunidade perdida. Seria, para muitos, o fim da ilusão derradeira. A ampla mediatização que a escolha do futuro líder socialista provocou teria servido, apenas, para ocultar os erros clamorosos de um governo incompetente.

Tenho todas as razões para ser optimista. Prof. de sociologia no ISCTE, apoiante de Manuel Alegre

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