Filhos clandestinos na URSS

16-08-2004
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Filhos Clandestinos na URSS

Domingo, 08 de Agosto de 2004 %Andreia Sanches Disse-lhe: 'Tenho 17 anos e nem sequer sei o meu nome.' Ele agarrou num papel e escreveu o meu nome. Virou aquilo para mim, e eu olhei, olhei... Depois disse-lhe: 'Mas também não sei nada da minha família.' E ele começou: 'A tua mãe tem cinco irmãos, os teus avós vivem na Nazaré...' Sabia praticamente a história da minha família toda, assim, de cor. Explicou que dois dos meus tios viviam em Angola, fez a descrição completa. Depois perguntou-me: 'Já fixaste o teu nome?' Disse-lhe que sim. Deitou fora o papel. E foi com 17 anos que fiquei a saber que me chamava Joaquim Carvalho... do Joaquim lembrava-me." Joaquim Carvalho tem 48 anos, é arquitecto, vive em Lisboa. A cena que recorda passa-se no início de 1974, na Interdom - Escola-Internato Internacional de Ivanovo, a 400 quilómetros de Moscovo. Álvaro Cunhal é o homem que lhe fala da família que aos oito anos deixara em Portugal e da qual já pouco ou nada se lembra, depois de quase dez anos de separação. Não foi a primeira vez que Cunhal visitou as crianças da Interdom. A escola tinha como missão essencial acolher meninos e meninas que não podiam estar com os pais, por estes serem perseguidos nos seus países, lutarem contra regimes fascistas ou estarem envolvidos em lutas de libertação. Entre o início dos anos 60 e 1974, 13 filhos de comunistas portugueses deram o salto e iniciaram uma das maiores aventuras das suas vidas. Tinham cinco, seis, sete, oito anos quando o partido e a família decidiram que era mais seguro rumarem à URSS. Deixaram para trás os pais e uma infância marcada pela clandestinidade. Para alguns, atravessar os portões da Interdom não foi só o início de uma vida nova, onde a imagem da família se foi apagando e a língua materna sendo esquecida. Mudaram-lhes a identidade. "Quando no ano passado fui à festa dos 70 anos da escola, a primeira pergunta que fiz aos meus amigos foi se sabiam como é que eu me chamava. Ninguém sabia. Para eles era o José Silva", o nome que recebeu mal chegou a Ivanovo, conta Joaquim. Não foi o único. Carlos Oliveira: "Sou agora Luís Carlos Lagarto", afinal o seu nome verdadeiro. Tem 47 anos. Manuel da Silva, 49 anos: "Quando cheguei a Ivanovo passei a chamar-me Sérgio Frutuoso." O que se segue são as memórias de alguns dos miúdos que vieram do frio. Quando falam uns dos outros, ainda se baralham nos nomes. É na madrugada de 25 de Julho de 1974 que os filhos dos militantes comunistas que ainda permaneciam na Interdom regressam a Portugal. Os jornais da altura dão conta do discurso de Cunhal, nessa mesma noite, na sede do PCP, depois de centenas de pessoas os terem ido buscar ao Aeroporto de Lisboa: "Aqueles que hoje regressam da União Soviética partiram do nosso país em condições bem difíceis (...) atravessando fronteiras clandestinamente, correndo riscos, cansando-se, passando de mão em mão. Mãos amigas mas desconhecidas, até chegarem ao porto de abrigo." A URSS. Dez anos antes, Joaquim sabia perfeitamente o que era fugir à PIDE, mudar de casa repentinamente e receber instruções do género: "Agora, durante três dias, chamas-te Pedro." A mãe, Maria da Silva Carvalho, já lhe tinha falado uma vez ou outra que era possível que ele fosse estudar para fora. "Naquele dia despediu-se de mim como se nada fosse." Corria o ano de 1964. Joaquim e Ana, a irmã de cinco anos, foram deixados numa casa, talvez no Porto, talvez noutra cidade. "Foi o momento pior, fiquei lá à espera que alguém nos viesse buscar. Às tantas, percebi que não havia retorno. Levaram-nos de carro, dá-me ideia que até à fronteira com Espanha. Deixaram-nos e acho que a mais uma pessoa, um adulto, à beira da estrada. Havia uma curva. Ao fundo, terra lavrada. Era de noite. Andámos a pé. Tive alucinações... aparecia um carro, apareciam pessoas ao longe." E esfumavam-se logo de seguida. "Era aquela coisa de chegar ao outro lado". Alberto Costa, 42 anos, não consegue enumerar todas as moradas que teve até aos seis anos, altura em que também partiu para a Interdom. "Não sabia que os meus pais eram perseguidos pela PIDE, mas sabia que eram perseguidos por homens maus. Apesar de ser muito pequenino sabia também que a mãe usava diferentes nomes e nunca me enganava. Sabia que não podia dar informações, tinha muito autocontrolo." Em 1968 Carlos Domingos, pai de Alberto, falou com ele. "Disse-me que estava a aproximar-se a idade da escola e perguntou-me se eu preferia ir para Paris ou para a União Soviética... Como entretanto já me tinham dito maravilhas da URSS, claro que disse que queria ir para lá. Foi bom ter acreditado que tinha decidido aquilo." Manuel Silva tem perfeita consciência do que moveu o pai, que tinha o mesmo nome. "Aos sete anos tornei-me perigoso, fazia perguntas esquisitas. Achava estranho que ele, que estava clandestino desde que eu nasci, nunca estivesse em casa. Acho que propuseram aos meus pais que tomassem a decisão." Recorda que foi um casal que o levou, de carro, "mais a outra menina mais velha, de nove anos, que se chamava Odete". Para todos os efeitos tornaram-se irmãos: Sérgio e Helena Frutuoso, assim foram rebaptizados. "Até Paris não disse uma palavra. Imagine-se se nos paravam numa fronteira e perguntavam se eu era filho deles e eu respondia que não!" "Para dizer a verdade não sei se enviaria o meu filho", confessa Luís. "Não estou na situação em que a minha mãe estava" - chegou a ser presa. "Mas era preciso muita coragem e uns ideais muito fortes para largar o filho sem saber quando ia voltar a vê-lo." A mãe, Luzia Castelhano, deixou-o ir em 64, tinha ele sete anos. "Foi um ano particularmente difícil, foram presos muitos comunistas. Lembro-me de estar sempre à porta de casa a apontar as matrículas dos carros. Depois ia entregar a lista à minha mãe. Se havia uma matrícula que se repetia muitas vezes é porque havia carros suspeitos... Era uma brincadeira, mas dava para verem se estavam a ser perseguidos ou não." O companheiro de viagem de Alberto foi José Serra, filho do ex-membro do comité central do PCP Jaime Serra, que foi protagonista de três evasões da prisão, entre as quais a fuga colectiva de 1960 do Forte de Peniche. "Não me lembro de ter medo. Estávamos habituados a situações conspirativas." Aos 42 anos, José faz uma pausa como quem procura reviver o que sentiu quando tinha apenas seis, na noite da "grande aventura". "Passámos um campo de milho. Dormimos na casa de uns camponeses espanhóis. Era daquelas casas que têm gado por baixo. Lembro-me de andarmos a pé, de seguirmos de comboio até Paris, de ficarmos na casa de umas pessoas que tinham um ratinho branco. Foi em Julho, ou seja, pouco depois do Maio de 68." A meio caminho, em Praga, ele e Alberto perderam-se, quando decidiram deixar o hotel e "ir dar uma volta". Nesse dia, Alberto sujou os calções com gelado. É de manhã cedo. Lá fora podem estar 20 graus abaixo de zero. Soa a alvorada e as crianças da Interdom levantam-se, saem dos quartos, às dez de cada um. À medida que se cresce, diminui o número de alunos por quarto e as raparigas vão para outro edifício. O dia começa com ginástica no corredor. Alguns, apenas alguns, estão dispensados. Têm de ir a correr pôr a mesa para o pequeno-almoço. Depois de lavar os dentes, os miúdos vestem a farda e seguem em formatura, em duas filas, um menino e uma menina, de mão dada "para aquilo não se desfazer", até ao refeitório. Depois do pequeno-almoço, voltam a sair para a rua e a alinhar-se. Ordeiros, portugueses, iranianos, gregos e de um sem-número de outras nacionalidades caminham até à sala de aula. Não se sentam logo. Ficam "ao lado das carteiras até que chegue a professora" e esta lhes deseje os bons-dias. Depois sentam-se direitos. Muito direitos. Um braço apoiado sobre o outro, cotovelos em cima da mesa. Há na escola um cartaz que explica qual a postura que devem ter para evitar deformações na coluna. Alberto desfia, com um sorriso terno, ao pormenor, as rotinas dos mais pequeninos, "os da 1ª, 2ª classe", nos finais dos anos 60. Como um filme que passa à sua frente. Mas o primeiro embate com a escola estava longe de ser doce. Helena Costa, 38 anos, irmã de Alberto, foi a última portuguesa a chegar à escola. Aconteceu em 1972. "Tinha sido educada na perspectiva de que um dia iria ter com o irmão." Começou por ser um choque a concretização desse desejo. Vindos de todas as partes do mundo, as crianças que chegavam à Interdom tinham de ficar de quarentena quase um mês, fazer exames, levar vacinas. Era preciso garantir que não traziam doenças que pudessem infectar os outros cerca de 300 alunos. "Eu não sabia a língua, nada. Foi muito difícil. Chorava, tinha saudades. Dizia: 'Quero a minha mãe.'" O isolamento é descrito por todos como uma experiência triste. Das poucas que viveram na escola. À pequena Helena de seis anos valiam os outros portugueses mais velhos, que já lá estavam, que ajudavam o irmão a pular a janela da enfermaria para vê-la. "Um dia tive de escondê-lo por debaixo da cama, quando ouvi os passos de uma enfermeira." Quando, em 1963, Manuel e Odete chegam à Interdom, não havia com quem falar português. "Não percebia nada daquilo, todos falavam russo e eu não entendia nada. Fomos os primeiros portugueses a chegar. Depois meteram-nos numa classe e lá aprendemos a língua", diz Manuel. Aos 19 anos, Maria Armanda, também filha de Jaime Serra, é desafiada a levar a cabo uma tarefa para o partido. Tinha entrado na clandestinidade aos 15 e desde então que se preparava para "fazer tudo o que fosse preciso" para ajudar. E o que era preciso era uma professora de Português, na Interdom, porque se pretendia que cada aluno, independentemente do país de origem, pudesse ter aulas de língua materna. Maria Armanda, que nessa altura tinha o nome de Manuela de Castro, aceitou. Cumpria o requisito essencial: gostava de crianças. E cedo descobriu que a sua missão não era apenas ser professora. "Compreendi realmente qual era a minha tarefa quando uma aluna portuguesa que já lá estava, a Cecília, que andava a frequentar as aulas de espanhol, me disse, quando cheguei: 'Ah Manuela, nós sabemos que não somos espanhóis, mas o que somos não sabemos.' Pois era para isso que eu ali estava". A partir dessa altura é também Maria Armanda que fica encarregue de dar nomes falsos aos alunos portugueses que chegam. "Era um bocado complicado... Por vezes já traziam o primeiro nome, era só arranjar um apelido. Mas os nomes é uma coisa tão secundária, nós é que fazemos os nomes, não são os nomes que nos fazem a nós", justifica. Mais tarde, deixou de ser preciso inventar identidades. "Inicialmente achava-se que, se as crianças mantivessem o nome verdadeiro, podiam ser localizadas e isso podia ser usado" contra os pais que cá ficavam. "Depois entendeu-se que não era necessário. Talvez se tenha alterado a percepção do perigo", conta José. José, tal como Alberto, ou Helena, nunca se chamaram de outra maneira, pelo menos em Ivanovo. A professora de Português "mantinha sempre a porta do gabinete aberta" para os seus alunos, ensinava-lhes canções, falava-lhes "da luta que os pais travavam". Mas as aulas não eram suficientes para manter um vocabulário escorreito. Naquela idade, "em três meses aprendemos uma língua e em seis esquecemos a nossa", diz Joaquim. As turmas de Português vão engrossando à medida que vão chegando à escola as crianças da Guiné-Bissau, de Angola, Moçambique. Alberto sorri quando fala das diferenças dos livros escolares feitos na Guiné. "Os nossos tinham os símbolos da Mocidade Portuguesa. Os deles eram: 'O avião português que foi bombardear a aldeia não sei onde...' Mas nós sabíamos que era assim. Tínhamos uma colega com a cara deformada por causa de uma mina portuguesa... e outros com marcas de queimaduras de 'napalm'." As memórias das diferentes gerações misturam-se. Cada um acrescenta um pormenor ao quadro desses dias. Colem-se os bocadinhos das imagens que ficaram. Para entrar na escola, passa-se por um portão grande, que está sempre aberto, e há uma fonte com um Neptuno no meio. Em Setembro, Outubro, começa a cair a neve, depois vem o frio. Custam os primeiros tempos, mas, como tudo, como as saudades, é uma questão de hábito. Só uma vez Alberto deixou que as mãos lhe gelassem, no recreio - "Quando a educadora deu por mim, mandou um aluno mais velho acompanhar-me para descongelar as mãos. Tem de ser com água fria, a quente pode rebentar as veias. Acho que doeu." A escola fica perto de uma floresta que tem um rio. É frequente os miúdos escaparem-se. Quando a neve cobre de branco a paisagem, andam de patins, escorregam no gelo, fazem esqui - Manuel ganhou prémios, nos campeonatos interescolas, ele que "nunca tinha visto neve antes de chegar à URSS". Há um campo de futebol e jardins. E um pomar chinês, com umas maçãs pequeninas, uma das marcas da passagem dos alunos da China nos anos 50, segundo Joaquim. À noite, antes de dormir, a mulher do professor de Grego conta histórias da mitologia ao grupo do Alberto. E Odete Sobral Rito espreita por baixo da cama. "A minha mãe, Olívia Maria, tinha sido presa quando eu tinha cinco anos. Durante dois dias fiquei sozinha em casa, com a minha irmã de 11. Queimámos os papéis, panfletos, fotografias, até que apareceram aqueles homens [da PIDE]. Dois anos depois de chegar à Interdom ainda não adormecia sem antes olhar para debaixo da cama e ver se lá estava alguém." Os dormitórios dos rapazes ficam de um lado, os das raparigas com mais de 11 anos do outro. "As raparigas estavam, como nós chamávamos, num mosteiro, era uma casa separada que era constantemente assaltada", diz Luís. À noite, as miúdas esperam que a educadora de turno se afaste para deixar entrar os rapazes, ligam o rádio e fazem festas na sala de convívio, lembra, divertida, Odete, 51 anos. Luís vive na Interdom o seu primeiro amor . "Eu tinha 15 anos, ela era das Honduras, chamava-se Lorena e era mais velha do que eu." Para além das salas de aula, há laboratórias de física, química e fotografia, oficinas de serralharia e de costura, um auditório onde se dança e canta. Odete adora dançar, tem o sonho de ser bailarina: "Chegámos a actuar no Palácio dos Pioneiros, em Moscovo. Eram danças de todo o mundo, que aprendíamos na escola. Nesses espectáculos nunca éramos identificados como portugueses, por razões de segurança." As instalações são excepcionais. E nas mesas do refeitório passam coisas raras: manteiga achocolatada, leite condensado, fruta diversa. Explica Maria Armanda: "A Interdom tinha um estatuto diferente. Era uma escola para os filhos dos comunistas, dos clandestinos, dos movimentos de libertação, de diversos países. Recebia mais dinheiro. Era tão especial que só em Ivanovo era conhecida, no resto do país era quase uma escola clandestina. Não quer dizer que não fôssemos a comícios, por exemplo. Simplesmente não havia grande publicidade." Ao contrário dos alunos de outras nacionalidades, a maioria dos portugueses não regressava ao país nas férias do Verão e "levava com acampamentos" durante três meses. Outra particularidade dos portugueses: não recebiam encomendas das famílias. As notícias de Portugal escasseavam e chegavam tarde. José ainda guarda um postal de Natal dos pais que lhe chegou às mãos no Verão. E Odete mostra uma carta do pai, José Carlos (também ele fugiu de Peniche, em 1960, com Álvaro Cunhal). Foi escrita em 1969, durante uma outra passagem pela prisão, em mortalhas coladas umas às outras. "Acho que só a recebi em 1971." "'Se eu cair no caminho, tu continuas a jornada, não é verdade minha querida?' Esta frase, que o meu pai escreveu na carta e que eu sublinhei, marcou toda a minha vida, fez-me ganhar ainda mais consciência do que queria. Foi aí que tomei a decisão de voltar para Portugal", recorda Odete. Enviar por correio fosse o que fosse estava obviamente fora de questão. "Escrevia cartas em folhinhas fininhas, com um lápis muito fininho para que os passadores as pudessem fazer chegar com mais facilidade. Cartas de resposta não me lembro de receber", conta Luís. A partir de certa altura, esses escritos pareciam dirigir-se a estranhos. "A minha família eram os colegas da escola. Saudades de Portugal não tinha. Se calhar chorei nos primeiros meses, não sei. Se chorei não me marcou." Quando, ao final de seis anos sem ver a mãe, ela própria foi viver para a URSS, Luís via-a uma vez por ano, nas férias. "E sinceramente às vezes quase preferia estar com os meus amigos..." Por causa da língua. José relata por seu lado como, passado algum tempo longe de tudo, a imaginação e a realidade se confundem: "A determinada altura, ainda em Portugal, os meus pais tiveram necessidade de me dar uma versão sobre eles, que eu pudesse contar às outras pessoas. O meu pai levou-me a uma barragem, mostrou-ma por dentro e eu fiquei com a ideia - provavelmente ele não o disse, mas eu fiquei com a ideia - de que ele trabalhava na barragem." Mais tarde, já na Interdom, José recorda uma iniciativa com toda a turma: "Uma das professoras leu um texto sobre a luta clandestina e leu o episódio de um português que tinha fugido de prisões, falou do percurso dele... ouvimos aquilo muito atentamente, porque se estava a falar de Portugal. No fim, a professora disse que aquele homem era o meu pai. Para mim foi uma surpresa." José tinha noção que o pai estava na clandestinidade, até porque a sentiu na pele, mas ao mesmo tempo essa realidade parecia-lhe já tão plausível quanto a de Jaime Serra ser apenas um simples trabalhador numa barragem. O currículo dos estrangeiros da Interdom era igual ao de todas as crianças das restantes escolas soviéticas: Ciências, Matemática, Literatura e História... a Educação Cívica e Política ficava remetida, em grande medida, para as organizações juvenis. "Com sete ou oito anos fazia-se parte dos Outubristas", começa por contar Joaquim. "Davam-nos uma estrela vermelha de cinco pontas, que tinha desenhada com uma tinta dourada a cabecinha do Lenine. Ser outubrista era algo de especial. Na 3ª classe, na Primavera, quando se assinalava a data em que o Lenine nasceu, ingressávamos num patamar acima, os Pioneiros, que tinham uma estrelinha vermelha, com uma chamazinha de três pontas. E um lenço vermelho." Joaquim não consegue repetir o juramento que fez então: "Eu ao ingressar nas fileiras solenemente prometo... ser muito bom... não me recordo o resto. Mas o que dizíamos era que iríamos defender este, defender aquele, envolvia o Partido Comunista." Os que tinham melhores notas e eram mais bem comportados entravam primeiro. "Entrei nos Pioneiros na primeira leva dos quatro privilegiados", diz Alberto. Era fechado, passava muito tempo na biblioteca e a desenhar, mas sobretudo destacava-se nas notas. Não tem nenhum desenho dessa altura. Os mais velhos entravam no Konsomol, a organização da Juventude Comunista Soviética. Joaquim não quis. "Não sei porquê; era uma questão de afirmação." Anos antes, Odete entrou. Enche-se de orgulho quando fala disso. "Fui das primeiras. Eu e a Iva Cabral, que também andava na escola", conta. "Foi em 1967 ou 68, tinha 14 anos. Avaliava-se a maneira de estar, de dirigir. E eu era muito adulta para a idade." Já depois da Interdom, Odete ingressou na Escola de Estudos Políticos "para se preparar para o regresso" a Portugal, que aconteceu, na clandestinidade, em Agosto de 1973. As crianças portuguesas da Interdom cresceram, casaram, tiveram filhos, uns foram mais activos politicamente, outros menos, uns quantos voltaram a sair do país, regressaram, alguns não. Independentemente dos percursos, Interdom é um capítulo pintado com cores bonitas nas suas vidas. Exaltam o "espírito de união entre os colegas", a "amizade sem igual", sorriem, emocionam-se. Passar por aquela experiência "deve deixar qualquer coisa, mas não foi uma coisa penosa", garante Joaquim Carvalho. "Traumatizante foi o regresso a Portugal. As famílias gostavam muito dos seus filhos, mas depois de anos e anos em que estes cresceram longe, não estavam, em alguns casos, preparadas para os receber", afirma José Serra. "Em 74, quando regressámos, os nossos pais estavam profundamente envolvidos na política. Saíam de manhã cedo, voltavam de madrugada, às vezes ficavam fora noites inteiras", conta Alberto Costa, que aterrou em Lisboa aos 12 anos. O facto de falarem mal português piorou as coisas. Foi difícil a integração. Até que, uma vez mais, o tempo se encarregou de diluir o desconforto. Joaquim Carvalho é arquitecto em Lisboa; Luís Carlos Lagarto é chefe de serviço fabril nos estaleiros navais de Viana do Castelo; Manuel Silva é engenheiro electrotécnico no Porto; Odete Rito é auxiliar de acção educativa no Montijo; José Serra é editor de imprensa especializada, em Lisboa; Maria Armanda, que só regressou definitivamente em 1995, trabalha na empresa do irmão; Helena Costa é professora; e Alberto Costa é caixeiro de mar. São todos "filhos de Ivanovo", mas como eles há milhares, espalhados pelo mundo. José Serra está a fazer um documentário para a Duvideo. Chama-se "Os Filhos de Ivanovo", precisamente. "O que quero transmitir é que é possível que crianças com uma base cultural diferente, que foram educadas segundo as tradições de países completamente diferentes, estejam num espaço comum, vivam juntas, aprendam umas com as outras as suas diferenças, identifiquem-nas, passem a partilhá-las e inclusive as assumam como suas." Foi essa a experiência que viveu na Interdom e que se revelou no movimento de solidariedade gerado quando se temeu que a escola encerrasse (ver outro texto nestas páginas). Pela missão que tinha, a escola funcionou como "um barómetro de como estava o mundo"- com o golpe de Estado do Chile aparecem os chilenos e quando no Iraque o Baas chega ao poder surgem os filhos dos iraquianos perseguidos pelo partido, por exemplo. "Quando havia um terramoto algures, reflectia-se ali." Hoje, diz, justificar-se-ia que a escola continuasse a receber crianças estrangeiras que não podem estar com os pais por razões políticas. A festa dos 70 anos da Interdom, que no ano passado se celebrou em Ivanovo, juntando centenas de ex-alunos de todas as épocas, é o palco principal das filmagens. "Foi o reencontro de velhos amigos, quase irmãos, e de outros que não se conheciam, porque eram de gerações diferentes. O que é incrível é que se esbatem as fronteiras de gerações. Como se fossem uma família só. Temos a pátria que é o país de origem de cada um. A outra é a Interdom." OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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Domingo, 08 de Agosto de 2004 %Andreia Sanches Disse-lhe: 'Tenho 17 anos e nem sequer sei o meu nome.' Ele agarrou num papel e escreveu o meu nome. Virou aquilo para mim, e eu olhei, olhei... Depois disse-lhe: 'Mas também não sei nada da minha família.' E ele começou: 'A tua mãe tem cinco irmãos, os teus avós vivem na Nazaré...' Sabia praticamente a história da minha família toda, assim, de cor. Explicou que dois dos meus tios viviam em Angola, fez a descrição completa. Depois perguntou-me: 'Já fixaste o teu nome?' Disse-lhe que sim. Deitou fora o papel. E foi com 17 anos que fiquei a saber que me chamava Joaquim Carvalho... do Joaquim lembrava-me." Joaquim Carvalho tem 48 anos, é arquitecto, vive em Lisboa. A cena que recorda passa-se no início de 1974, na Interdom - Escola-Internato Internacional de Ivanovo, a 400 quilómetros de Moscovo. Álvaro Cunhal é o homem que lhe fala da família que aos oito anos deixara em Portugal e da qual já pouco ou nada se lembra, depois de quase dez anos de separação. Não foi a primeira vez que Cunhal visitou as crianças da Interdom. A escola tinha como missão essencial acolher meninos e meninas que não podiam estar com os pais, por estes serem perseguidos nos seus países, lutarem contra regimes fascistas ou estarem envolvidos em lutas de libertação. Entre o início dos anos 60 e 1974, 13 filhos de comunistas portugueses deram o salto e iniciaram uma das maiores aventuras das suas vidas. Tinham cinco, seis, sete, oito anos quando o partido e a família decidiram que era mais seguro rumarem à URSS. Deixaram para trás os pais e uma infância marcada pela clandestinidade. Para alguns, atravessar os portões da Interdom não foi só o início de uma vida nova, onde a imagem da família se foi apagando e a língua materna sendo esquecida. Mudaram-lhes a identidade. "Quando no ano passado fui à festa dos 70 anos da escola, a primeira pergunta que fiz aos meus amigos foi se sabiam como é que eu me chamava. Ninguém sabia. Para eles era o José Silva", o nome que recebeu mal chegou a Ivanovo, conta Joaquim. Não foi o único. Carlos Oliveira: "Sou agora Luís Carlos Lagarto", afinal o seu nome verdadeiro. Tem 47 anos. Manuel da Silva, 49 anos: "Quando cheguei a Ivanovo passei a chamar-me Sérgio Frutuoso." O que se segue são as memórias de alguns dos miúdos que vieram do frio. Quando falam uns dos outros, ainda se baralham nos nomes. É na madrugada de 25 de Julho de 1974 que os filhos dos militantes comunistas que ainda permaneciam na Interdom regressam a Portugal. Os jornais da altura dão conta do discurso de Cunhal, nessa mesma noite, na sede do PCP, depois de centenas de pessoas os terem ido buscar ao Aeroporto de Lisboa: "Aqueles que hoje regressam da União Soviética partiram do nosso país em condições bem difíceis (...) atravessando fronteiras clandestinamente, correndo riscos, cansando-se, passando de mão em mão. Mãos amigas mas desconhecidas, até chegarem ao porto de abrigo." A URSS. Dez anos antes, Joaquim sabia perfeitamente o que era fugir à PIDE, mudar de casa repentinamente e receber instruções do género: "Agora, durante três dias, chamas-te Pedro." A mãe, Maria da Silva Carvalho, já lhe tinha falado uma vez ou outra que era possível que ele fosse estudar para fora. "Naquele dia despediu-se de mim como se nada fosse." Corria o ano de 1964. Joaquim e Ana, a irmã de cinco anos, foram deixados numa casa, talvez no Porto, talvez noutra cidade. "Foi o momento pior, fiquei lá à espera que alguém nos viesse buscar. Às tantas, percebi que não havia retorno. Levaram-nos de carro, dá-me ideia que até à fronteira com Espanha. Deixaram-nos e acho que a mais uma pessoa, um adulto, à beira da estrada. Havia uma curva. Ao fundo, terra lavrada. Era de noite. Andámos a pé. Tive alucinações... aparecia um carro, apareciam pessoas ao longe." E esfumavam-se logo de seguida. "Era aquela coisa de chegar ao outro lado". Alberto Costa, 42 anos, não consegue enumerar todas as moradas que teve até aos seis anos, altura em que também partiu para a Interdom. "Não sabia que os meus pais eram perseguidos pela PIDE, mas sabia que eram perseguidos por homens maus. Apesar de ser muito pequenino sabia também que a mãe usava diferentes nomes e nunca me enganava. Sabia que não podia dar informações, tinha muito autocontrolo." Em 1968 Carlos Domingos, pai de Alberto, falou com ele. "Disse-me que estava a aproximar-se a idade da escola e perguntou-me se eu preferia ir para Paris ou para a União Soviética... Como entretanto já me tinham dito maravilhas da URSS, claro que disse que queria ir para lá. Foi bom ter acreditado que tinha decidido aquilo." Manuel Silva tem perfeita consciência do que moveu o pai, que tinha o mesmo nome. "Aos sete anos tornei-me perigoso, fazia perguntas esquisitas. Achava estranho que ele, que estava clandestino desde que eu nasci, nunca estivesse em casa. Acho que propuseram aos meus pais que tomassem a decisão." Recorda que foi um casal que o levou, de carro, "mais a outra menina mais velha, de nove anos, que se chamava Odete". Para todos os efeitos tornaram-se irmãos: Sérgio e Helena Frutuoso, assim foram rebaptizados. "Até Paris não disse uma palavra. Imagine-se se nos paravam numa fronteira e perguntavam se eu era filho deles e eu respondia que não!" "Para dizer a verdade não sei se enviaria o meu filho", confessa Luís. "Não estou na situação em que a minha mãe estava" - chegou a ser presa. "Mas era preciso muita coragem e uns ideais muito fortes para largar o filho sem saber quando ia voltar a vê-lo." A mãe, Luzia Castelhano, deixou-o ir em 64, tinha ele sete anos. "Foi um ano particularmente difícil, foram presos muitos comunistas. Lembro-me de estar sempre à porta de casa a apontar as matrículas dos carros. Depois ia entregar a lista à minha mãe. Se havia uma matrícula que se repetia muitas vezes é porque havia carros suspeitos... Era uma brincadeira, mas dava para verem se estavam a ser perseguidos ou não." O companheiro de viagem de Alberto foi José Serra, filho do ex-membro do comité central do PCP Jaime Serra, que foi protagonista de três evasões da prisão, entre as quais a fuga colectiva de 1960 do Forte de Peniche. "Não me lembro de ter medo. Estávamos habituados a situações conspirativas." Aos 42 anos, José faz uma pausa como quem procura reviver o que sentiu quando tinha apenas seis, na noite da "grande aventura". "Passámos um campo de milho. Dormimos na casa de uns camponeses espanhóis. Era daquelas casas que têm gado por baixo. Lembro-me de andarmos a pé, de seguirmos de comboio até Paris, de ficarmos na casa de umas pessoas que tinham um ratinho branco. Foi em Julho, ou seja, pouco depois do Maio de 68." A meio caminho, em Praga, ele e Alberto perderam-se, quando decidiram deixar o hotel e "ir dar uma volta". Nesse dia, Alberto sujou os calções com gelado. É de manhã cedo. Lá fora podem estar 20 graus abaixo de zero. Soa a alvorada e as crianças da Interdom levantam-se, saem dos quartos, às dez de cada um. À medida que se cresce, diminui o número de alunos por quarto e as raparigas vão para outro edifício. O dia começa com ginástica no corredor. Alguns, apenas alguns, estão dispensados. Têm de ir a correr pôr a mesa para o pequeno-almoço. Depois de lavar os dentes, os miúdos vestem a farda e seguem em formatura, em duas filas, um menino e uma menina, de mão dada "para aquilo não se desfazer", até ao refeitório. Depois do pequeno-almoço, voltam a sair para a rua e a alinhar-se. Ordeiros, portugueses, iranianos, gregos e de um sem-número de outras nacionalidades caminham até à sala de aula. Não se sentam logo. Ficam "ao lado das carteiras até que chegue a professora" e esta lhes deseje os bons-dias. Depois sentam-se direitos. Muito direitos. Um braço apoiado sobre o outro, cotovelos em cima da mesa. Há na escola um cartaz que explica qual a postura que devem ter para evitar deformações na coluna. Alberto desfia, com um sorriso terno, ao pormenor, as rotinas dos mais pequeninos, "os da 1ª, 2ª classe", nos finais dos anos 60. Como um filme que passa à sua frente. Mas o primeiro embate com a escola estava longe de ser doce. Helena Costa, 38 anos, irmã de Alberto, foi a última portuguesa a chegar à escola. Aconteceu em 1972. "Tinha sido educada na perspectiva de que um dia iria ter com o irmão." Começou por ser um choque a concretização desse desejo. Vindos de todas as partes do mundo, as crianças que chegavam à Interdom tinham de ficar de quarentena quase um mês, fazer exames, levar vacinas. Era preciso garantir que não traziam doenças que pudessem infectar os outros cerca de 300 alunos. "Eu não sabia a língua, nada. Foi muito difícil. Chorava, tinha saudades. Dizia: 'Quero a minha mãe.'" O isolamento é descrito por todos como uma experiência triste. Das poucas que viveram na escola. À pequena Helena de seis anos valiam os outros portugueses mais velhos, que já lá estavam, que ajudavam o irmão a pular a janela da enfermaria para vê-la. "Um dia tive de escondê-lo por debaixo da cama, quando ouvi os passos de uma enfermeira." Quando, em 1963, Manuel e Odete chegam à Interdom, não havia com quem falar português. "Não percebia nada daquilo, todos falavam russo e eu não entendia nada. Fomos os primeiros portugueses a chegar. Depois meteram-nos numa classe e lá aprendemos a língua", diz Manuel. Aos 19 anos, Maria Armanda, também filha de Jaime Serra, é desafiada a levar a cabo uma tarefa para o partido. Tinha entrado na clandestinidade aos 15 e desde então que se preparava para "fazer tudo o que fosse preciso" para ajudar. E o que era preciso era uma professora de Português, na Interdom, porque se pretendia que cada aluno, independentemente do país de origem, pudesse ter aulas de língua materna. Maria Armanda, que nessa altura tinha o nome de Manuela de Castro, aceitou. Cumpria o requisito essencial: gostava de crianças. E cedo descobriu que a sua missão não era apenas ser professora. "Compreendi realmente qual era a minha tarefa quando uma aluna portuguesa que já lá estava, a Cecília, que andava a frequentar as aulas de espanhol, me disse, quando cheguei: 'Ah Manuela, nós sabemos que não somos espanhóis, mas o que somos não sabemos.' Pois era para isso que eu ali estava". A partir dessa altura é também Maria Armanda que fica encarregue de dar nomes falsos aos alunos portugueses que chegam. "Era um bocado complicado... Por vezes já traziam o primeiro nome, era só arranjar um apelido. Mas os nomes é uma coisa tão secundária, nós é que fazemos os nomes, não são os nomes que nos fazem a nós", justifica. Mais tarde, deixou de ser preciso inventar identidades. "Inicialmente achava-se que, se as crianças mantivessem o nome verdadeiro, podiam ser localizadas e isso podia ser usado" contra os pais que cá ficavam. "Depois entendeu-se que não era necessário. Talvez se tenha alterado a percepção do perigo", conta José. José, tal como Alberto, ou Helena, nunca se chamaram de outra maneira, pelo menos em Ivanovo. A professora de Português "mantinha sempre a porta do gabinete aberta" para os seus alunos, ensinava-lhes canções, falava-lhes "da luta que os pais travavam". Mas as aulas não eram suficientes para manter um vocabulário escorreito. Naquela idade, "em três meses aprendemos uma língua e em seis esquecemos a nossa", diz Joaquim. As turmas de Português vão engrossando à medida que vão chegando à escola as crianças da Guiné-Bissau, de Angola, Moçambique. Alberto sorri quando fala das diferenças dos livros escolares feitos na Guiné. "Os nossos tinham os símbolos da Mocidade Portuguesa. Os deles eram: 'O avião português que foi bombardear a aldeia não sei onde...' Mas nós sabíamos que era assim. Tínhamos uma colega com a cara deformada por causa de uma mina portuguesa... e outros com marcas de queimaduras de 'napalm'." As memórias das diferentes gerações misturam-se. Cada um acrescenta um pormenor ao quadro desses dias. Colem-se os bocadinhos das imagens que ficaram. Para entrar na escola, passa-se por um portão grande, que está sempre aberto, e há uma fonte com um Neptuno no meio. Em Setembro, Outubro, começa a cair a neve, depois vem o frio. Custam os primeiros tempos, mas, como tudo, como as saudades, é uma questão de hábito. Só uma vez Alberto deixou que as mãos lhe gelassem, no recreio - "Quando a educadora deu por mim, mandou um aluno mais velho acompanhar-me para descongelar as mãos. Tem de ser com água fria, a quente pode rebentar as veias. Acho que doeu." A escola fica perto de uma floresta que tem um rio. É frequente os miúdos escaparem-se. Quando a neve cobre de branco a paisagem, andam de patins, escorregam no gelo, fazem esqui - Manuel ganhou prémios, nos campeonatos interescolas, ele que "nunca tinha visto neve antes de chegar à URSS". Há um campo de futebol e jardins. E um pomar chinês, com umas maçãs pequeninas, uma das marcas da passagem dos alunos da China nos anos 50, segundo Joaquim. À noite, antes de dormir, a mulher do professor de Grego conta histórias da mitologia ao grupo do Alberto. E Odete Sobral Rito espreita por baixo da cama. "A minha mãe, Olívia Maria, tinha sido presa quando eu tinha cinco anos. Durante dois dias fiquei sozinha em casa, com a minha irmã de 11. Queimámos os papéis, panfletos, fotografias, até que apareceram aqueles homens [da PIDE]. Dois anos depois de chegar à Interdom ainda não adormecia sem antes olhar para debaixo da cama e ver se lá estava alguém." Os dormitórios dos rapazes ficam de um lado, os das raparigas com mais de 11 anos do outro. "As raparigas estavam, como nós chamávamos, num mosteiro, era uma casa separada que era constantemente assaltada", diz Luís. À noite, as miúdas esperam que a educadora de turno se afaste para deixar entrar os rapazes, ligam o rádio e fazem festas na sala de convívio, lembra, divertida, Odete, 51 anos. Luís vive na Interdom o seu primeiro amor . "Eu tinha 15 anos, ela era das Honduras, chamava-se Lorena e era mais velha do que eu." Para além das salas de aula, há laboratórias de física, química e fotografia, oficinas de serralharia e de costura, um auditório onde se dança e canta. Odete adora dançar, tem o sonho de ser bailarina: "Chegámos a actuar no Palácio dos Pioneiros, em Moscovo. Eram danças de todo o mundo, que aprendíamos na escola. Nesses espectáculos nunca éramos identificados como portugueses, por razões de segurança." As instalações são excepcionais. E nas mesas do refeitório passam coisas raras: manteiga achocolatada, leite condensado, fruta diversa. Explica Maria Armanda: "A Interdom tinha um estatuto diferente. Era uma escola para os filhos dos comunistas, dos clandestinos, dos movimentos de libertação, de diversos países. Recebia mais dinheiro. Era tão especial que só em Ivanovo era conhecida, no resto do país era quase uma escola clandestina. Não quer dizer que não fôssemos a comícios, por exemplo. Simplesmente não havia grande publicidade." Ao contrário dos alunos de outras nacionalidades, a maioria dos portugueses não regressava ao país nas férias do Verão e "levava com acampamentos" durante três meses. Outra particularidade dos portugueses: não recebiam encomendas das famílias. As notícias de Portugal escasseavam e chegavam tarde. José ainda guarda um postal de Natal dos pais que lhe chegou às mãos no Verão. E Odete mostra uma carta do pai, José Carlos (também ele fugiu de Peniche, em 1960, com Álvaro Cunhal). Foi escrita em 1969, durante uma outra passagem pela prisão, em mortalhas coladas umas às outras. "Acho que só a recebi em 1971." "'Se eu cair no caminho, tu continuas a jornada, não é verdade minha querida?' Esta frase, que o meu pai escreveu na carta e que eu sublinhei, marcou toda a minha vida, fez-me ganhar ainda mais consciência do que queria. Foi aí que tomei a decisão de voltar para Portugal", recorda Odete. Enviar por correio fosse o que fosse estava obviamente fora de questão. "Escrevia cartas em folhinhas fininhas, com um lápis muito fininho para que os passadores as pudessem fazer chegar com mais facilidade. Cartas de resposta não me lembro de receber", conta Luís. A partir de certa altura, esses escritos pareciam dirigir-se a estranhos. "A minha família eram os colegas da escola. Saudades de Portugal não tinha. Se calhar chorei nos primeiros meses, não sei. Se chorei não me marcou." Quando, ao final de seis anos sem ver a mãe, ela própria foi viver para a URSS, Luís via-a uma vez por ano, nas férias. "E sinceramente às vezes quase preferia estar com os meus amigos..." Por causa da língua. José relata por seu lado como, passado algum tempo longe de tudo, a imaginação e a realidade se confundem: "A determinada altura, ainda em Portugal, os meus pais tiveram necessidade de me dar uma versão sobre eles, que eu pudesse contar às outras pessoas. O meu pai levou-me a uma barragem, mostrou-ma por dentro e eu fiquei com a ideia - provavelmente ele não o disse, mas eu fiquei com a ideia - de que ele trabalhava na barragem." Mais tarde, já na Interdom, José recorda uma iniciativa com toda a turma: "Uma das professoras leu um texto sobre a luta clandestina e leu o episódio de um português que tinha fugido de prisões, falou do percurso dele... ouvimos aquilo muito atentamente, porque se estava a falar de Portugal. No fim, a professora disse que aquele homem era o meu pai. Para mim foi uma surpresa." José tinha noção que o pai estava na clandestinidade, até porque a sentiu na pele, mas ao mesmo tempo essa realidade parecia-lhe já tão plausível quanto a de Jaime Serra ser apenas um simples trabalhador numa barragem. O currículo dos estrangeiros da Interdom era igual ao de todas as crianças das restantes escolas soviéticas: Ciências, Matemática, Literatura e História... a Educação Cívica e Política ficava remetida, em grande medida, para as organizações juvenis. "Com sete ou oito anos fazia-se parte dos Outubristas", começa por contar Joaquim. "Davam-nos uma estrela vermelha de cinco pontas, que tinha desenhada com uma tinta dourada a cabecinha do Lenine. Ser outubrista era algo de especial. Na 3ª classe, na Primavera, quando se assinalava a data em que o Lenine nasceu, ingressávamos num patamar acima, os Pioneiros, que tinham uma estrelinha vermelha, com uma chamazinha de três pontas. E um lenço vermelho." Joaquim não consegue repetir o juramento que fez então: "Eu ao ingressar nas fileiras solenemente prometo... ser muito bom... não me recordo o resto. Mas o que dizíamos era que iríamos defender este, defender aquele, envolvia o Partido Comunista." Os que tinham melhores notas e eram mais bem comportados entravam primeiro. "Entrei nos Pioneiros na primeira leva dos quatro privilegiados", diz Alberto. Era fechado, passava muito tempo na biblioteca e a desenhar, mas sobretudo destacava-se nas notas. Não tem nenhum desenho dessa altura. Os mais velhos entravam no Konsomol, a organização da Juventude Comunista Soviética. Joaquim não quis. "Não sei porquê; era uma questão de afirmação." Anos antes, Odete entrou. Enche-se de orgulho quando fala disso. "Fui das primeiras. Eu e a Iva Cabral, que também andava na escola", conta. "Foi em 1967 ou 68, tinha 14 anos. Avaliava-se a maneira de estar, de dirigir. E eu era muito adulta para a idade." Já depois da Interdom, Odete ingressou na Escola de Estudos Políticos "para se preparar para o regresso" a Portugal, que aconteceu, na clandestinidade, em Agosto de 1973. As crianças portuguesas da Interdom cresceram, casaram, tiveram filhos, uns foram mais activos politicamente, outros menos, uns quantos voltaram a sair do país, regressaram, alguns não. Independentemente dos percursos, Interdom é um capítulo pintado com cores bonitas nas suas vidas. Exaltam o "espírito de união entre os colegas", a "amizade sem igual", sorriem, emocionam-se. Passar por aquela experiência "deve deixar qualquer coisa, mas não foi uma coisa penosa", garante Joaquim Carvalho. "Traumatizante foi o regresso a Portugal. As famílias gostavam muito dos seus filhos, mas depois de anos e anos em que estes cresceram longe, não estavam, em alguns casos, preparadas para os receber", afirma José Serra. "Em 74, quando regressámos, os nossos pais estavam profundamente envolvidos na política. Saíam de manhã cedo, voltavam de madrugada, às vezes ficavam fora noites inteiras", conta Alberto Costa, que aterrou em Lisboa aos 12 anos. O facto de falarem mal português piorou as coisas. Foi difícil a integração. Até que, uma vez mais, o tempo se encarregou de diluir o desconforto. Joaquim Carvalho é arquitecto em Lisboa; Luís Carlos Lagarto é chefe de serviço fabril nos estaleiros navais de Viana do Castelo; Manuel Silva é engenheiro electrotécnico no Porto; Odete Rito é auxiliar de acção educativa no Montijo; José Serra é editor de imprensa especializada, em Lisboa; Maria Armanda, que só regressou definitivamente em 1995, trabalha na empresa do irmão; Helena Costa é professora; e Alberto Costa é caixeiro de mar. São todos "filhos de Ivanovo", mas como eles há milhares, espalhados pelo mundo. José Serra está a fazer um documentário para a Duvideo. Chama-se "Os Filhos de Ivanovo", precisamente. "O que quero transmitir é que é possível que crianças com uma base cultural diferente, que foram educadas segundo as tradições de países completamente diferentes, estejam num espaço comum, vivam juntas, aprendam umas com as outras as suas diferenças, identifiquem-nas, passem a partilhá-las e inclusive as assumam como suas." Foi essa a experiência que viveu na Interdom e que se revelou no movimento de solidariedade gerado quando se temeu que a escola encerrasse (ver outro texto nestas páginas). Pela missão que tinha, a escola funcionou como "um barómetro de como estava o mundo"- com o golpe de Estado do Chile aparecem os chilenos e quando no Iraque o Baas chega ao poder surgem os filhos dos iraquianos perseguidos pelo partido, por exemplo. "Quando havia um terramoto algures, reflectia-se ali." Hoje, diz, justificar-se-ia que a escola continuasse a receber crianças estrangeiras que não podem estar com os pais por razões políticas. A festa dos 70 anos da Interdom, que no ano passado se celebrou em Ivanovo, juntando centenas de ex-alunos de todas as épocas, é o palco principal das filmagens. "Foi o reencontro de velhos amigos, quase irmãos, e de outros que não se conheciam, porque eram de gerações diferentes. O que é incrível é que se esbatem as fronteiras de gerações. Como se fossem uma família só. Temos a pátria que é o país de origem de cada um. A outra é a Interdom." OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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