Objectos do quotidiano perdido

04-02-2004
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Objectos do Quotidiano Perdido

Sábado, 27 de Dezembro de 2003

%Luísa Soares de Oliveira

A primeira exposição tem lugar num espaço branco com uma longa história. Foi aqui, há cerca de 50 anos, que abriu a Galeria de Março, dirigida então por José-Augusto França e por Fernando de Azevedo. A galeria foi pioneira na apresentação ao público português de obras que então representavam o que de mais contemporâneo a arte podia oferecer; no meio lisboeta, onde o mercado era fraquíssimo e a recepção possível apenas reservada a alguns, a Galeria de Março teve vida relativamente curta e acabou por encerrar, escolhendo os seus directores os destinos que hoje se conhecem bem. O espaço, por baixo dum arco que liga o Príncipe Real à encosta da colina de S. Pedro de Alcântara, ali ficou, agora impecavelmente reformulado pela mão do arquitecto Alberto Caetano.

A galeria abriu há pouco tempo com uma exposição de fotografias de Fernando Lemos e de cerâmicas de Rosa Ramalho. Inicialmente, pretendia dar oportunidade aos artistas actuais que trabalhassem com a cerâmica de expor as obras realizadas neste suporte; mas opções éticas e profissionais do seu director levaram a que esta vertente acabe por não ter continuidade depois da actual exposição de Cabrita Reis. Doravante, a galeria 56Artes dedicar-se-á à exposição de cerâmica tradicional, um nicho que até à data não era contemplado nos espaços comerciais de exposição em Portugal.

A terra

Cabrita Reis, nesta exposição, surpreende-nos. Não pelo conceito que lhe está subjacente, que é sempre o de convocar universos vários, através das suas formas e materiais, para o domínio da arte, mas pela capacidade de integração destas formas na sua obra, tanto pelo processo de trabalho como nos resultados obtidos. Com a colaboração de um oleiro da região de Mafra (que também assina as peças), Cabrita seleccionou uma quantidade diversa de utensílios de barro comuns: jarros, pratos e alguidares de diferentes formatos que, depois de moldados e antes da cozedura, foram agrupados em conjuntos. A cozedura e, depois, a pintura a verde escorrido, acabaram por uni-los em formas complexas que, visualmente, se dão a ver como objectos, desprovidos agora do uso que tradicionalmente era o seu, mas que, paradoxalmente, acabam por destacar a simplicidade e funcionalidade do "design" que lhes deu origem.

Não estamos agora perante composições de peças diversas, que poderiam recordar os arranjos complexos das naturezas mortas do século XVII, por exemplo, mas perante objectos de grande formato que se impõem, na monocromia dominante, como um todo perante o olhar. Para a definição e interacção com estes objectos, é o espectador que é convocado: na memória que traz consigo da cultura popular e não-erudita, em primeiro lugar, na relação que pode ou não estabelecer com estas esculturas, em segundo, e finalmente nas associações eruditas que pode criar entre cada obra e a tradição da monocromia, ou do "specific object" minimalista, por exemplo. A "assemblage", que é a técnica escolhida pelo artista para a realização destas obras, acaba por criar um duplo conceptual no trabalho da sua fruição; e o jogo que o espectador é convidado a realizar na identificação de cada escultura desdobra-se infinitamente no leque de referências que eventualmente convocará.

A casa

"Trabalhar com barro é a coisa mais simples que há. Amassa-se com água, enfia-se no forno e já está. Foi um trabalho que me deu um prazer imenso, e ao qual faço tenções de dar continuidade." A simplicidade (aparente) do processo de trabalho da olaria, destacada pelo artista, reflecte-se também na escolha das técnicas que estão na origem das obras expostas no segundo espaço, situado no segundo andar de um prédio que abriga uma loja de decoração e design.

O espaço, que em tempos serviu de habitação e que foi destinado a esta exposição antes de encerrar definitivamente, conserva todas as características do seu antigo uso: divisões espaçosas, tectos trabalhados, janelas antigas que ligam o interior à paisagem domesticada do jardim novecentista fronteiro. Cabrita Reis distribuiu as obras em exposição pelos espaços disponíveis, respeitando os antigos destinos que a arquitectura revela. E essas obras, apesar da multiplicidade de materiais, disciplinas e técnicas que exibem, não esbarram nas memórias e conceitos que o espectador traz consigo; é, sim, na integração com a memória da casa que elas adquirem toda a sua eficácia.

Assim, há pinturas, desenhos, aguarelas, um auto-retrato; há esculturas de parede que jogam com a multiplicidade de espelhos e conexões para reflectir o espaço e desligar virtualmente as ligações entre salas; há tecidos que se dobram, luzes que destacam uma textura ou que se cobrem de pintura; há redes frágeis feitas de madeira de construção, painéis de ferramentas apresentados como pinturas, pinturas que se sobrepõem a páginas de catálogos (o catálogo das peças de Cabrita feitas para a Bienal de Veneza, que está aliás aqui disponível ao público), pinturas que cobrem tubos de néon - ou seja, pinturas que cobrem a fragilidade da luz, que é talvez a escultura mais efémera de todas. A obra de Cabrita, para além da diversidade formal, assenta no trabalho sobre a estrutura da identidade. A casa, com todas as narrativas possíveis que se podem construir dentro dela, é um dos lugares onde essa identidade se realiza.

Assim, "O quarto da criada", por exemplo, apresenta a tal peça de tecido adamascado e iluminado por uma lâmpada de que falávamos há pouco. Mas "o quarto da criada" é uma expressão que convoca uma série de imagens literárias, cinematográficas e, finalmente, pessoais, que fazem parte do mundo privado de cada um. No lugar onde se insere, perto de uma outra peça feita de espelhos, cria um diálogo plástico e imaginário que passa também por todas as imagens presentes na exposição, como por um conjunto de pequeníssimas pinturas de casas, sem qualidade artística, que o artista recobriu parcialmente de tinta cor-de-rosa. A intervenção sobre um objecto preexistente, mesmo que ele esteja longinquamente ligado ao domínio artístico, é a mesma que preside ao trabalho com o oleiro de Mafra, e que deu origem às esculturas de cerâmica.

Finalmente, a casa é também o duplo da própria casa do artista - e esta afirmação adquire toda a sua pertinência no caso de Pedro Cabrita Reis, de quem se sabe que encara a vida quotidiana como parte integral da obra que vai construindo. No preciso momento em que uma das obras expostas na Bienal de Veneza, "Longer Journeys", é instalada em Coimbra, no Pátio da Inquisição, Cabrita anuncia para o próximo ano uma multiplicidade impressionante de exposições internacionais, que incluem a mostra de abertura de uma galeria em Nova Iorque, em Março, grandes individuais com novas obras, em Dijon (FRAC Bourgogne, em Maio), em Londres (Camden Art Center, em Novembro) e Oslo, uma escultura para o Middelheim Sculpture Park, em Antuérpia, além de outras em galerias um pouco por todo o mundo. Em Lisboa, não expunha há muito tempo; esta é por isso a oportunidade para ver a obra de um artista já plenamente internacionalizado, a última, talvez, antes de muitos anos.

Objectos do Quotidiano Perdido

Sábado, 27 de Dezembro de 2003

%Luísa Soares de Oliveira

A primeira exposição tem lugar num espaço branco com uma longa história. Foi aqui, há cerca de 50 anos, que abriu a Galeria de Março, dirigida então por José-Augusto França e por Fernando de Azevedo. A galeria foi pioneira na apresentação ao público português de obras que então representavam o que de mais contemporâneo a arte podia oferecer; no meio lisboeta, onde o mercado era fraquíssimo e a recepção possível apenas reservada a alguns, a Galeria de Março teve vida relativamente curta e acabou por encerrar, escolhendo os seus directores os destinos que hoje se conhecem bem. O espaço, por baixo dum arco que liga o Príncipe Real à encosta da colina de S. Pedro de Alcântara, ali ficou, agora impecavelmente reformulado pela mão do arquitecto Alberto Caetano.

A galeria abriu há pouco tempo com uma exposição de fotografias de Fernando Lemos e de cerâmicas de Rosa Ramalho. Inicialmente, pretendia dar oportunidade aos artistas actuais que trabalhassem com a cerâmica de expor as obras realizadas neste suporte; mas opções éticas e profissionais do seu director levaram a que esta vertente acabe por não ter continuidade depois da actual exposição de Cabrita Reis. Doravante, a galeria 56Artes dedicar-se-á à exposição de cerâmica tradicional, um nicho que até à data não era contemplado nos espaços comerciais de exposição em Portugal.

A terra

Cabrita Reis, nesta exposição, surpreende-nos. Não pelo conceito que lhe está subjacente, que é sempre o de convocar universos vários, através das suas formas e materiais, para o domínio da arte, mas pela capacidade de integração destas formas na sua obra, tanto pelo processo de trabalho como nos resultados obtidos. Com a colaboração de um oleiro da região de Mafra (que também assina as peças), Cabrita seleccionou uma quantidade diversa de utensílios de barro comuns: jarros, pratos e alguidares de diferentes formatos que, depois de moldados e antes da cozedura, foram agrupados em conjuntos. A cozedura e, depois, a pintura a verde escorrido, acabaram por uni-los em formas complexas que, visualmente, se dão a ver como objectos, desprovidos agora do uso que tradicionalmente era o seu, mas que, paradoxalmente, acabam por destacar a simplicidade e funcionalidade do "design" que lhes deu origem.

Não estamos agora perante composições de peças diversas, que poderiam recordar os arranjos complexos das naturezas mortas do século XVII, por exemplo, mas perante objectos de grande formato que se impõem, na monocromia dominante, como um todo perante o olhar. Para a definição e interacção com estes objectos, é o espectador que é convocado: na memória que traz consigo da cultura popular e não-erudita, em primeiro lugar, na relação que pode ou não estabelecer com estas esculturas, em segundo, e finalmente nas associações eruditas que pode criar entre cada obra e a tradição da monocromia, ou do "specific object" minimalista, por exemplo. A "assemblage", que é a técnica escolhida pelo artista para a realização destas obras, acaba por criar um duplo conceptual no trabalho da sua fruição; e o jogo que o espectador é convidado a realizar na identificação de cada escultura desdobra-se infinitamente no leque de referências que eventualmente convocará.

A casa

"Trabalhar com barro é a coisa mais simples que há. Amassa-se com água, enfia-se no forno e já está. Foi um trabalho que me deu um prazer imenso, e ao qual faço tenções de dar continuidade." A simplicidade (aparente) do processo de trabalho da olaria, destacada pelo artista, reflecte-se também na escolha das técnicas que estão na origem das obras expostas no segundo espaço, situado no segundo andar de um prédio que abriga uma loja de decoração e design.

O espaço, que em tempos serviu de habitação e que foi destinado a esta exposição antes de encerrar definitivamente, conserva todas as características do seu antigo uso: divisões espaçosas, tectos trabalhados, janelas antigas que ligam o interior à paisagem domesticada do jardim novecentista fronteiro. Cabrita Reis distribuiu as obras em exposição pelos espaços disponíveis, respeitando os antigos destinos que a arquitectura revela. E essas obras, apesar da multiplicidade de materiais, disciplinas e técnicas que exibem, não esbarram nas memórias e conceitos que o espectador traz consigo; é, sim, na integração com a memória da casa que elas adquirem toda a sua eficácia.

Assim, há pinturas, desenhos, aguarelas, um auto-retrato; há esculturas de parede que jogam com a multiplicidade de espelhos e conexões para reflectir o espaço e desligar virtualmente as ligações entre salas; há tecidos que se dobram, luzes que destacam uma textura ou que se cobrem de pintura; há redes frágeis feitas de madeira de construção, painéis de ferramentas apresentados como pinturas, pinturas que se sobrepõem a páginas de catálogos (o catálogo das peças de Cabrita feitas para a Bienal de Veneza, que está aliás aqui disponível ao público), pinturas que cobrem tubos de néon - ou seja, pinturas que cobrem a fragilidade da luz, que é talvez a escultura mais efémera de todas. A obra de Cabrita, para além da diversidade formal, assenta no trabalho sobre a estrutura da identidade. A casa, com todas as narrativas possíveis que se podem construir dentro dela, é um dos lugares onde essa identidade se realiza.

Assim, "O quarto da criada", por exemplo, apresenta a tal peça de tecido adamascado e iluminado por uma lâmpada de que falávamos há pouco. Mas "o quarto da criada" é uma expressão que convoca uma série de imagens literárias, cinematográficas e, finalmente, pessoais, que fazem parte do mundo privado de cada um. No lugar onde se insere, perto de uma outra peça feita de espelhos, cria um diálogo plástico e imaginário que passa também por todas as imagens presentes na exposição, como por um conjunto de pequeníssimas pinturas de casas, sem qualidade artística, que o artista recobriu parcialmente de tinta cor-de-rosa. A intervenção sobre um objecto preexistente, mesmo que ele esteja longinquamente ligado ao domínio artístico, é a mesma que preside ao trabalho com o oleiro de Mafra, e que deu origem às esculturas de cerâmica.

Finalmente, a casa é também o duplo da própria casa do artista - e esta afirmação adquire toda a sua pertinência no caso de Pedro Cabrita Reis, de quem se sabe que encara a vida quotidiana como parte integral da obra que vai construindo. No preciso momento em que uma das obras expostas na Bienal de Veneza, "Longer Journeys", é instalada em Coimbra, no Pátio da Inquisição, Cabrita anuncia para o próximo ano uma multiplicidade impressionante de exposições internacionais, que incluem a mostra de abertura de uma galeria em Nova Iorque, em Março, grandes individuais com novas obras, em Dijon (FRAC Bourgogne, em Maio), em Londres (Camden Art Center, em Novembro) e Oslo, uma escultura para o Middelheim Sculpture Park, em Antuérpia, além de outras em galerias um pouco por todo o mundo. Em Lisboa, não expunha há muito tempo; esta é por isso a oportunidade para ver a obra de um artista já plenamente internacionalizado, a última, talvez, antes de muitos anos.

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