A Coluna do Provedor do Leitor

21-12-2002
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Primeira Página em Foco

Por JOAQUIM FIDALGO

Domingo, 25 de Junho de 2000 Os títulos, sobretudo os de primeira página e de manchete (em regra muito curtos, afirmativos e fortes - sem que, por isso, fiquem necessariamente sensacionalistas), nunca dizem tudo. Por vezes até dizem bem pouco da complexidade da matéria a que se referem. São, assim, uma clara zona de risco, como já aqui se comentou, e não por acaso: são os títulos de primeira página que mais chamam a atenção de leitores e não leitores, são eles que mais dúvidas suscitam e reclamações originam, são eles que em alguma medida "jogam" a imagem pública do jornal. Não dizendo tudo, é bom que essa meia dúzia de palavras que serve de porta de entrada à leitura do texto diga o essencial. E, obviamente, que o que diz esteja suportado no escrito subsequente. Se possível, que não diga de mais nem de menos - sendo certo que quase sempre dirá algo menos. Daí a utilidade dos antetítulos, menos visíveis mas importantes para contextar a informação, situar os factos no espaço e no tempo, identificar pessoas ou situações, enfim, para suprir algumas das insuficiências informativas causadas pelo jeito sempre tão sintético dos títulos propriamente ditos. E depois, claro, temos o texto. Julgar uma notícia só pelo título pode, entretanto, induzir em erro. Aquilo que não parece nada evidente, ou até parece asneira, por vezes é esclarecido quando se lê o texto que lhe deu origem. Veja-se o exemplo apresentado pelo leitor Luis Melo: quando leu, na primeira página do PÚBLICO, a manchete "Portugal ocultou Outão à UE" (a propósito do complicado processo da co-incineração), entendeu que se estava "a distorcer a informação". E diz, na sua queixa ao provedor: "Bastava um mínimo de pesquisa séria para os jornalistas do PÚBLICO compreenderem que a informação dada por Portugal à UE há um ano (ou mais) não mencionava Outão porque o local escolhido na altura era Maceira". Ora, se formos ler o texto da notícia, é exactamente isso que se lá diz. E não se diz só isso, diz-se mais. Citando: "De facto, quando as autoridades portuguesas respondem à Comissão [Europeia], Outão podia não ser uma hipótese, porque havia dois outros locais apontados, mas tinha sido durante dois anos e voltou a sê-lo depois". Ou seja: como resulta claro do texto (e era, aliás, apontado logo no antetítulo da primeira página), a questão está em o Governo ter dito para Bruxelas que a hipótese Outão "nunca" tinha sido considerada. Este "nunca" é que mente, pois, como explicam as jornalistas Ana Fernandes e Eunice Lourenço, responsáveis pela notícia, Outão foi hipótese para a co-incineração até ao anúncio da opção por Maceira e Souselas, e voltou a sê-lo mais recentemente. Se o Governo tivesse apenas dito que Outão "não" era hipótese, teria falado verdade; dizendo que "nunca" fora hipótese, ocultou à UE uma etapa do processo. Exactamente o que dizia o título da manchete, que assim aparece justificado. Mas nem sempre os textos esclarecem eventuais dúvidas suscitadas pelos títulos. Pelo contrário, às vezes até as adensam. Veja-se a manchete da última quinta-feira, 22/6, onde é citada uma frase alegadamente proferida pelo primeiro-ministro, António Guterres, numa entrevista ao PÚBLICO: "Antes de mim não existia política cultural em Portugal". A frase é forte, não se duvida da sua exactidão - pois aparece entre aspas, ou seja, colocada na boca de Guterres -, e apetece ir logo à entrevista ler o resto, ver em que contexto isto foi dito. Chega-se ao texto e lê-se assim, em discurso directo do primeiro-ministro: "... um aumento [de verbas] mais espectacular, revelador, aliás, de que não existia política cultural em Portugal". A frase não é exactamente a mesma: falta o "antes de mim". Foi esta diferença que causou "perplexidade" a Alberto Arons de Carvalho e o levou, na qualidade de leitor do PÚBLICO, a interpelar o provedor. Em sua opinião, o facto de se ter acrescentado o "antes de mim" à frase citada na manchete "não é menosprezável nem inocente". "Conhecendo António Guterres há quase trinta anos, sei que o seu estilo está nas antípodas do egocentrismo que transparece da frase construída para título do jornal", comenta Arons de Carvalho, acrescentando que não se pode "pôr de lado o rigor (...) quando se trata de transcrever frases alheias". Justificando a escolha que fez para a manchete do PÚBLICO deste dia, explica-se o director-adjunto Adelino Gomes: "A expressão 'antes de mim' não consta realmente da resposta do primeiro-ministro. E por essa razão aceito que se possa considerar abusivo acrescentá-la a uma citação autenticada pelas aspas". E lembra como há maneiras de tornear a dificuldade frequente de transpor para discurso escrito o que foi recolhido em discurso oral : "Uma boa tradição do PÚBLICO ajuda-nos, em casos destes, a conciliar a exigência do rigor com a necessidade de ser conciso e apelativo: bastaria ter retirado as aspas e colocado a mesmíssima frase em itálico". Admitindo a sua responsabilidade no erro, que prefere considerar "lapso técnico", Adelino Gomes discorda, contudo, da interpretação que o leitor Arons de Carvalho dá à opção tomada. Em sua opinião, "todas as respostas da breve entrevista não fazem outra coisa que não dizer o mesmo que está na manchete por outras palavras". Ainda que reconheça que "o primeiro-ministro fala quase sempre no plural", o director-adjunto do PÚBLICO contrapõe: "Mas [Guterres] não deixa de apontar com clareza quem está no comando da política que tão tonitruantemente elogia: ele próprio". Não custa dar razão a Adelino Gomes no plano das interpretações mas também se impõe dar razão a Arons de Carvalho no plano dos factos puros e simples. Aliás, o problema terá surgido precisamente daqui: a manchete do PÚBLICO deslocou uma ideia do terreno das interpretações (perfeitamente legítimas, porque fundamentadas no tom geral da entrevista) para o terreno dos factos objectivos (onde o rigor de transcrição não permite grande margem de manobra). E, como acima ficou reconhecido, este até era um passo desnecessário, pois havia outras maneiras de tornear o problema. Quando atribui taxativamente a Guterres uma expressão que ele de facto não proferiu, o jornal perde em alguma medida a razão que tinha ao interpretar as declarações do primeiro-ministro como interpretou. Vai mais longe do que devia. Questão miúda? Pormenor de estilo? Talvez não. Em tudo, mas sobretudo em política, o estilo (genuíno ou fabricado) conta: pode ser muito significativo o "como" se dizem as coisas, pois pode indiciar um certo carácter, uma postura, um tipo de relacionamento, que tem peso na opinião pública. Para além de outros aspectos, todos concordaremos que a substituição de Cavaco Silva por António Guterres no poder, em 1995, também passou por questões de estilo - no modo de governação, no modo de apresentação das coisas, no modo de relação com as pessoas. Dizer "antes de mim não havia..." é diferente de dizer "antes deste Governo não havia..." ou "antes do PS não havia...". A expressão tem um inegável fundo de auto-glorificação pessoal, que até nos vem da História ("Depois de mim o dilúvio", sentenciava Luis XV, não era?...). Dito isto, claro que podemos interpretar. E podemos até sugerir que Guterres não disse "antes de mim" só por pudor, ou porque não é o seu jeito de falar, ou porque prefere os plurais mais ou menos majestáticos, mas que, em boa verdade, foi isso que pretendeu transmitir. Ele que até é o líder do Governo. A estas interpretações tem, naturalmente, de se sujeitar, pois elas alicerçam-se no tom geral da entrevista publicada. Mas, em contrapartida, cabe-lhe o direito de só ver entre aspas, colocadas na sua boca, as palavras que realmente proferiu. P.S. Prestes a concluir-se este texto, chegaram ao provedor novas críticas sobre uma outra manchete do PÚBLICO desta semana ("Judiciária investiga 'saco azul' do PS", edição de 21/6), apontando-a como sensacionalista e enganosa, face aos textos que a suportavam. Quererão mais leitores dizer o que pensam? Contactos do provedor do leitor:

Cartas: Rua João de Barros, 265 - 4150-414 PORTO

Telefones: 22-6151000; 21-7501075

Fax: 22-6151099; 21-7587138

E-mail: provedor@publico.pt

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Por JOAQUIM FIDALGO

Domingo, 25 de Junho de 2000 Os títulos, sobretudo os de primeira página e de manchete (em regra muito curtos, afirmativos e fortes - sem que, por isso, fiquem necessariamente sensacionalistas), nunca dizem tudo. Por vezes até dizem bem pouco da complexidade da matéria a que se referem. São, assim, uma clara zona de risco, como já aqui se comentou, e não por acaso: são os títulos de primeira página que mais chamam a atenção de leitores e não leitores, são eles que mais dúvidas suscitam e reclamações originam, são eles que em alguma medida "jogam" a imagem pública do jornal. Não dizendo tudo, é bom que essa meia dúzia de palavras que serve de porta de entrada à leitura do texto diga o essencial. E, obviamente, que o que diz esteja suportado no escrito subsequente. Se possível, que não diga de mais nem de menos - sendo certo que quase sempre dirá algo menos. Daí a utilidade dos antetítulos, menos visíveis mas importantes para contextar a informação, situar os factos no espaço e no tempo, identificar pessoas ou situações, enfim, para suprir algumas das insuficiências informativas causadas pelo jeito sempre tão sintético dos títulos propriamente ditos. E depois, claro, temos o texto. Julgar uma notícia só pelo título pode, entretanto, induzir em erro. Aquilo que não parece nada evidente, ou até parece asneira, por vezes é esclarecido quando se lê o texto que lhe deu origem. Veja-se o exemplo apresentado pelo leitor Luis Melo: quando leu, na primeira página do PÚBLICO, a manchete "Portugal ocultou Outão à UE" (a propósito do complicado processo da co-incineração), entendeu que se estava "a distorcer a informação". E diz, na sua queixa ao provedor: "Bastava um mínimo de pesquisa séria para os jornalistas do PÚBLICO compreenderem que a informação dada por Portugal à UE há um ano (ou mais) não mencionava Outão porque o local escolhido na altura era Maceira". Ora, se formos ler o texto da notícia, é exactamente isso que se lá diz. E não se diz só isso, diz-se mais. Citando: "De facto, quando as autoridades portuguesas respondem à Comissão [Europeia], Outão podia não ser uma hipótese, porque havia dois outros locais apontados, mas tinha sido durante dois anos e voltou a sê-lo depois". Ou seja: como resulta claro do texto (e era, aliás, apontado logo no antetítulo da primeira página), a questão está em o Governo ter dito para Bruxelas que a hipótese Outão "nunca" tinha sido considerada. Este "nunca" é que mente, pois, como explicam as jornalistas Ana Fernandes e Eunice Lourenço, responsáveis pela notícia, Outão foi hipótese para a co-incineração até ao anúncio da opção por Maceira e Souselas, e voltou a sê-lo mais recentemente. Se o Governo tivesse apenas dito que Outão "não" era hipótese, teria falado verdade; dizendo que "nunca" fora hipótese, ocultou à UE uma etapa do processo. Exactamente o que dizia o título da manchete, que assim aparece justificado. Mas nem sempre os textos esclarecem eventuais dúvidas suscitadas pelos títulos. Pelo contrário, às vezes até as adensam. Veja-se a manchete da última quinta-feira, 22/6, onde é citada uma frase alegadamente proferida pelo primeiro-ministro, António Guterres, numa entrevista ao PÚBLICO: "Antes de mim não existia política cultural em Portugal". A frase é forte, não se duvida da sua exactidão - pois aparece entre aspas, ou seja, colocada na boca de Guterres -, e apetece ir logo à entrevista ler o resto, ver em que contexto isto foi dito. Chega-se ao texto e lê-se assim, em discurso directo do primeiro-ministro: "... um aumento [de verbas] mais espectacular, revelador, aliás, de que não existia política cultural em Portugal". A frase não é exactamente a mesma: falta o "antes de mim". Foi esta diferença que causou "perplexidade" a Alberto Arons de Carvalho e o levou, na qualidade de leitor do PÚBLICO, a interpelar o provedor. Em sua opinião, o facto de se ter acrescentado o "antes de mim" à frase citada na manchete "não é menosprezável nem inocente". "Conhecendo António Guterres há quase trinta anos, sei que o seu estilo está nas antípodas do egocentrismo que transparece da frase construída para título do jornal", comenta Arons de Carvalho, acrescentando que não se pode "pôr de lado o rigor (...) quando se trata de transcrever frases alheias". Justificando a escolha que fez para a manchete do PÚBLICO deste dia, explica-se o director-adjunto Adelino Gomes: "A expressão 'antes de mim' não consta realmente da resposta do primeiro-ministro. E por essa razão aceito que se possa considerar abusivo acrescentá-la a uma citação autenticada pelas aspas". E lembra como há maneiras de tornear a dificuldade frequente de transpor para discurso escrito o que foi recolhido em discurso oral : "Uma boa tradição do PÚBLICO ajuda-nos, em casos destes, a conciliar a exigência do rigor com a necessidade de ser conciso e apelativo: bastaria ter retirado as aspas e colocado a mesmíssima frase em itálico". Admitindo a sua responsabilidade no erro, que prefere considerar "lapso técnico", Adelino Gomes discorda, contudo, da interpretação que o leitor Arons de Carvalho dá à opção tomada. Em sua opinião, "todas as respostas da breve entrevista não fazem outra coisa que não dizer o mesmo que está na manchete por outras palavras". Ainda que reconheça que "o primeiro-ministro fala quase sempre no plural", o director-adjunto do PÚBLICO contrapõe: "Mas [Guterres] não deixa de apontar com clareza quem está no comando da política que tão tonitruantemente elogia: ele próprio". Não custa dar razão a Adelino Gomes no plano das interpretações mas também se impõe dar razão a Arons de Carvalho no plano dos factos puros e simples. Aliás, o problema terá surgido precisamente daqui: a manchete do PÚBLICO deslocou uma ideia do terreno das interpretações (perfeitamente legítimas, porque fundamentadas no tom geral da entrevista) para o terreno dos factos objectivos (onde o rigor de transcrição não permite grande margem de manobra). E, como acima ficou reconhecido, este até era um passo desnecessário, pois havia outras maneiras de tornear o problema. Quando atribui taxativamente a Guterres uma expressão que ele de facto não proferiu, o jornal perde em alguma medida a razão que tinha ao interpretar as declarações do primeiro-ministro como interpretou. Vai mais longe do que devia. Questão miúda? Pormenor de estilo? Talvez não. Em tudo, mas sobretudo em política, o estilo (genuíno ou fabricado) conta: pode ser muito significativo o "como" se dizem as coisas, pois pode indiciar um certo carácter, uma postura, um tipo de relacionamento, que tem peso na opinião pública. Para além de outros aspectos, todos concordaremos que a substituição de Cavaco Silva por António Guterres no poder, em 1995, também passou por questões de estilo - no modo de governação, no modo de apresentação das coisas, no modo de relação com as pessoas. Dizer "antes de mim não havia..." é diferente de dizer "antes deste Governo não havia..." ou "antes do PS não havia...". A expressão tem um inegável fundo de auto-glorificação pessoal, que até nos vem da História ("Depois de mim o dilúvio", sentenciava Luis XV, não era?...). Dito isto, claro que podemos interpretar. E podemos até sugerir que Guterres não disse "antes de mim" só por pudor, ou porque não é o seu jeito de falar, ou porque prefere os plurais mais ou menos majestáticos, mas que, em boa verdade, foi isso que pretendeu transmitir. Ele que até é o líder do Governo. A estas interpretações tem, naturalmente, de se sujeitar, pois elas alicerçam-se no tom geral da entrevista publicada. Mas, em contrapartida, cabe-lhe o direito de só ver entre aspas, colocadas na sua boca, as palavras que realmente proferiu. P.S. Prestes a concluir-se este texto, chegaram ao provedor novas críticas sobre uma outra manchete do PÚBLICO desta semana ("Judiciária investiga 'saco azul' do PS", edição de 21/6), apontando-a como sensacionalista e enganosa, face aos textos que a suportavam. Quererão mais leitores dizer o que pensam? Contactos do provedor do leitor:

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