A cortar pele, pedra ou aço em quatro continentes

17-06-2004
marcar artigo

A Cortar Pele, Pedra Ou Aço em Quatro Continentes

Por ALEXANDRA LUCAS COELHO

Domingo, 25 de Abril de 2004

Cortam peças dos automóveis da Wolkswagen e da Ford, peles dos sapatos da Ecco ou das malas mais luxuosas do mundo (tanto que o nome tem de ficar em segredo). São as máquinas a laser ou jacto de água da CEI (Companhia de Equipamentos Industriais), feitas à medida de cada cliente, do Canadá à Coreia do Sul, do Brasil à Austrália. Até agora foram instaladas mais de 300, em 15 países, e nenhuma é igual a outra.

Há dez anos, eram uma ideia para cortar pedra, na cabeça de Agostinho Silva, um engenheiro que fez a tropa com Salgueiro Maia, toca violino e está a aprender oboé.

Foi assim que numa tarde perfeitamente límpida chegámos às fábricas da CEI em São João da Madeira ao som de um concerto de Vivaldi para oboé.

Ainda a estacionar o carro, Agostinho da Silva acena a um colega que vem a chegar. É Fernando Pereira, engenheiro, professor do ISEL (Instituto Superior de Engenharia de Lisboa) responsável pelas instalações da CEI em Lisboa, onde é constantemente desenvolvido o software que permite à empresa responder hoje à Jaguar e amanhã à Lufthansa, para citar projectos em estudo, neste momento.

"O Fernando é um génio", dirá Agostinho Silva horas depois, já sem o colega por perto. "Fez o Shoe?Cad, um programa de desenho para corte de calçado inovador a nível mundial. Fez o manual do sistema operativo Linux adoptado por várias universidades. Quando há uma coisa difícil, é ele quem a faz."

Um gabinete de software em Lisboa, duas fábricas em São João da Madeira, 50 pessoas no quadro (mais de um terço das quais licenciadas), cinco milhões de euros de facturação por ano, nem dez anos de vida. São estes os números da CEI, uma empresa que começou onde outra ficou parada.

O trio do Técnico

No princípio dos anos 80, Agostinho Silva estava no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, a estudar engenharia mecânica (mais tarde, química e electrónica). Aí conheceu Álvaro Gonçalves, colega de curso, e Fernando Sousa, que andava em informática, os seus futuros sócios.

Ao Técnico segue-se a tropa, em 85, e depois Agostinho Silva foi trabalhar para uma empresa de máquinas de cortar pedra convencionais, que nunca tinha contratado um engenheiro.

"Nas horas vagas lia umas teses de doutoramento que estavam a ser feitas no estrangeiro sobre corte por jacto de água. Era uma tecnologia que ainda estava numa fase académica."

Como é que um jacto de água pode cortar pedra? Com uma espessura de 0,3 milímetros e uma velocidade duas vezes superior à do som. Se o material for muito duro, é adicionada areia. A energia conseguida com a pressão da água permite desfazer as moléculas da matéria, num corte preciso, a frio.

Agostinho Silva deitou mãos à obra. "Nessa empresa, fiz uma das primeiras máquinas de corte por jacto de água da Europa. Convidei o Álvaro a ir para lá, como meu braço direito. A máquina foi um sucesso, foi convidada para várias feiras e exposições e ainda hoje está a trabalhar."

Tomou a experiência como um princípio. "O potencial era de tal forma elevado que comecei a pensar em desenvolver mais máquinas." Mas o dono da empresa não quis apostar nisso. "Vim-me embora, e o Álvaro veio comigo." Estávamos então em 1994. Como precisavam de alguém que entendesse de software, foram buscar Fernando Sousa, o terceiro colega do Técnico.

"Vendemos tudo o que tínhamos, os nossos carros, e abrimos a sociedade." Com cinco mil contos de capital, nascia a CEI, em Setembro de 1995. "Começámos os três sozinhos a fazer as máquinas."

A vantagem de não ser gigante

Hoje já não são três, mas continuam a ser poucos. Mas ser pequeno é uma vantagem, diz Agostinho Silva. "Ser pequeno é poder ser flexível e adaptar-se. O tempo de vida da tecnologia hoje é muito mais curto, e é disso que nos valemos. Antigamente acreditava-se que havia tempo para esperar que as máquinas saíssem dos próprios países, agora há que ir comprá-las onde elas estiverem."

A CEI apostou no software para poder estar pronta a responder rapidamente. "Cem por cento do software é feito por nós. Não há nenhum fabricante de máquinas de corte a este nível com cem por cento de software próprio. Essa autonomia permite adaptarmo-nos aos clientes com rapidez. Para várias empresas mundiais, as alternativas são ir cortar na China [com mão de obra barata] ou investir em tecnologia. Os nossos clientes são os que investem em tecnologia. E a alta tecnologia hoje está em empresas pequenas."

Será uma lógica de alfaiate do século XXI: poder responder por medida, em vez de produzir em série, com máquinas personalizadas, produzidas a partir de software inovador, caso a caso. É assim que a CEI tem 10 patentes registadas, como a da tecnologia de soldar plástico por laser utilizada nas carrinhas da Ford e Wolkswagen fabricadas na Autoeuropa.

E trabalha em ligação com as universidades: "Estamos em permanência com projectos de investigação em universidades de vários países, parcerias com especialistas."

Da pedra à espingarda

Circulemos pela fábrica. No átrio e nas escadas, peças de mármore de diferentes cores, que foram cortadas a laser e depois perfeitamente encaixadas. O corte é tão perfeito que a superfície parece perfeitamente uniforme, como se as cores estivessem pintadas. As rochas ornamentais (granitos e mármores) representam 30 por cento dos clientes da CEI.

No gabinete de Agostinho Silva, no primeiro andar, um molde de sapato dos dinamarqueses da Ecco. "São um dos maiores fabricantes de calçado do mundo. Desenvolvemos um projecto de corte por laser para eles." Permite um encaixe inovador das diferentes partes do sapato. O sector do calçado significa 35 por cento das vendas da empresa, a nível mundial.

Outro tanto vem da indústria automóvel. Ford e Wolkswagen são clientes, há outros em projecto. "Para a Jaguar estamos a estudar o corte das peles dos assentos." Também estão a pensar soluções para a Peugeot. "Agora queremos entrar na aeronáutica."

E talvez noutras actividades. Agostinho Silva agarra numa peça em aço pousada numa mesa. "É de um fabricante de espingardas desportivas, o maior da América. Fizemos uma gravação a laser e volta a ir para lá." Um teste, para um potencial cliente.

Agostinho Silva vai ao gabinete ao lado perguntar se já há notícias do contentor. "Houve um acidente no Porto de Lisboa envolvendo um contentor com uma máquina nossa, de corte de couro para botas. Estava a ser puxada e caiu. Ia para Ontário [Canadá]. Vamos pôr outra na Terra Nova, em breve." Esta, que não se sabe se ficou danificada, custa 340 mil euros. É uma das maiores e mais caras (os valores variam entre 15 e 400 mil euros, dependendo do tamanho e função das máquinas).

Descemos à zona onde as máquinas são feitas, um grande "open space", com uma dezena de operários a trabalhar. Uma das máquinas que está a ser ultimada é para corte de peles. Lá estão as peles, em bruto (vêm de algumas das tais marcas de luxo), penduradas ao lado de uma enorme plataforma ligada a um computador, com uma câmara por cima.

Agostinho Silva agarra numa pele que há-de vir a dar sapatos ou malas, estende-a em cima da plataforma (é uma mesa de luz), liga a câmara e o computador e a pele começa a ser "lida".

No ecrã vão aparecendo os pequenos defeitos da pele. É com estes dados que o software distingue, com cores, as zonas de corte. Às partes escondidas do sapato ou da mala, podem corresponder as zonas de pele menos nobres. Depois o jacto de água corta a pele, executando o desenho no computador, com o desperdício mínimo possível.

"Isto permite aproveitar mais sete ou oito por cento da pele do que no corte tradicional. Há ganhos de mão-de-obra, produtividade - e criatividade, porque é possível fazer rapidamente desenhos diferentes. Apresentar colecções permanentemente só é possível com recurso a alta tecnologia. O investimento é alto, mas tem um retorno rápido, em menos de um ano."

Aqui são produzidas e testadas as máquinas que depois vão viajar pelo mundo. Mas o contrato não termina com o envio da máquina. "Fazemos manutenção remota, assistência em permanência, da Austrália aos Estados Unidos."

No seu portátil, Agostinho Silva recebe um e-mail de um cliente do Canadá. Tornou-se um amigo. "O meu filho vai passar férias lá, os filhos dele vêm cá." Criou-se uma confiança, explica. "É a honestidade que multiplica as vendas e abre novas portas. Não há como não ser honesto. As pessoas distinguem um profissional de um sacador de negócios."

A Cortar Pele, Pedra Ou Aço em Quatro Continentes

Por ALEXANDRA LUCAS COELHO

Domingo, 25 de Abril de 2004

Cortam peças dos automóveis da Wolkswagen e da Ford, peles dos sapatos da Ecco ou das malas mais luxuosas do mundo (tanto que o nome tem de ficar em segredo). São as máquinas a laser ou jacto de água da CEI (Companhia de Equipamentos Industriais), feitas à medida de cada cliente, do Canadá à Coreia do Sul, do Brasil à Austrália. Até agora foram instaladas mais de 300, em 15 países, e nenhuma é igual a outra.

Há dez anos, eram uma ideia para cortar pedra, na cabeça de Agostinho Silva, um engenheiro que fez a tropa com Salgueiro Maia, toca violino e está a aprender oboé.

Foi assim que numa tarde perfeitamente límpida chegámos às fábricas da CEI em São João da Madeira ao som de um concerto de Vivaldi para oboé.

Ainda a estacionar o carro, Agostinho da Silva acena a um colega que vem a chegar. É Fernando Pereira, engenheiro, professor do ISEL (Instituto Superior de Engenharia de Lisboa) responsável pelas instalações da CEI em Lisboa, onde é constantemente desenvolvido o software que permite à empresa responder hoje à Jaguar e amanhã à Lufthansa, para citar projectos em estudo, neste momento.

"O Fernando é um génio", dirá Agostinho Silva horas depois, já sem o colega por perto. "Fez o Shoe?Cad, um programa de desenho para corte de calçado inovador a nível mundial. Fez o manual do sistema operativo Linux adoptado por várias universidades. Quando há uma coisa difícil, é ele quem a faz."

Um gabinete de software em Lisboa, duas fábricas em São João da Madeira, 50 pessoas no quadro (mais de um terço das quais licenciadas), cinco milhões de euros de facturação por ano, nem dez anos de vida. São estes os números da CEI, uma empresa que começou onde outra ficou parada.

O trio do Técnico

No princípio dos anos 80, Agostinho Silva estava no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, a estudar engenharia mecânica (mais tarde, química e electrónica). Aí conheceu Álvaro Gonçalves, colega de curso, e Fernando Sousa, que andava em informática, os seus futuros sócios.

Ao Técnico segue-se a tropa, em 85, e depois Agostinho Silva foi trabalhar para uma empresa de máquinas de cortar pedra convencionais, que nunca tinha contratado um engenheiro.

"Nas horas vagas lia umas teses de doutoramento que estavam a ser feitas no estrangeiro sobre corte por jacto de água. Era uma tecnologia que ainda estava numa fase académica."

Como é que um jacto de água pode cortar pedra? Com uma espessura de 0,3 milímetros e uma velocidade duas vezes superior à do som. Se o material for muito duro, é adicionada areia. A energia conseguida com a pressão da água permite desfazer as moléculas da matéria, num corte preciso, a frio.

Agostinho Silva deitou mãos à obra. "Nessa empresa, fiz uma das primeiras máquinas de corte por jacto de água da Europa. Convidei o Álvaro a ir para lá, como meu braço direito. A máquina foi um sucesso, foi convidada para várias feiras e exposições e ainda hoje está a trabalhar."

Tomou a experiência como um princípio. "O potencial era de tal forma elevado que comecei a pensar em desenvolver mais máquinas." Mas o dono da empresa não quis apostar nisso. "Vim-me embora, e o Álvaro veio comigo." Estávamos então em 1994. Como precisavam de alguém que entendesse de software, foram buscar Fernando Sousa, o terceiro colega do Técnico.

"Vendemos tudo o que tínhamos, os nossos carros, e abrimos a sociedade." Com cinco mil contos de capital, nascia a CEI, em Setembro de 1995. "Começámos os três sozinhos a fazer as máquinas."

A vantagem de não ser gigante

Hoje já não são três, mas continuam a ser poucos. Mas ser pequeno é uma vantagem, diz Agostinho Silva. "Ser pequeno é poder ser flexível e adaptar-se. O tempo de vida da tecnologia hoje é muito mais curto, e é disso que nos valemos. Antigamente acreditava-se que havia tempo para esperar que as máquinas saíssem dos próprios países, agora há que ir comprá-las onde elas estiverem."

A CEI apostou no software para poder estar pronta a responder rapidamente. "Cem por cento do software é feito por nós. Não há nenhum fabricante de máquinas de corte a este nível com cem por cento de software próprio. Essa autonomia permite adaptarmo-nos aos clientes com rapidez. Para várias empresas mundiais, as alternativas são ir cortar na China [com mão de obra barata] ou investir em tecnologia. Os nossos clientes são os que investem em tecnologia. E a alta tecnologia hoje está em empresas pequenas."

Será uma lógica de alfaiate do século XXI: poder responder por medida, em vez de produzir em série, com máquinas personalizadas, produzidas a partir de software inovador, caso a caso. É assim que a CEI tem 10 patentes registadas, como a da tecnologia de soldar plástico por laser utilizada nas carrinhas da Ford e Wolkswagen fabricadas na Autoeuropa.

E trabalha em ligação com as universidades: "Estamos em permanência com projectos de investigação em universidades de vários países, parcerias com especialistas."

Da pedra à espingarda

Circulemos pela fábrica. No átrio e nas escadas, peças de mármore de diferentes cores, que foram cortadas a laser e depois perfeitamente encaixadas. O corte é tão perfeito que a superfície parece perfeitamente uniforme, como se as cores estivessem pintadas. As rochas ornamentais (granitos e mármores) representam 30 por cento dos clientes da CEI.

No gabinete de Agostinho Silva, no primeiro andar, um molde de sapato dos dinamarqueses da Ecco. "São um dos maiores fabricantes de calçado do mundo. Desenvolvemos um projecto de corte por laser para eles." Permite um encaixe inovador das diferentes partes do sapato. O sector do calçado significa 35 por cento das vendas da empresa, a nível mundial.

Outro tanto vem da indústria automóvel. Ford e Wolkswagen são clientes, há outros em projecto. "Para a Jaguar estamos a estudar o corte das peles dos assentos." Também estão a pensar soluções para a Peugeot. "Agora queremos entrar na aeronáutica."

E talvez noutras actividades. Agostinho Silva agarra numa peça em aço pousada numa mesa. "É de um fabricante de espingardas desportivas, o maior da América. Fizemos uma gravação a laser e volta a ir para lá." Um teste, para um potencial cliente.

Agostinho Silva vai ao gabinete ao lado perguntar se já há notícias do contentor. "Houve um acidente no Porto de Lisboa envolvendo um contentor com uma máquina nossa, de corte de couro para botas. Estava a ser puxada e caiu. Ia para Ontário [Canadá]. Vamos pôr outra na Terra Nova, em breve." Esta, que não se sabe se ficou danificada, custa 340 mil euros. É uma das maiores e mais caras (os valores variam entre 15 e 400 mil euros, dependendo do tamanho e função das máquinas).

Descemos à zona onde as máquinas são feitas, um grande "open space", com uma dezena de operários a trabalhar. Uma das máquinas que está a ser ultimada é para corte de peles. Lá estão as peles, em bruto (vêm de algumas das tais marcas de luxo), penduradas ao lado de uma enorme plataforma ligada a um computador, com uma câmara por cima.

Agostinho Silva agarra numa pele que há-de vir a dar sapatos ou malas, estende-a em cima da plataforma (é uma mesa de luz), liga a câmara e o computador e a pele começa a ser "lida".

No ecrã vão aparecendo os pequenos defeitos da pele. É com estes dados que o software distingue, com cores, as zonas de corte. Às partes escondidas do sapato ou da mala, podem corresponder as zonas de pele menos nobres. Depois o jacto de água corta a pele, executando o desenho no computador, com o desperdício mínimo possível.

"Isto permite aproveitar mais sete ou oito por cento da pele do que no corte tradicional. Há ganhos de mão-de-obra, produtividade - e criatividade, porque é possível fazer rapidamente desenhos diferentes. Apresentar colecções permanentemente só é possível com recurso a alta tecnologia. O investimento é alto, mas tem um retorno rápido, em menos de um ano."

Aqui são produzidas e testadas as máquinas que depois vão viajar pelo mundo. Mas o contrato não termina com o envio da máquina. "Fazemos manutenção remota, assistência em permanência, da Austrália aos Estados Unidos."

No seu portátil, Agostinho Silva recebe um e-mail de um cliente do Canadá. Tornou-se um amigo. "O meu filho vai passar férias lá, os filhos dele vêm cá." Criou-se uma confiança, explica. "É a honestidade que multiplica as vendas e abre novas portas. Não há como não ser honesto. As pessoas distinguem um profissional de um sacador de negócios."

marcar artigo