Antiamericano ou anti-Bush?

17-02-2003
marcar artigo

Antiamericano Ou Anti-Bush?

Sábado, 08 de Fevereiro de 2003

Freitas do Amaral procura, no seu mais recente livro, "Do 11 de Setembro à crise do Iraque", distanciar-se ao mesmo tempo da direita cegamente pró-americana e da esquerda visceralmente antiamericana. Procura demonstrar que ser um admirador dos Estados Unidos não o impede de ser um crítico de Bush. Mas será que é só um crítico de Bush?

%José Manuel Fernandes

O texto mais importante e polémico do último livro de Freitas do Amaral, "Do 11 de Setembro à crise do Iraque", é aquele que é original: o prefácio. Porque é o mais estruturado e aquele onde o autor vai mais longe nas suas teses.

O seu ponto de partida é que pode ser-se amigo da América e crítico da Administração de George W. Bush - o que é uma verdade indiscutível. Até poderíamos acrescentar: os nossos melhores amigos são os que sabem criticar-nos, não os que nos adulam. Freitas do Amaral coloca-se nesse plano e procura uma equilíbrio, difícil, entre um discurso sobre temas de política portuguesa de centro-direita e proclamações em temas internacionais formuladas com uma linguagem próxima da do Bloco de Esquerda. O resultado é frustante.

Na sua opinião, o Governo dos Estados Unidos foi tomado por uma "extrema-direita legal" que não respeita o direito internacional como "o fascismo italiano e o nazismo alemão", que quer "controlar e dominar o Mundo" como Hitler, que despreza em absoluto a ONU, à semelhança de Salazar, que por não aceitarem a jurisdição do Tribunal Internacional de Haia se comportam como "todos os ditadores e extremistas", que trataram os prisioneiros de Guantanamo como animais, à semelhança do que os nazis fizeram com os judeus, que querem impor a existência de um crucifixo nas salas de aula, como fez o generalíssimo Franco, que conduzem uma política social idêntica à de Pinochet e por aí adiante.

No total, Freitas do Amaral alinha dez razões para mostrar como são perigosas e, no limite, neofascistas ou mesmo neonazis, as políticas da Administração Bush. Fá-lo, porém, de uma forma que, ao exagerar a retórica, destrói o seu próprio argumento. E dá sinais de conhecer mal a política americana, o que é estranho para quem viveu nos Estados Unidos durante o ano a que presidiu à Assembleia Geral das Nações Unidas.

Apenas um ou dois exemplos. Freitas do Amaral acusa, por exemplo, a Administração Bush de querer colocar crucifixos nas salas de aula das escolas públicas, o que esta não pode sequer fazer: a tutela da educação não é federal, mas estadual. Há extremistas religiosos que têm, de facto, essa intenção, mas quando George W. Bush teve poder efectivo sobre um sistema educativo - enquanto foi governador do Texas - não foi isso que fez. Pelo contrário: a Administração Bush aprovou um megapacote para a educação que resultou de um compromisso com, entre outros, o senador Edward Kennedy, da ala esquerda do Partido Democrático. Mais: o que a Administração Bush procura promover é a liberdade de escolha na educação, apoiando politicamente os programas de "vouchers" escolares. Será que Freitas do Amaral, como os nossos radicais de esquerda, também acha que esses programas destroem a escola pública?

Outro exemplo. Freitas do Amaral acusa a Administração Bush de, "em pleno século XXI", integrar homens que se consideram herdeiros da tradição "conservadora" que defendia a escravatura. Não saberá Freitas do Amaral que foi um Presidente do Partido Republicano, o partido de Bush, que aboliu a escravatura, chamava-se ele Lincoln? Não saberá que até há pouco mais de 20 anos - sensivelmente até ao momento em que Carter foi eleito Presidente - era sobretudo no Partido Democrático dos estados do Sul que encontrávamos os defensores do segregacionismo racial? Concorda com o seu amigo Mário Soares que esta Administração tem a ver com o Ku-Klux-Klan, quando foi com Bush Jr. que, pela primeira vez na história dos Estados Unidos, os dois principais postos para a política externa - o de secretário de Estado e de conselheiro para a Segurança Nacional - são ocupados por dois negros, respectivamente Colin Powell e Condoleezza Rice?

Poderia continuar argumento a argumento, mas julgo que alguns deles se depreciam a si mesmos. Como é possível, por exemplo, comparar a sorte dos prisioneiros de Guantanamo - mesmo que possamos discutir o seu estatuto - com o destino dos judeus na Alemanha? Como é possível considerar que nos Estados Unidos a liberdade de expressão está limitada quando alguns dos seus principais críticos (Edward Said, Noam Chomsky) ensinam pacatamente nas suas universidades e publicam livre e abundamente? Como é possível dizer que se restringiram as liberdades individuais a níveis intoleráveis, quando continua não existir algo de tão simples como o "bilhete de identidade" individual - aquele que todos, em Portugal, temos de ter sempre na carteira - por que isso seria considerado inconstitucional?

Aquilo que me acaba por surpreender é a virulência e desproporção destes termos. E o sentir que eles não têm apenas a ver com a Administração Bush: têm a ver com o papel que os Estados Unidos desempenham no Mundo. Na verdade, o comentário mais azedo citado por Freitas do Amaral para sustentar a sua tese da oposição dos EUA ao direito internacional ouviu-o da boca não de um "falcão" bushiano, mas sim de uma dedicada servidora de Bill Clinton, Madeleine Albright, a quem ouviu sustentar que apenas existem "arranjos políticos entre grandes potências, feitos e desfeitos conforme as circunstâncias de cada momento". A mesma Madeleine Albright que, a pedido dos europeus, foi crucial para a operação militar no Kosovo para a qual a Administração Clinton - ao contrário do que está a fazer Bush na crise iraquiana, é bom notar - nem tentou convencer o Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Ao contrário dos que pensam que Freitas do Amaral toma estas posições para piscar o olho à esquerda e colocar-se em boa posição para as presidenciais de 2005 - não só não conquista o coração dos eleitores de esquerda como irrita os de direita... -, acredito que, mais do que um simples "antibushismo", há no seu discurso elementos de antiamericanismo. E que estes resultam da experiência frustrada que o próprio Freitas do Amaral viveu como presidente da Assembleia Geral da ONU, altura em que compreendeu como era grande o poder dos EUA. Nessa altura - percebe-se pelos textos que cita - começou a apreciar os autores mais liberais (o equivalente ao nossos "esquerdistas") dos Estados Unidos, muitos deles de Nova Iorque, a cidade em que viveu. E julgo que ao colocar a Administração Bush na extrema-direita se engana redondamente: à excepção do procurador-geral, John Ashcroft, boa parte dos membros desta Administração são mais influenciados pelos intelectuais neoconservadores, muitos deles vindos do Partido Democrático, com peso nas páginas editoriais do "The Wall Street Journal", no semanário "The Weekly Standard" e em várias revistas mensais, e que têm como figura de referência um velho patriarca da ciência política, Irving Kristol, uma das últimas pessoas do mundo a quem se poderia considerar de extrema-direita...

Antiamericano Ou Anti-Bush?

Sábado, 08 de Fevereiro de 2003

Freitas do Amaral procura, no seu mais recente livro, "Do 11 de Setembro à crise do Iraque", distanciar-se ao mesmo tempo da direita cegamente pró-americana e da esquerda visceralmente antiamericana. Procura demonstrar que ser um admirador dos Estados Unidos não o impede de ser um crítico de Bush. Mas será que é só um crítico de Bush?

%José Manuel Fernandes

O texto mais importante e polémico do último livro de Freitas do Amaral, "Do 11 de Setembro à crise do Iraque", é aquele que é original: o prefácio. Porque é o mais estruturado e aquele onde o autor vai mais longe nas suas teses.

O seu ponto de partida é que pode ser-se amigo da América e crítico da Administração de George W. Bush - o que é uma verdade indiscutível. Até poderíamos acrescentar: os nossos melhores amigos são os que sabem criticar-nos, não os que nos adulam. Freitas do Amaral coloca-se nesse plano e procura uma equilíbrio, difícil, entre um discurso sobre temas de política portuguesa de centro-direita e proclamações em temas internacionais formuladas com uma linguagem próxima da do Bloco de Esquerda. O resultado é frustante.

Na sua opinião, o Governo dos Estados Unidos foi tomado por uma "extrema-direita legal" que não respeita o direito internacional como "o fascismo italiano e o nazismo alemão", que quer "controlar e dominar o Mundo" como Hitler, que despreza em absoluto a ONU, à semelhança de Salazar, que por não aceitarem a jurisdição do Tribunal Internacional de Haia se comportam como "todos os ditadores e extremistas", que trataram os prisioneiros de Guantanamo como animais, à semelhança do que os nazis fizeram com os judeus, que querem impor a existência de um crucifixo nas salas de aula, como fez o generalíssimo Franco, que conduzem uma política social idêntica à de Pinochet e por aí adiante.

No total, Freitas do Amaral alinha dez razões para mostrar como são perigosas e, no limite, neofascistas ou mesmo neonazis, as políticas da Administração Bush. Fá-lo, porém, de uma forma que, ao exagerar a retórica, destrói o seu próprio argumento. E dá sinais de conhecer mal a política americana, o que é estranho para quem viveu nos Estados Unidos durante o ano a que presidiu à Assembleia Geral das Nações Unidas.

Apenas um ou dois exemplos. Freitas do Amaral acusa, por exemplo, a Administração Bush de querer colocar crucifixos nas salas de aula das escolas públicas, o que esta não pode sequer fazer: a tutela da educação não é federal, mas estadual. Há extremistas religiosos que têm, de facto, essa intenção, mas quando George W. Bush teve poder efectivo sobre um sistema educativo - enquanto foi governador do Texas - não foi isso que fez. Pelo contrário: a Administração Bush aprovou um megapacote para a educação que resultou de um compromisso com, entre outros, o senador Edward Kennedy, da ala esquerda do Partido Democrático. Mais: o que a Administração Bush procura promover é a liberdade de escolha na educação, apoiando politicamente os programas de "vouchers" escolares. Será que Freitas do Amaral, como os nossos radicais de esquerda, também acha que esses programas destroem a escola pública?

Outro exemplo. Freitas do Amaral acusa a Administração Bush de, "em pleno século XXI", integrar homens que se consideram herdeiros da tradição "conservadora" que defendia a escravatura. Não saberá Freitas do Amaral que foi um Presidente do Partido Republicano, o partido de Bush, que aboliu a escravatura, chamava-se ele Lincoln? Não saberá que até há pouco mais de 20 anos - sensivelmente até ao momento em que Carter foi eleito Presidente - era sobretudo no Partido Democrático dos estados do Sul que encontrávamos os defensores do segregacionismo racial? Concorda com o seu amigo Mário Soares que esta Administração tem a ver com o Ku-Klux-Klan, quando foi com Bush Jr. que, pela primeira vez na história dos Estados Unidos, os dois principais postos para a política externa - o de secretário de Estado e de conselheiro para a Segurança Nacional - são ocupados por dois negros, respectivamente Colin Powell e Condoleezza Rice?

Poderia continuar argumento a argumento, mas julgo que alguns deles se depreciam a si mesmos. Como é possível, por exemplo, comparar a sorte dos prisioneiros de Guantanamo - mesmo que possamos discutir o seu estatuto - com o destino dos judeus na Alemanha? Como é possível considerar que nos Estados Unidos a liberdade de expressão está limitada quando alguns dos seus principais críticos (Edward Said, Noam Chomsky) ensinam pacatamente nas suas universidades e publicam livre e abundamente? Como é possível dizer que se restringiram as liberdades individuais a níveis intoleráveis, quando continua não existir algo de tão simples como o "bilhete de identidade" individual - aquele que todos, em Portugal, temos de ter sempre na carteira - por que isso seria considerado inconstitucional?

Aquilo que me acaba por surpreender é a virulência e desproporção destes termos. E o sentir que eles não têm apenas a ver com a Administração Bush: têm a ver com o papel que os Estados Unidos desempenham no Mundo. Na verdade, o comentário mais azedo citado por Freitas do Amaral para sustentar a sua tese da oposição dos EUA ao direito internacional ouviu-o da boca não de um "falcão" bushiano, mas sim de uma dedicada servidora de Bill Clinton, Madeleine Albright, a quem ouviu sustentar que apenas existem "arranjos políticos entre grandes potências, feitos e desfeitos conforme as circunstâncias de cada momento". A mesma Madeleine Albright que, a pedido dos europeus, foi crucial para a operação militar no Kosovo para a qual a Administração Clinton - ao contrário do que está a fazer Bush na crise iraquiana, é bom notar - nem tentou convencer o Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Ao contrário dos que pensam que Freitas do Amaral toma estas posições para piscar o olho à esquerda e colocar-se em boa posição para as presidenciais de 2005 - não só não conquista o coração dos eleitores de esquerda como irrita os de direita... -, acredito que, mais do que um simples "antibushismo", há no seu discurso elementos de antiamericanismo. E que estes resultam da experiência frustrada que o próprio Freitas do Amaral viveu como presidente da Assembleia Geral da ONU, altura em que compreendeu como era grande o poder dos EUA. Nessa altura - percebe-se pelos textos que cita - começou a apreciar os autores mais liberais (o equivalente ao nossos "esquerdistas") dos Estados Unidos, muitos deles de Nova Iorque, a cidade em que viveu. E julgo que ao colocar a Administração Bush na extrema-direita se engana redondamente: à excepção do procurador-geral, John Ashcroft, boa parte dos membros desta Administração são mais influenciados pelos intelectuais neoconservadores, muitos deles vindos do Partido Democrático, com peso nas páginas editoriais do "The Wall Street Journal", no semanário "The Weekly Standard" e em várias revistas mensais, e que têm como figura de referência um velho patriarca da ciência política, Irving Kristol, uma das últimas pessoas do mundo a quem se poderia considerar de extrema-direita...

marcar artigo