Vemos, ouvimos e lemos

04-08-2002
marcar artigo

VEMOS, OUVIMOS E LEMOS

Enquanto continua esta esquisita guerra global, onde, em cada dia que passa, ganha contornos a velha guerra civil mundial, cumpre chamar a atenção para o drama da democracia portuguesa continuar dominada pela tríade “imagem, sondagem, sacanagem”, para utilizarmos uma conhecida metáfora de Manuel Alegre.

Talvez seja mais adequado dizer-se que somos cada vez mais um país onde mandam os macacos cegos, surdos e mudos. Dos que vêem, ouvem e lêem, mas preferem ignorar, para agora parafrasearmos Sophia. Até preferimos encontrar um qualquer bode expiatório que, de vez em quando, atiramos para as morosidades processuais da chamada administração da justiça, enquanto que outros, do mesmo género caprónico, ou são amnistiados ou se candidatam aos eternos lugares da impunidade, que nenhuma comissão parlamentar de inquérito consegue lobrigar, porque maioria “oblige”.

Com efeito, os ditames do Estado-Espectáculo continuam a esmagar o Estado de Direito, repetindo o ditame salazarento proclamado por ocasião da inauguração da nossa réplica goebbelsiana, segundo o qual, “em política, o que parece, é”. Por outras palavras, todas as agências de marketing e comunicação, que fazem assessoria aos nossos principais protagonistas políticos, persistem no erro de propagar que em política só existe aquilo que se comunica em “slogan”, através do efémero dos breves minutos de um telejornal. Democracia não é teatrocracia de fantoches.

Em segundo lugar, muitos pretensos democratas, que nunca compreenderam a profunda mensagem de Rousseau, continuam a pensar que a “vontade de todos” se identifica com a “vontade geral”, repetindo a falácia dos eternos inimigos da democracia. Como ensinou Kant, e repetiu António Sérgio, a vontade de todos, marcada pela soma dos interesses de cada um, nunca pode ser a fonte da soberania popular. Não há democracia, se esta não assentar no esforço educativo da vontade geral, onde cada um decide como se fosse o próprio soberano, movido pelos interesses do todo e não pelos respectivos interesses particulares. Por outras palavras, a decisão de um indivíduo, no âmbito da cidadania, implica o imperativo categórico, onde a actuação de cada um tem que ser movida por uma espécie de lei universal. Democracia não é sondajocracia.

Em terceiro lugar, importa perceber que o chamado realismo maquiavélico, essa metodologia dos que parecem ter razão no curto prazo do efémero, além de ser sempre uma péssima moral, também é uma péssima política, porque, a médio prazo, todos contam a história do velho, do rapaz e do burro. Democracia não é sacanocracia.

Os nossos responsáveis políticos não podem continuar a lavar as mãos como Pilatos perante o crescendo dos inimigos da democracia e do Estado de Direito. Têm que reaprender que nem tudo o que é lícito é honesto e não podem contribuir para hipocrisia institucionalizada dos que correm às inspecções públicas e às entidades encarregadas da investigação criminal, pedindo certificados de não-pronúncia.

Todos os que viveram na idade da razão nos tempos de crepúsculo do regime derrubado em 25 de Abril de 1974, sabem, de experiência vivida, prevista há vinte e cinco séculos nos escritos de Platão, que os regimes se corrompem, quando apodrecem por dentro. É assim que as monarquias se transformam em tiranias, que as aristocracias se volvem em oligarquias e que as democracias passam a ser dominadas pela demagogia, esse despotismo de todos, que cai sempre nas garras dos cesarismos.

Hoje, como ontem, estamos comprimidos entre a corrupção (em sentido amplo e não do Código Penal) e o indiferentismo (dos que, sem ser por desleixo, entram no partido da abstenção). Mas hoje, tal como ontem, também sabemos que a podridão da decadência pode levar décadas. Porque muitos continuam a ver, a ouvir e a ler, mas preferem ignorar o 5 de Outubro, o 28 de Maio e o 25 de Abril.

Se o governo do Engenheiro Guterres fosse um bando de corruptos, tudo seria fácil. Encontrava-se uma alternativa e a maioria do povo, marcada pelo senso comum, salvaria a pátria. O problema está precisamente na circunstância das principais altezas da nossa governança pertencerem ao grupo dos que se pautam pela honestidade da conduta pessoal e pela firme convicção nos princípios que professam. Se o reconheço, sem qualquer sombra de hipocrisia, sinto o drama de não valer a pena mudar as moscas, porque, mantendo-se as teias infraestruturais em que se move a actividade política, nada se alterará quanto ao grosso dos dejectos que antraxizam o ambiente.

Se fosse movido pelas ideologias do Bloco de Esquerda, dos comunistas ou da direita saudosamente extremista, poderia continuar a embriagar-me de abstracções. Se fizesse parte de uma igreja, capelinha, ordem mística ou facção, sempre teria a ilusão colectivista da superioridade moral da gente do meu grupo, acabando nos vícios da ditadura do futuro ministério da virtude. Infelizmente, subscrevo a maioria dos valores cívicos dos que são ministros e deputados e não me apetece convidá-los à demissão, para virem talibans, formigas brancas, pides, sargentos da inquisição ou fiéis saneadores dos tempos do prec.

Confesso, portanto, a minha desorientação perante as presentes circunstâncias decadentistas, onde as manobras da oposição não passam de bailados orientados por um conjunto de personalidades secundárias do cavaquismo, entoando a loa do tempo voltar atrás. Não por culpa do Doutor Cavaco, mas porque os sinais de mudança prometidos por Guterres perderam autenticidade.

Sim! A vontade geral da democracia foi substituída pela soma das vontades interesseiras de cada um, habilmente manipuladas pelos permanecentes corporativismos de uma oligarquia sedenta de vingança, onde continuam a manobrar as teias de várias redes de gente sedenta de cheques.

Ora, quando a política é usurpada pelo doméstico e o espaço público se rebaixa aos níveis da casota, é natural que o Estado seja dominado pelo mercado da compra e venda do poder e que os profissionais da pulhítica se tornem cada vez mais profissionais da dita e cada vez menos políticos. Desta forma, regressam os fantasmas do absolutismo, bem presentes quando aquele que faz a lei, decide não cumprir aquilo que a lei determina, fazendo ainda mais leis para que nenhuma se cumpra, por causa da elefantíase.

Eu que apenas conheço alguns indícios resultantes do velho método da observação, sou capaz de identificar dezenas de deputados, de adjuntos ministeriais, de construtores civis, de autarcas, de dirigentes futebolísticos e de jornalistas políticos que continuam a pulular nesse ambiente. Confirma-se, assim, que em Portugal o importante não são os lugares governamentais, assessorais ou consultadoriais, mas o posto de vencimento que se consegue depois de se terem exercido certas funções públicas.

As teias da micropolítico explicam a frustração da macropolítica, onde continuamos a não querer ver, ouvir e ler. Porque quando os indivíduos perdem o sentido da autonomia, de viverem conforme as próprias regras que proclamam, a degradação propaga-se e todos apodrecemos em demagogia, clientelismo e pequenos cesarismos.

MAL COMUM DA SEMANA

Vemos, ouvimos e lemos

Para confirmar este decadentismo, basta atentarmos nos meandros da crise que afecta o chamado ensino superior privado, onde a opinião pública apenas conhece aquilo que foi publicado pelo caso da Moderna, não imaginando o que seria o mesmo tipo de cuidadosa investigação aplicado a outros estabelecimentos públicos e privados. O que seria de nós, se o Ministério permitisse certas “fugas de informação” sobre algumas inspecções que hão-de morrer na gaveta? O que aconteceria se os portugueses pudessem ter um organigrama das acumulações praticadas por políticos profissionais, no activo, ou na aposentadoria gerontocrática, no âmbito da docência, direcção, financiamento e avaliação do ensino superior privado? Publiquem, em letras garrafais, as recentes contratações de certas entidades ou as futuras nomeações para órgãos de controlo, principescamente remuneradas!

BEM COMUM DA SEMANA

Mas podemos ignorar

O que seria de Portugal se pudéssemos, muito cientificamente, listar de forma exaustiva a passagem de empregos públicos a privados, e vice-versa? É evidente que o Ministério Público, se tratasse de obter esta lista, nada de relevante encontraria no tocante à ilicitude, dado que a maior parte dos desonestos não infringe a lei e, quando o faz, nunca deixa rabos de palha. O que seria de Portugal se fosse possível publicar um catálogo da relação dos patos bravos do betão e da consultadoria com as centenas de candidaturas autárquicas do último quarto de século? E se se estendesse a investigação à relação desses processos com o financiamento partidário?

VEMOS, OUVIMOS E LEMOS

Enquanto continua esta esquisita guerra global, onde, em cada dia que passa, ganha contornos a velha guerra civil mundial, cumpre chamar a atenção para o drama da democracia portuguesa continuar dominada pela tríade “imagem, sondagem, sacanagem”, para utilizarmos uma conhecida metáfora de Manuel Alegre.

Talvez seja mais adequado dizer-se que somos cada vez mais um país onde mandam os macacos cegos, surdos e mudos. Dos que vêem, ouvem e lêem, mas preferem ignorar, para agora parafrasearmos Sophia. Até preferimos encontrar um qualquer bode expiatório que, de vez em quando, atiramos para as morosidades processuais da chamada administração da justiça, enquanto que outros, do mesmo género caprónico, ou são amnistiados ou se candidatam aos eternos lugares da impunidade, que nenhuma comissão parlamentar de inquérito consegue lobrigar, porque maioria “oblige”.

Com efeito, os ditames do Estado-Espectáculo continuam a esmagar o Estado de Direito, repetindo o ditame salazarento proclamado por ocasião da inauguração da nossa réplica goebbelsiana, segundo o qual, “em política, o que parece, é”. Por outras palavras, todas as agências de marketing e comunicação, que fazem assessoria aos nossos principais protagonistas políticos, persistem no erro de propagar que em política só existe aquilo que se comunica em “slogan”, através do efémero dos breves minutos de um telejornal. Democracia não é teatrocracia de fantoches.

Em segundo lugar, muitos pretensos democratas, que nunca compreenderam a profunda mensagem de Rousseau, continuam a pensar que a “vontade de todos” se identifica com a “vontade geral”, repetindo a falácia dos eternos inimigos da democracia. Como ensinou Kant, e repetiu António Sérgio, a vontade de todos, marcada pela soma dos interesses de cada um, nunca pode ser a fonte da soberania popular. Não há democracia, se esta não assentar no esforço educativo da vontade geral, onde cada um decide como se fosse o próprio soberano, movido pelos interesses do todo e não pelos respectivos interesses particulares. Por outras palavras, a decisão de um indivíduo, no âmbito da cidadania, implica o imperativo categórico, onde a actuação de cada um tem que ser movida por uma espécie de lei universal. Democracia não é sondajocracia.

Em terceiro lugar, importa perceber que o chamado realismo maquiavélico, essa metodologia dos que parecem ter razão no curto prazo do efémero, além de ser sempre uma péssima moral, também é uma péssima política, porque, a médio prazo, todos contam a história do velho, do rapaz e do burro. Democracia não é sacanocracia.

Os nossos responsáveis políticos não podem continuar a lavar as mãos como Pilatos perante o crescendo dos inimigos da democracia e do Estado de Direito. Têm que reaprender que nem tudo o que é lícito é honesto e não podem contribuir para hipocrisia institucionalizada dos que correm às inspecções públicas e às entidades encarregadas da investigação criminal, pedindo certificados de não-pronúncia.

Todos os que viveram na idade da razão nos tempos de crepúsculo do regime derrubado em 25 de Abril de 1974, sabem, de experiência vivida, prevista há vinte e cinco séculos nos escritos de Platão, que os regimes se corrompem, quando apodrecem por dentro. É assim que as monarquias se transformam em tiranias, que as aristocracias se volvem em oligarquias e que as democracias passam a ser dominadas pela demagogia, esse despotismo de todos, que cai sempre nas garras dos cesarismos.

Hoje, como ontem, estamos comprimidos entre a corrupção (em sentido amplo e não do Código Penal) e o indiferentismo (dos que, sem ser por desleixo, entram no partido da abstenção). Mas hoje, tal como ontem, também sabemos que a podridão da decadência pode levar décadas. Porque muitos continuam a ver, a ouvir e a ler, mas preferem ignorar o 5 de Outubro, o 28 de Maio e o 25 de Abril.

Se o governo do Engenheiro Guterres fosse um bando de corruptos, tudo seria fácil. Encontrava-se uma alternativa e a maioria do povo, marcada pelo senso comum, salvaria a pátria. O problema está precisamente na circunstância das principais altezas da nossa governança pertencerem ao grupo dos que se pautam pela honestidade da conduta pessoal e pela firme convicção nos princípios que professam. Se o reconheço, sem qualquer sombra de hipocrisia, sinto o drama de não valer a pena mudar as moscas, porque, mantendo-se as teias infraestruturais em que se move a actividade política, nada se alterará quanto ao grosso dos dejectos que antraxizam o ambiente.

Se fosse movido pelas ideologias do Bloco de Esquerda, dos comunistas ou da direita saudosamente extremista, poderia continuar a embriagar-me de abstracções. Se fizesse parte de uma igreja, capelinha, ordem mística ou facção, sempre teria a ilusão colectivista da superioridade moral da gente do meu grupo, acabando nos vícios da ditadura do futuro ministério da virtude. Infelizmente, subscrevo a maioria dos valores cívicos dos que são ministros e deputados e não me apetece convidá-los à demissão, para virem talibans, formigas brancas, pides, sargentos da inquisição ou fiéis saneadores dos tempos do prec.

Confesso, portanto, a minha desorientação perante as presentes circunstâncias decadentistas, onde as manobras da oposição não passam de bailados orientados por um conjunto de personalidades secundárias do cavaquismo, entoando a loa do tempo voltar atrás. Não por culpa do Doutor Cavaco, mas porque os sinais de mudança prometidos por Guterres perderam autenticidade.

Sim! A vontade geral da democracia foi substituída pela soma das vontades interesseiras de cada um, habilmente manipuladas pelos permanecentes corporativismos de uma oligarquia sedenta de vingança, onde continuam a manobrar as teias de várias redes de gente sedenta de cheques.

Ora, quando a política é usurpada pelo doméstico e o espaço público se rebaixa aos níveis da casota, é natural que o Estado seja dominado pelo mercado da compra e venda do poder e que os profissionais da pulhítica se tornem cada vez mais profissionais da dita e cada vez menos políticos. Desta forma, regressam os fantasmas do absolutismo, bem presentes quando aquele que faz a lei, decide não cumprir aquilo que a lei determina, fazendo ainda mais leis para que nenhuma se cumpra, por causa da elefantíase.

Eu que apenas conheço alguns indícios resultantes do velho método da observação, sou capaz de identificar dezenas de deputados, de adjuntos ministeriais, de construtores civis, de autarcas, de dirigentes futebolísticos e de jornalistas políticos que continuam a pulular nesse ambiente. Confirma-se, assim, que em Portugal o importante não são os lugares governamentais, assessorais ou consultadoriais, mas o posto de vencimento que se consegue depois de se terem exercido certas funções públicas.

As teias da micropolítico explicam a frustração da macropolítica, onde continuamos a não querer ver, ouvir e ler. Porque quando os indivíduos perdem o sentido da autonomia, de viverem conforme as próprias regras que proclamam, a degradação propaga-se e todos apodrecemos em demagogia, clientelismo e pequenos cesarismos.

MAL COMUM DA SEMANA

Vemos, ouvimos e lemos

Para confirmar este decadentismo, basta atentarmos nos meandros da crise que afecta o chamado ensino superior privado, onde a opinião pública apenas conhece aquilo que foi publicado pelo caso da Moderna, não imaginando o que seria o mesmo tipo de cuidadosa investigação aplicado a outros estabelecimentos públicos e privados. O que seria de nós, se o Ministério permitisse certas “fugas de informação” sobre algumas inspecções que hão-de morrer na gaveta? O que aconteceria se os portugueses pudessem ter um organigrama das acumulações praticadas por políticos profissionais, no activo, ou na aposentadoria gerontocrática, no âmbito da docência, direcção, financiamento e avaliação do ensino superior privado? Publiquem, em letras garrafais, as recentes contratações de certas entidades ou as futuras nomeações para órgãos de controlo, principescamente remuneradas!

BEM COMUM DA SEMANA

Mas podemos ignorar

O que seria de Portugal se pudéssemos, muito cientificamente, listar de forma exaustiva a passagem de empregos públicos a privados, e vice-versa? É evidente que o Ministério Público, se tratasse de obter esta lista, nada de relevante encontraria no tocante à ilicitude, dado que a maior parte dos desonestos não infringe a lei e, quando o faz, nunca deixa rabos de palha. O que seria de Portugal se fosse possível publicar um catálogo da relação dos patos bravos do betão e da consultadoria com as centenas de candidaturas autárquicas do último quarto de século? E se se estendesse a investigação à relação desses processos com o financiamento partidário?

marcar artigo