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28-10-2002
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Zé Maria Subtil Sampaio

A presente campanha eleitoral talvez tenha sido a menos mobilizadora a que me foi dado viver até à presente data. Sem pensamento nem entusiasmo, num tempo de decadente Estado-Espectáculo e de cacafónica teledemocracia, quase pareceu daqueles documentários a preto e branco que, antigamente, precediam as grandes fitas do cinema sonoro e a cores.

Os argumentistas da campanha não lhe souberam imprimir adequado ritmo e os encenadores das várias peças do processo não conseguiram qualquer espécie de dramatismo. Tudo foi demasiadamente previsível, porque tudo antes de o ser já o era. As próprias invocações cefalópodes vindas do Bombarral , bem como as respostas do berbequim e do betão não surtiram efeito, a não ser pelo mau-gosto e pelo mau-senso.

Julgo que, com esta campanha se encerra um certo ciclo da vida política portuguesa, onde a velha esquerda conseguirá a ilusão do pleno, dado que, mais uma vez, terá um governo, uma maioria e um presidente, derrotando, de forma categórica, uma velha direita envergonhada, essa direita que convém à esquerda. Resta saber até quando acontecerá esta de vitória em vitória até à derrota final do gigante com pés de barro.

A velha direita e a velha esquerda que se defrontaram na presente campanha são herdeiras daquelas famílias político-culturais que, considerando a luta política como a continuação da guerra civil por outros meios, persistem em dividir-nos entre Deus e o Diabo, entre um pretenso bem e um pretenso mal, onde o bem e o mal se confundem nas suas posições antitéticas, típicas do pensamento binário.

A direita dos campanheiros presidenciais não percebeu que atingiu o princípio de Peter e não conseguiu explicar como é que um militante social-democrata, em luta com um socialista democrático, poderia ser o candidato dos “não-socialistas”. Os tais campanheiros da direita se não se tivessem constituído de forma autónoma teriam, aliás, de ser inventados pelos sampaístas, para estes poderem disfarçar o modelo plebiscitário que acabou por preponderar.

Depois de amanhã, os portugueses não vão escolher, vão referendar.

E foi de tal maneira evidente este excesso de confiança da esquerda instalada que até o candidato dos comunistas não desistiu, ousando medir forças com o Bloco de Esquerda e procurando reduzir Fernando Rosas à dimensão de Garcia Pereira.

A única oposição capaz de amedrontar o sampaísmo poderia ter vindo dos candidatos-surpresa, de Manuel João Vieira aos anónimos elegíveis que chegaram a apresentar-se, embora com irregularidades, junto do Tribunal Constitucional.

Mas quando o normal-anormal da partidocracia respirou de alívio e a esquerda dominante recuperou a confiança, as únicas areias na engrenagem acabaram por ser as ameaças da crescente popularidade do Zé Maria, bem como o episódio Subtil, em que a RTP acabou por suicidar-se.

A campanha presidencial revelou que, se não há crise do Estado-aparelho de poder, começa a estar em causa o Estado-comunidade, aquilo que os velhos teóricos da democracia deram o nome de república ou comunidade.

A velha esquerda e a velha direita consideravam que a energia da participação política se bipolarizava em exclusivo entre os “apoios” e as “reivindicações”, entre os “aplausos” e as “pateadas”. Não perceberam a emergência do crescente indiferentismo que marca o actual sistema político português, esse estado de espírito que, em vez de conduzir à revolta, pode explodir em apatia.

O antiquíssimo Zé Povinho de Rafael Bordalo Pinheiro corre o risco de ser substituído por um compósito Zé Maria Subtil Sampaio.

O primeiro, o Zé Maria, é o subproduto daquele videopoder que não conseguiu transformar o Estado-Espectáculo numa interactiva teledemoccracia.

O segundo, o Senhor Subtil, é o insensato apelo a que cada um faça justiça pelas suas próprias mãos, com um inconsciente regresso à vindicta privada.

O terceiro, Sampaio, entre a seta do Zé e a seta do Subtil, é a velha esquerda condenada a ficar rigorosamente ao centro. Porque o Doutor Cavaco Silva, muito contabilisticamente, não quis. Porque ao Doutor Freitas do Amaral, muito racionalisticamente, o não quiseram. Porque o Doutor Marcelo Rebelo de Sousa, com muito azar, se foi embora. Porque os outros marechais de direita se soarizaram. Porque os militares políticos que restam, de Eanes a Rocha Viera, foram excluídos à partida.

Isto é, a velha esquerda vai ganhar, por falta de comparência daquela velha direita envergonhada. Resta a incógnita de sabermos quem vai liderar o campeonato da segunda divisão: se o folclore da esquerda revolucionária; se a tradição organizada da esquerda comunista.

Voltando ao presente, importa sublinhar que o Estado-aparelho de poder pode e deve ser democraticamente disputado pelo “povo de direita” e pelo “povo de esquerda”, desde que se garanta a alternância. Já o Estado-Comunidade, pelo contrário, deve resultar do consenso vivo dos que se sentem para além da direita e da esquerda e que têm mais autoridade do que poder.

Quando elegemos directamente um parlamento e indirectamente um primeiro-ministro, eis que, de acordo com as clássicas teses do contrato social, estamos a actualizar o mero pacto de sujeição e a instituir o principado que nos vai representar e comandar. Mas quando somos chamados a escolher o magistrado representante de todos os portugueses, fazemos algo de mais sublime: tratamos de retomar o pacto de associação e procuramos dar figura humana à própria essência da comunidade.

E o desafio do século que agora se inicial tem, sobretudo, a ver com a eventual permanência da própria comunidade dos portugueses, no contexto da globalização e desse subcapítulo da mesma chamado construção europeia. Mesmo não votando naquele que será o próximo presidente, espero e confio que as virtudes cívicas e o instinto de resistência nacional lhe dêem suficiente altura de fins e um mínimo de patriotismo científico.

Bem Comum da Semana

O Regresso do Jornalismo

O aparecimento do canal Sic-Notícias demonstra como, afinal, o chamado quarto poder ainda nos pode surpreender pelo dinamismo e pela qualidade, lançando um novo desafio que poderá acordar outros gigantes com pés de palha e obrigando a um novo conceito de televisão pública, entendida menos pela titularidade estatal e mais pelo serviço prestado que bem pode ser feito em regime de concessão, depois de prévio concurso público.

Mal Comum da Semana

Os soldados e a democracia

Zé Maria Subtil Sampaio

A presente campanha eleitoral talvez tenha sido a menos mobilizadora a que me foi dado viver até à presente data. Sem pensamento nem entusiasmo, num tempo de decadente Estado-Espectáculo e de cacafónica teledemocracia, quase pareceu daqueles documentários a preto e branco que, antigamente, precediam as grandes fitas do cinema sonoro e a cores.

Os argumentistas da campanha não lhe souberam imprimir adequado ritmo e os encenadores das várias peças do processo não conseguiram qualquer espécie de dramatismo. Tudo foi demasiadamente previsível, porque tudo antes de o ser já o era. As próprias invocações cefalópodes vindas do Bombarral , bem como as respostas do berbequim e do betão não surtiram efeito, a não ser pelo mau-gosto e pelo mau-senso.

Julgo que, com esta campanha se encerra um certo ciclo da vida política portuguesa, onde a velha esquerda conseguirá a ilusão do pleno, dado que, mais uma vez, terá um governo, uma maioria e um presidente, derrotando, de forma categórica, uma velha direita envergonhada, essa direita que convém à esquerda. Resta saber até quando acontecerá esta de vitória em vitória até à derrota final do gigante com pés de barro.

A velha direita e a velha esquerda que se defrontaram na presente campanha são herdeiras daquelas famílias político-culturais que, considerando a luta política como a continuação da guerra civil por outros meios, persistem em dividir-nos entre Deus e o Diabo, entre um pretenso bem e um pretenso mal, onde o bem e o mal se confundem nas suas posições antitéticas, típicas do pensamento binário.

A direita dos campanheiros presidenciais não percebeu que atingiu o princípio de Peter e não conseguiu explicar como é que um militante social-democrata, em luta com um socialista democrático, poderia ser o candidato dos “não-socialistas”. Os tais campanheiros da direita se não se tivessem constituído de forma autónoma teriam, aliás, de ser inventados pelos sampaístas, para estes poderem disfarçar o modelo plebiscitário que acabou por preponderar.

Depois de amanhã, os portugueses não vão escolher, vão referendar.

E foi de tal maneira evidente este excesso de confiança da esquerda instalada que até o candidato dos comunistas não desistiu, ousando medir forças com o Bloco de Esquerda e procurando reduzir Fernando Rosas à dimensão de Garcia Pereira.

A única oposição capaz de amedrontar o sampaísmo poderia ter vindo dos candidatos-surpresa, de Manuel João Vieira aos anónimos elegíveis que chegaram a apresentar-se, embora com irregularidades, junto do Tribunal Constitucional.

Mas quando o normal-anormal da partidocracia respirou de alívio e a esquerda dominante recuperou a confiança, as únicas areias na engrenagem acabaram por ser as ameaças da crescente popularidade do Zé Maria, bem como o episódio Subtil, em que a RTP acabou por suicidar-se.

A campanha presidencial revelou que, se não há crise do Estado-aparelho de poder, começa a estar em causa o Estado-comunidade, aquilo que os velhos teóricos da democracia deram o nome de república ou comunidade.

A velha esquerda e a velha direita consideravam que a energia da participação política se bipolarizava em exclusivo entre os “apoios” e as “reivindicações”, entre os “aplausos” e as “pateadas”. Não perceberam a emergência do crescente indiferentismo que marca o actual sistema político português, esse estado de espírito que, em vez de conduzir à revolta, pode explodir em apatia.

O antiquíssimo Zé Povinho de Rafael Bordalo Pinheiro corre o risco de ser substituído por um compósito Zé Maria Subtil Sampaio.

O primeiro, o Zé Maria, é o subproduto daquele videopoder que não conseguiu transformar o Estado-Espectáculo numa interactiva teledemoccracia.

O segundo, o Senhor Subtil, é o insensato apelo a que cada um faça justiça pelas suas próprias mãos, com um inconsciente regresso à vindicta privada.

O terceiro, Sampaio, entre a seta do Zé e a seta do Subtil, é a velha esquerda condenada a ficar rigorosamente ao centro. Porque o Doutor Cavaco Silva, muito contabilisticamente, não quis. Porque ao Doutor Freitas do Amaral, muito racionalisticamente, o não quiseram. Porque o Doutor Marcelo Rebelo de Sousa, com muito azar, se foi embora. Porque os outros marechais de direita se soarizaram. Porque os militares políticos que restam, de Eanes a Rocha Viera, foram excluídos à partida.

Isto é, a velha esquerda vai ganhar, por falta de comparência daquela velha direita envergonhada. Resta a incógnita de sabermos quem vai liderar o campeonato da segunda divisão: se o folclore da esquerda revolucionária; se a tradição organizada da esquerda comunista.

Voltando ao presente, importa sublinhar que o Estado-aparelho de poder pode e deve ser democraticamente disputado pelo “povo de direita” e pelo “povo de esquerda”, desde que se garanta a alternância. Já o Estado-Comunidade, pelo contrário, deve resultar do consenso vivo dos que se sentem para além da direita e da esquerda e que têm mais autoridade do que poder.

Quando elegemos directamente um parlamento e indirectamente um primeiro-ministro, eis que, de acordo com as clássicas teses do contrato social, estamos a actualizar o mero pacto de sujeição e a instituir o principado que nos vai representar e comandar. Mas quando somos chamados a escolher o magistrado representante de todos os portugueses, fazemos algo de mais sublime: tratamos de retomar o pacto de associação e procuramos dar figura humana à própria essência da comunidade.

E o desafio do século que agora se inicial tem, sobretudo, a ver com a eventual permanência da própria comunidade dos portugueses, no contexto da globalização e desse subcapítulo da mesma chamado construção europeia. Mesmo não votando naquele que será o próximo presidente, espero e confio que as virtudes cívicas e o instinto de resistência nacional lhe dêem suficiente altura de fins e um mínimo de patriotismo científico.

Bem Comum da Semana

O Regresso do Jornalismo

O aparecimento do canal Sic-Notícias demonstra como, afinal, o chamado quarto poder ainda nos pode surpreender pelo dinamismo e pela qualidade, lançando um novo desafio que poderá acordar outros gigantes com pés de palha e obrigando a um novo conceito de televisão pública, entendida menos pela titularidade estatal e mais pelo serviço prestado que bem pode ser feito em regime de concessão, depois de prévio concurso público.

Mal Comum da Semana

Os soldados e a democracia

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