O fabuloso circo de horrores de umas eleições autárquicas

24-06-2020
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O fabuloso circo de horrores de umas
eleições autárquicas

Por José Manuel Fernandes

23/08/2013 in Público

Duplicou o número de candidaturas independentes, mas a maioria pouco tem a
ver com um ilusório despertar da sociedade civil

As eleições autárquicas deste ano podiam ser muito
interessantes pelas melhores razões. A lei da renovação de mandatos deveria
impedir umas largas dezenas de "dinossauros" de concorrerem e isso parecia
constituir uma excelente oportunidade para o aparecimento de novos líderes
locais, para um saudável processo de renovação e refrescamento. Infelizmente
estão a ser interessantes pelas piores razões, e não apenas pela balbúrdia
instalada em torno da interpretação da lei.
O que está a acontecer é um triste retrato do nosso sistema político e do
nosso sistema judicial. É inacreditável como a Assembleia da República não só
fez uma lei equívoca como descartou a possibilidade de a clarificar. Há nisso
responsabilidade de todos os partidos e uma responsabilidade especial da
presidente do Parlamento, Assunção Esteves, que não actuou como devia. É triste
ver como tantos presidentes de câmara e tantos presidentes de juntas de
freguesia tentam continuar as suas carreiras noutros municípios, muitas vezes
caindo neles literalmente de pára-quedas. Mas também é triste ver como um
partido que não tem qualquer tradição autárquica, o Bloco de Esquerda, se
pendurou na confusão para promover uma luta de guerrilha nos tribunais que nada
tem a ver com o que tem a propor - ou sobretudo com o que não tem a propor -
para os diferentes municípios.
A disparidade das sentenças judiciais, se confirma a falta de clareza do
texto legal, também é um bom indicador, por via da forma como algumas das
sentenças foram sustentadas, de um certo activismo judicial. Esse activismo
judicial, ainda mais evidente noutras sentenças recentes, é, a meu ver, um dos
sinais de doença da nossa democracia, um tema a que voltarei em breve.
Apenas uma nota sobre o conteúdo da lei de renovação de mandatos.
Pessoalmente não tenho qualquer dúvida de que o princípio republicano de que os
eleitos não devem eternizar-se nos seus postos - um princípio que vem da
República romana - é um bom e salutar princípio. Estou com Paulo Rangel quando
ele recorda "a célebre lei de bronze das oligarquias": "Aqueles que exercem um
cargo executivo "directamente" eleito ao longo de 12 anos têm obviamente uma
posição de controlo e de domínio que os coloca em vantagem sobre todos os
demais". Mas já não estou quando ele prolonga o princípio da inelegibilidade aos
concelhos onde esses cargos executivos não foram exercidos e onde, por isso
mesmo, a decorrente posição de controlo e domínio não existe. Não me parece que
um autarca que muda de concelho - independentemente de ser reprovável que o faça
- goze de uma vantagem desproporcionada, ou sequer superior a, por exemplo, uma
figura mediática que se candidate no mesmo concelho. Ora não passa pela cabeça
de ninguém considerar que a vantagem que uma figura mediática deva implicar a
sua não elegibilidade. A forma claríssima como Rangel formula o argumento
republicano anula toda a sua posterior e muito rebuscada argumentação sobre a
"transterritorialidade".
Mesmo estando o foco das eleições autárquicas - sobretudo o foco mediático -
obsessivamente centrado nas questões judiciais, a verdade é que estas eleições
podem ser muito interessantes noutras frentes. Vou referir três: as candidaturas
independentes; a luta entre o PS e o PSD; e o peso das freguesias.
Aparentemente houve uma inflação de candidaturas independentes, pois o seu
número duplicou. Trata-se porém de uma ilusão, pois não existem assim tantas
candidaturas saídas da sociedade civil. Na maior parte dos casos estamos perante
candidaturas que ou emanam dos órgãos autárquicos - como a lista de
Isaltino-sem-Isaltino em Oeiras, a lista de Valentim-sem-Valentim em Gondomar ou
a lista do número dois de Fernando Seara, Marco Almeida, em Sintra -, ou
permitem a candidatura de figuras que poderiam ter sido candidatos pelos
partidos mas acabaram por ser preteridas - como Guilherme Aguiar em Gaia ou Rui
Moreira no Porto. Não tenho dúvidas que algumas destas candidaturas têm uma
transversalidade e uma genuinidade que ultrapassa a fronteira dos partidos, mas
duvido que estejam realmente a revelar um pulsar da sociedade exterior a esses
mesmos partidos. Isto é, duvido que se esteja a alargar o espaço de intervenção
política, atraindo ao serviço público cidadãos desencantados com os actuais
limites do sistema partidário. Não está a acontecer, contra a expectativa de
muitos, nenhuma "revolta dos independentes". Diz-se muito mal dos partidos,
sobretudo dos partidos do "bloco central", mas há poucos sinais de que a sua
esmagadora hegemonia venha a ser, para já, posta em causa. Por movimentos de
cidadãos ou pela emergência de novas forças partidárias.
Se o impacto real das listas de independentes só poderá ser verificado na
noite eleitoral, é bem possível que em alguns concelhos imponham humilhações aos
grandes partidos, ou pelo menos a um deles. Mesmo assim o mais provável é que PS
e PSD continuem a ficar com a parte de leão das presidências de câmara. Isto
apesar das rocambolescas opções que esses dois partidos fizeram em muitos
municípios, incluindo nalguns dos mais importantes do país. As guerras e as
lógicas dos aparelhos parece terem-se sobreposto, demasiadas vezes, a critérios
de boa gestão local ou mesmo de boa aposta eleitoral.
O mais surpreendente é o que pode vir a passar-se com o PS. Em condições
normais, quer por via dos efeitos da política de austeridade, quer por este ano
acabar o ciclo de três mandatos iniciado nas eleições de 2001 - as que levaram à
inopinada demissão de António Guterres -, os socialistas deviam estar a
preparar-se para um passeio triunfal. Isso pode não vir a acontecer. O PS pode
perder municípios emblemáticos (Braga, Guarda, Matosinhos) e não conseguir
ganhar onde tinha todas as condições para isso (Sintra, Gaia, Porto). Ao mesmo
tempo que Seguro tenta baixar as expectativas, Passos Coelho sobe-as: no Pontal
disse querer ganhar as autárquicas mantendo o maior número de presidências de
câmara, quando se esperaria que estivesse já a tentar minimizar a derrota. O que
se está a passar? Como foi possível, por exemplo, que o PS tenha escolhido para
o Porto um candidato que se arrisca a ficar em terceiro lugar? Foi só por ser o
presidente da concelhia do partido?
Há quem defenda que Seguro fez bem ao dar poder às bases do partido e ao não
impor as suas escolhas e os seus candidatos. Eu sou um pouco mais cínico, pois
recordo que a maior parte das escolhas foi feita numa altura em que Seguro
precisava de ter o aparelho do seu lado para garantir que António Costa não o
destronava no Congresso. Por outras palavras: Seguro terá preferido segurar o
partido e o seu lugar de secretário-geral, mesmo quando isso representava
sacrificar as hipóteses de vitória em muitas autarquias.
As deambulações que Agosto sempre propicia têm a vantagem de nos revelarem a
galeria de horrores que são, de um modo geral, os cartazes eleitorais. Cartazes
que este ano parecem ter trazido uma novidade: a proliferação da propaganda
relativa aos candidatos às juntas de freguesia. Não sei se foi por efeito da
fusão de muitas destas unidades territoriais, se por os candidatos às câmaras
sentirem que precisam de surgir ao lado de figuras mais conhecidas e mais
próximas das populações. A verdade é que a quantidade de caras que nos surgem
penduradas em postes e árvores por todo esse país desafia a imaginação. Duvido é
que estimule muito a participação eleitoral: afinal de contas, as eleições para
os representantes políticos que estão mais perto dos eleitores sempre registaram
em Portugal taxas de abstenção mais elevadas do que as eleições nacionais.
Coisas da nossa democracia.

O fabuloso circo de horrores de umas
eleições autárquicas

Por José Manuel Fernandes

23/08/2013 in Público

Duplicou o número de candidaturas independentes, mas a maioria pouco tem a
ver com um ilusório despertar da sociedade civil

As eleições autárquicas deste ano podiam ser muito
interessantes pelas melhores razões. A lei da renovação de mandatos deveria
impedir umas largas dezenas de "dinossauros" de concorrerem e isso parecia
constituir uma excelente oportunidade para o aparecimento de novos líderes
locais, para um saudável processo de renovação e refrescamento. Infelizmente
estão a ser interessantes pelas piores razões, e não apenas pela balbúrdia
instalada em torno da interpretação da lei.
O que está a acontecer é um triste retrato do nosso sistema político e do
nosso sistema judicial. É inacreditável como a Assembleia da República não só
fez uma lei equívoca como descartou a possibilidade de a clarificar. Há nisso
responsabilidade de todos os partidos e uma responsabilidade especial da
presidente do Parlamento, Assunção Esteves, que não actuou como devia. É triste
ver como tantos presidentes de câmara e tantos presidentes de juntas de
freguesia tentam continuar as suas carreiras noutros municípios, muitas vezes
caindo neles literalmente de pára-quedas. Mas também é triste ver como um
partido que não tem qualquer tradição autárquica, o Bloco de Esquerda, se
pendurou na confusão para promover uma luta de guerrilha nos tribunais que nada
tem a ver com o que tem a propor - ou sobretudo com o que não tem a propor -
para os diferentes municípios.
A disparidade das sentenças judiciais, se confirma a falta de clareza do
texto legal, também é um bom indicador, por via da forma como algumas das
sentenças foram sustentadas, de um certo activismo judicial. Esse activismo
judicial, ainda mais evidente noutras sentenças recentes, é, a meu ver, um dos
sinais de doença da nossa democracia, um tema a que voltarei em breve.
Apenas uma nota sobre o conteúdo da lei de renovação de mandatos.
Pessoalmente não tenho qualquer dúvida de que o princípio republicano de que os
eleitos não devem eternizar-se nos seus postos - um princípio que vem da
República romana - é um bom e salutar princípio. Estou com Paulo Rangel quando
ele recorda "a célebre lei de bronze das oligarquias": "Aqueles que exercem um
cargo executivo "directamente" eleito ao longo de 12 anos têm obviamente uma
posição de controlo e de domínio que os coloca em vantagem sobre todos os
demais". Mas já não estou quando ele prolonga o princípio da inelegibilidade aos
concelhos onde esses cargos executivos não foram exercidos e onde, por isso
mesmo, a decorrente posição de controlo e domínio não existe. Não me parece que
um autarca que muda de concelho - independentemente de ser reprovável que o faça
- goze de uma vantagem desproporcionada, ou sequer superior a, por exemplo, uma
figura mediática que se candidate no mesmo concelho. Ora não passa pela cabeça
de ninguém considerar que a vantagem que uma figura mediática deva implicar a
sua não elegibilidade. A forma claríssima como Rangel formula o argumento
republicano anula toda a sua posterior e muito rebuscada argumentação sobre a
"transterritorialidade".
Mesmo estando o foco das eleições autárquicas - sobretudo o foco mediático -
obsessivamente centrado nas questões judiciais, a verdade é que estas eleições
podem ser muito interessantes noutras frentes. Vou referir três: as candidaturas
independentes; a luta entre o PS e o PSD; e o peso das freguesias.
Aparentemente houve uma inflação de candidaturas independentes, pois o seu
número duplicou. Trata-se porém de uma ilusão, pois não existem assim tantas
candidaturas saídas da sociedade civil. Na maior parte dos casos estamos perante
candidaturas que ou emanam dos órgãos autárquicos - como a lista de
Isaltino-sem-Isaltino em Oeiras, a lista de Valentim-sem-Valentim em Gondomar ou
a lista do número dois de Fernando Seara, Marco Almeida, em Sintra -, ou
permitem a candidatura de figuras que poderiam ter sido candidatos pelos
partidos mas acabaram por ser preteridas - como Guilherme Aguiar em Gaia ou Rui
Moreira no Porto. Não tenho dúvidas que algumas destas candidaturas têm uma
transversalidade e uma genuinidade que ultrapassa a fronteira dos partidos, mas
duvido que estejam realmente a revelar um pulsar da sociedade exterior a esses
mesmos partidos. Isto é, duvido que se esteja a alargar o espaço de intervenção
política, atraindo ao serviço público cidadãos desencantados com os actuais
limites do sistema partidário. Não está a acontecer, contra a expectativa de
muitos, nenhuma "revolta dos independentes". Diz-se muito mal dos partidos,
sobretudo dos partidos do "bloco central", mas há poucos sinais de que a sua
esmagadora hegemonia venha a ser, para já, posta em causa. Por movimentos de
cidadãos ou pela emergência de novas forças partidárias.
Se o impacto real das listas de independentes só poderá ser verificado na
noite eleitoral, é bem possível que em alguns concelhos imponham humilhações aos
grandes partidos, ou pelo menos a um deles. Mesmo assim o mais provável é que PS
e PSD continuem a ficar com a parte de leão das presidências de câmara. Isto
apesar das rocambolescas opções que esses dois partidos fizeram em muitos
municípios, incluindo nalguns dos mais importantes do país. As guerras e as
lógicas dos aparelhos parece terem-se sobreposto, demasiadas vezes, a critérios
de boa gestão local ou mesmo de boa aposta eleitoral.
O mais surpreendente é o que pode vir a passar-se com o PS. Em condições
normais, quer por via dos efeitos da política de austeridade, quer por este ano
acabar o ciclo de três mandatos iniciado nas eleições de 2001 - as que levaram à
inopinada demissão de António Guterres -, os socialistas deviam estar a
preparar-se para um passeio triunfal. Isso pode não vir a acontecer. O PS pode
perder municípios emblemáticos (Braga, Guarda, Matosinhos) e não conseguir
ganhar onde tinha todas as condições para isso (Sintra, Gaia, Porto). Ao mesmo
tempo que Seguro tenta baixar as expectativas, Passos Coelho sobe-as: no Pontal
disse querer ganhar as autárquicas mantendo o maior número de presidências de
câmara, quando se esperaria que estivesse já a tentar minimizar a derrota. O que
se está a passar? Como foi possível, por exemplo, que o PS tenha escolhido para
o Porto um candidato que se arrisca a ficar em terceiro lugar? Foi só por ser o
presidente da concelhia do partido?
Há quem defenda que Seguro fez bem ao dar poder às bases do partido e ao não
impor as suas escolhas e os seus candidatos. Eu sou um pouco mais cínico, pois
recordo que a maior parte das escolhas foi feita numa altura em que Seguro
precisava de ter o aparelho do seu lado para garantir que António Costa não o
destronava no Congresso. Por outras palavras: Seguro terá preferido segurar o
partido e o seu lugar de secretário-geral, mesmo quando isso representava
sacrificar as hipóteses de vitória em muitas autarquias.
As deambulações que Agosto sempre propicia têm a vantagem de nos revelarem a
galeria de horrores que são, de um modo geral, os cartazes eleitorais. Cartazes
que este ano parecem ter trazido uma novidade: a proliferação da propaganda
relativa aos candidatos às juntas de freguesia. Não sei se foi por efeito da
fusão de muitas destas unidades territoriais, se por os candidatos às câmaras
sentirem que precisam de surgir ao lado de figuras mais conhecidas e mais
próximas das populações. A verdade é que a quantidade de caras que nos surgem
penduradas em postes e árvores por todo esse país desafia a imaginação. Duvido é
que estimule muito a participação eleitoral: afinal de contas, as eleições para
os representantes políticos que estão mais perto dos eleitores sempre registaram
em Portugal taxas de abstenção mais elevadas do que as eleições nacionais.
Coisas da nossa democracia.

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