Consultas especiais para doentes das seguradoras "violam Constituição"

11-01-2004
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Consultas Especiais para Doentes das Seguradoras "Violam Constituição"

Por ALEXANDRA CAMPOS

Sexta-feira, 09 de Janeiro de 2004

A criação de consultas especiais com atendimento prioritário, dentro dos hospitais SA, para beneficiários dos seguros de saúde fez ontem estalar a polémica, tanto entre estruturas ligadas ao sector como no Parlamento. A Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares e a Ordem dos Médicos (OM) falam de discriminação de doentes e mesmo em inconstitucionalidade.

Questionado pelo PÚBLICO, Vital Moreira diz que ainda não dispõe de elementos suficientes para se poder afirmar se há ou não violação dos direitos fundamentais dos cidadãos, mas reconhece que a situação ontem descrita pelo PÚBLICO é, pelo menos, "problemática". "Esta é uma questão típica para a Entidade Reguladora da Saúde - que devia entrar imediatamente em funções", comenta o constitucionalista, que participou na criação desta estrutura.

Já no seu blogue, "Causa Nossa", Vital Moreira é mais contundente, ao afirmar que a situação "parece implicar uma discriminação contra os doentes do SNS [Serviço Nacional de Saúde]. Ora isso não seria compatível com o lugar desses hospitais como estabelecimentos do serviço público de saúde". Não pondo em causa os acordos para conquistar doentes do sector segurador, uma vez que os hospitais SA estão "no mercado de saúde", o jurista sublinha que tal "não pode ser feito à custa dos doentes do SNS, financiados pelo Estado, violando o princípio do acesso universal e da não discriminação".

Quem já não tem dúvidas sobre a inconstitucionalidade da situação que está a ser criada no Centro Hospitalar do Alto Minho (CHAM) é o presidente do Conselho Regional do Norte (CRN) da OM, Miguel Leão, que defende que a intenção de criação de uma área específica para atendimento de doentes das companhias de seguros viola a Constituição da República e a Lei de Bases da Saúde.

Em conferência de imprensa, os responsáveis da OM/CRN afirmaram ter solicitado expressamente ao ministro da Saúde que "accione a intervenção" da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) "para que esta previna e puna as práticas de rejeição discriminatória" anunciadas. As preocupações foram ainda transmitidas ao Presidente da República, "a título informativo".

O presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar do Alto Minho (CHAM), Fernando Marques, admitiu aos jornais que tenciona criar um serviço de consulta e tratamento "célere e personalizado" dos doentes das companhias de seguros no hospital de Viana do Castelo (o centro integra ainda o hospital de Ponte de Lima). Esta consulta será assegurada em horas normais ou extraordinárias, mas sem retirar a capacidade de intervenção médica ou técnica aos outros doentes, fez questão de esclarecer ontem.

"Vocação dos SA é ganhar dinheiro"

Para os responsáveis do CRN da OM, as declarações de Fernando Marques deixam transparecer uma realidade: a de que a "vocação dos hospitais SA não é tratar doentes mas sim arranjar dinheiro". E as medidas por ele anunciadas, consideram, violam o artigo 64º da Constituição, vários articulados da Lei de Bases da Saúde e também o "espírito e a letra" do decreto-lei (recentemente promulgado) que criou a ERS. Lembram, a propósito, que a ERS foi criada justamente para garantir o "acesso universal e igual" ao serviço público de saúde e para "prevenir e punir práticas de rejeição discriminatória ou infundada de pacientes nos estabelecimentos e serviços" do SNS. A verdade é que a ERS, entidade exterior ao Governo, ainda não começou a funcionar.

Mais cauteloso, o bastonário da OM, Germano Sousa, admitiu ao PÚBLICO que este assunto vai ser discutido no próximo conselho nacional executivo da Ordem, mas considerou que a intenção anunciada não deverá passar de "uma elucubração" de alguns administradores hospitalares. "É bom que a necessidade de dinheiro não os leve a perder o rumo do que deve ser um hospital do Serviço Nacional de Saúde. Esta solução atentaria não só contra a ética médica, mas também contra o que está estipulado na Constituição", afirmou, frisando que "não deve haver doentes de primeira e de segunda".

Na mesma linha, Manuel Delgado, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), considerou à agência Lusa que a existência deste tipo de consultas vai "fazer com que saiam dos hospitais os doentes mais velhos e com menos possibilidades financeiras, e fiquem os com problemas menos graves, e mais novos, que podem pagar". Em seu entender, "obter rendimentos sem pôr em causa o serviço público só seria possível se existisse uma capacidade instalada superior às necessidades".

"Isto vem no seguimento da própria desnatação [preferência pelos casos clínicos mais fáceis] que as seguradoras usam", adiantou o responsável da APAH, pois "quem tem seguros de saúde tem-nos para coisas pequenas": "Não há [seguros] para problemas de saúde catastróficos", acrescentou.

Posição diametralmente oposta foi defendida pelo presidente do Conselho de Administração do Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto, Artur Osório, para quem a prestação de cuidados de saúde com entidades privadas está prevista na lei e "não implica qualquer discriminação de doentes". Citado pelo "Portugal Diário", Artur Osório admite até a possibilidade de instituir um sistema idêntico no IPO, mediante o aluguer das salas e equipamentos aos médicos. Estas consultas privadas seriam prestadas fora do horário normal de serviço ou por médicos especialmente contratados para o efeito.

Ministro garante equidade

O ministro da Saúde rejeitou ontem que os hospitais transformados em sociedades anónimas venham a privilegiar as seguradoras e afirmou que os acordos com outras entidades "nunca podem por em causa a equidade de acesso" aos serviços públicos.

Em comunicado divulgado ao final do dia, Luís Filipe Pereira recorda ainda que a contratação de serviços entre as unidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e entidades como seguradoras ou subsistemas é uma possibilidade permitida pela legislação desde 1999, e que ocorre já no Centro de Responsabilidade de Cirurgia Cárdio- Toráxica dos Hospitais da Universidade de Coimbra.

Consultas Especiais para Doentes das Seguradoras "Violam Constituição"

Por ALEXANDRA CAMPOS

Sexta-feira, 09 de Janeiro de 2004

A criação de consultas especiais com atendimento prioritário, dentro dos hospitais SA, para beneficiários dos seguros de saúde fez ontem estalar a polémica, tanto entre estruturas ligadas ao sector como no Parlamento. A Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares e a Ordem dos Médicos (OM) falam de discriminação de doentes e mesmo em inconstitucionalidade.

Questionado pelo PÚBLICO, Vital Moreira diz que ainda não dispõe de elementos suficientes para se poder afirmar se há ou não violação dos direitos fundamentais dos cidadãos, mas reconhece que a situação ontem descrita pelo PÚBLICO é, pelo menos, "problemática". "Esta é uma questão típica para a Entidade Reguladora da Saúde - que devia entrar imediatamente em funções", comenta o constitucionalista, que participou na criação desta estrutura.

Já no seu blogue, "Causa Nossa", Vital Moreira é mais contundente, ao afirmar que a situação "parece implicar uma discriminação contra os doentes do SNS [Serviço Nacional de Saúde]. Ora isso não seria compatível com o lugar desses hospitais como estabelecimentos do serviço público de saúde". Não pondo em causa os acordos para conquistar doentes do sector segurador, uma vez que os hospitais SA estão "no mercado de saúde", o jurista sublinha que tal "não pode ser feito à custa dos doentes do SNS, financiados pelo Estado, violando o princípio do acesso universal e da não discriminação".

Quem já não tem dúvidas sobre a inconstitucionalidade da situação que está a ser criada no Centro Hospitalar do Alto Minho (CHAM) é o presidente do Conselho Regional do Norte (CRN) da OM, Miguel Leão, que defende que a intenção de criação de uma área específica para atendimento de doentes das companhias de seguros viola a Constituição da República e a Lei de Bases da Saúde.

Em conferência de imprensa, os responsáveis da OM/CRN afirmaram ter solicitado expressamente ao ministro da Saúde que "accione a intervenção" da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) "para que esta previna e puna as práticas de rejeição discriminatória" anunciadas. As preocupações foram ainda transmitidas ao Presidente da República, "a título informativo".

O presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar do Alto Minho (CHAM), Fernando Marques, admitiu aos jornais que tenciona criar um serviço de consulta e tratamento "célere e personalizado" dos doentes das companhias de seguros no hospital de Viana do Castelo (o centro integra ainda o hospital de Ponte de Lima). Esta consulta será assegurada em horas normais ou extraordinárias, mas sem retirar a capacidade de intervenção médica ou técnica aos outros doentes, fez questão de esclarecer ontem.

"Vocação dos SA é ganhar dinheiro"

Para os responsáveis do CRN da OM, as declarações de Fernando Marques deixam transparecer uma realidade: a de que a "vocação dos hospitais SA não é tratar doentes mas sim arranjar dinheiro". E as medidas por ele anunciadas, consideram, violam o artigo 64º da Constituição, vários articulados da Lei de Bases da Saúde e também o "espírito e a letra" do decreto-lei (recentemente promulgado) que criou a ERS. Lembram, a propósito, que a ERS foi criada justamente para garantir o "acesso universal e igual" ao serviço público de saúde e para "prevenir e punir práticas de rejeição discriminatória ou infundada de pacientes nos estabelecimentos e serviços" do SNS. A verdade é que a ERS, entidade exterior ao Governo, ainda não começou a funcionar.

Mais cauteloso, o bastonário da OM, Germano Sousa, admitiu ao PÚBLICO que este assunto vai ser discutido no próximo conselho nacional executivo da Ordem, mas considerou que a intenção anunciada não deverá passar de "uma elucubração" de alguns administradores hospitalares. "É bom que a necessidade de dinheiro não os leve a perder o rumo do que deve ser um hospital do Serviço Nacional de Saúde. Esta solução atentaria não só contra a ética médica, mas também contra o que está estipulado na Constituição", afirmou, frisando que "não deve haver doentes de primeira e de segunda".

Na mesma linha, Manuel Delgado, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), considerou à agência Lusa que a existência deste tipo de consultas vai "fazer com que saiam dos hospitais os doentes mais velhos e com menos possibilidades financeiras, e fiquem os com problemas menos graves, e mais novos, que podem pagar". Em seu entender, "obter rendimentos sem pôr em causa o serviço público só seria possível se existisse uma capacidade instalada superior às necessidades".

"Isto vem no seguimento da própria desnatação [preferência pelos casos clínicos mais fáceis] que as seguradoras usam", adiantou o responsável da APAH, pois "quem tem seguros de saúde tem-nos para coisas pequenas": "Não há [seguros] para problemas de saúde catastróficos", acrescentou.

Posição diametralmente oposta foi defendida pelo presidente do Conselho de Administração do Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto, Artur Osório, para quem a prestação de cuidados de saúde com entidades privadas está prevista na lei e "não implica qualquer discriminação de doentes". Citado pelo "Portugal Diário", Artur Osório admite até a possibilidade de instituir um sistema idêntico no IPO, mediante o aluguer das salas e equipamentos aos médicos. Estas consultas privadas seriam prestadas fora do horário normal de serviço ou por médicos especialmente contratados para o efeito.

Ministro garante equidade

O ministro da Saúde rejeitou ontem que os hospitais transformados em sociedades anónimas venham a privilegiar as seguradoras e afirmou que os acordos com outras entidades "nunca podem por em causa a equidade de acesso" aos serviços públicos.

Em comunicado divulgado ao final do dia, Luís Filipe Pereira recorda ainda que a contratação de serviços entre as unidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e entidades como seguradoras ou subsistemas é uma possibilidade permitida pela legislação desde 1999, e que ocorre já no Centro de Responsabilidade de Cirurgia Cárdio- Toráxica dos Hospitais da Universidade de Coimbra.

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