Suplemento Mil Folhas

14-06-2003
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A Fuga e a Tanga

Sábado, 14 de Junho de 2003

%Eduardo Prado Coelho

Ao publicar três das suas mais significativas entrevistas políticas, Manuel Maria Carrilho faz uma espécie de regresso à intervenção política, depois de alguns tempos em que permaneceu mais silencioso, embora nunca totalmente. Trata-se portanto de um gesto, de que podemos sublinhar três aspectos: em primeiro lugar, procura-se mostrar como a entrevista pode não ser um mero exercício de inscrição de opiniões mais ou menos conjunturais, mas também um espaço de polémica inteligente e de teorização rapsódica. Em segundo lugar, ao escolher a Fundação Mário Soares para o lançamento da obra, Carrilho deu um sinal explícito de como admira (e o difícil é não admirar) a forma como Mário Soares tem dominado, com lucidez e inteligência, os grandes movimentos da esquerda portuguesa. Em terceiro lugar, ao escolher Francisco Assis para apresentar o livro, pôs em relevo o apoio difícil que lhe deu para recentes eleições no interior do PS (e acabou por servir de palco para uma justíssima homenagem em relação ao modo claro, corajoso e desassombrado, como Francisco Assis interveio no penoso caso de Felgueiras, de que tivemos há dias uma penosa jornada televisiva).

Mas "Política à Conversa" (Editorial Notícias) tem outros motivos de interesse, não propriamente pela mensagem expressa (o grande tema de Manuel Maria Carrilho é o da necessidade de uma convergência de políticas que levem à qualificação dos portugueses), mas pelos aspectos aparentemente marginais e no entanto particularmente significativos ou sintomáticos.

Por exemplo, tendo ido buscar uma antiquíssima noção grega de que tudo na vida implica um tempo certo para ser feito, e de que uma coisa certa será errada se for feita no tempo errado, Manuel Maria Carrilho afasta com alguma sobranceria a ideia de que este livro estaria aqui para tornar claro que ele teve razão mais cedo do que os outros. E afirma com particular justeza: "Em política, nunca se tem verdadeiramente razão antes de tempo - e isso ter-nos-ia evitado muitos dissabores - ou a questão deixa de se pôr. A avaliação da razão no tempo tem a ver com a história, não com a política. A política tem a ver com a acção, é um compromisso com o próprio tempo."

Se analisarmos estas frases, vemos que elas tecem um enredo mais complexo do que poderia parecer - e é precisamente nestas passagens de uma densidade quase enigmática que Manuel Maria Carrilho nos desafia. Em primeiro lugar, distingue-se entre a história e a política. No plano da história, é possível ter razão antes de tempo. Mas a história é mais do domínio do "ele" (digamos: "Ele teve razão antes de tempo") do que do domínio do eu (daí o que há de politicamente insuportável em alguém que insista em dizer: "Eu tive razão antes de tempo"). Muito bem. Nós percebemos que Manuel Maria Carrilho "não tinha razão" antes de ter chegado ao tempo (que até chegou mais depressa do que se esperava) em que o Partido Socialista estaria em condições de ouvir o que ele tinha para dizer: daí que o seu discurso fosse inaudível nas circunstâncias em que foi proferido (e que a fotografia da contracapa evoca). Donde, politicamente, estava errado. Mas um erro político pode ser a condição histórica para uma intervenção política mais eficaz e pertinente: vemos assim que a força política de Manuel Maria Carrilho (e sobretudo o peso diferencial que o distingue entre os mais importantes dirigentes do PS) vem de nós já sabermos que a história (a história, e não Manuel Maria Carrilho) dirá que ele teve razão antes do tempo.

Isso permite-lhe uma posição extremamente subtil, mas deliberadamente ambivalente, em relação a António Guterres. Por um lado, Carrilho toma demasiado à letra, numa ingenuidade premeditada, o que terão sido as "razões nobres" (e elas existiram) da demissão de Guterres, e vem dizer (na primeira entrevista) que uma tal dignidade no modo de sair da política ficaria destruída se se transformasse em mero truque para preparar um regresso à política. Em segundo lugar, e numa atitude que só aparentemente é contraditória, toma à letra o discurso daqueles que dizem que se tratou de uma "fuga" perante as difíceis condições que se adivinhavam para o país. Mas, por fim, Manuel Maria Carrilho resgata o que esta afirmação poderia ter de traumatizante para o PS e vem dizer que o tema da "fuga" em relação a Guterres não é separável do tema da "tanga" em relação a Durão Barroso. Donde, a crítica a Guterres faz ricochete e vai embater no PSD: "O sofisma barrosista teve, é preciso dizê-lo com clareza, um aliado de peso no modo como A. Guterres abandonou o poder. Foi esse abandono, e a modalidade escolhida para o fazer, que credibilizou, em ''círculo virtuoso'', a retórica da tanga, segundo a qual o Governo socialista deixou o país nesse estado, e que foi justamente por isso que o anterior primeiro-ministro fugiu. A ''tanga'' e a ''fuga'', eis a miraculosa rima política que assim se ofereceu à direita, que a recitará sempre que lhe convier. E há quem diga que a boa rima nunca cansa..."

Encontramos neste texto alguns dos traços argumentativos de Carrilho. Um deles tem a ver com o modo como sublinha ou põe em relevo determinadas palavras, promovendo-as ao estatuto de quase-conceitos: temos assim, num plano ainda metafórico, o "sofisma barrosista" como temos a noção de "rima política". Utilizando quase sempre formulações inovadoras em termos de vocabulário político, Manuel Maria Carrilho distribui-as segundo arquitecturas discursivas que as reforçam e lhes dão uma incidência particularmente iluminante sobre as circunstâncias. Como se conseguisse que elas dissessem mais do que aparentemente dizem.

Isto tem a ver com um aspecto que gostaria de analisar. Todo o discurso de Manuel Maria Carrilho ganha nitidez e energia pelo facto de ir criando no leitor a ideia de que o que diz é dobrado por uma espessura existencial que escapa à dimensão da política. Este fazer política no horizonte voluntariamente silenciado de um além da política revela-se em múltiplos aspectos. Por exemplo, logo de início, Manuel Maria Carrilho justifica estas entrevistas no âmbito de um exercício mais vasto (a antropologicamente estudado) que é o da "arte da conversa". Neste plano, vai buscar a um livro de Theodore Zeldin, historiador das grandes estruturas em que se equilibra o viver social, um admirável "Elogio da Conversa" (Gradiva): a conversa tem o poder de modificar "não só a nossa própria maneira de ver o mundo, mas também o próprio mundo". E depois de enunciar os vários registos em que uma conversa funciona (a persuasão, a manipulação, a convicção), Carrilho acrescenta: "Essa singular forma de conversa que é a solidão."

Segundo exemplo: Carrilho sabe como os seus adversários, mais por inveja do que por outra coisa (mas noutros é mesmo "por outra coisa") o criticam pela permanente exposição na imprensa, e em particular na imprensa mundana. Pessoalmente, isso não me incomoda nada. Todos nós criamos uma imagem pública, que em parte controlamos e em parte não (mas nem sempre é mais controlado o que julgamos controlar). Aqueles que recusam uma imagem pública (e há os obstinados trabalhadores desses retratos a negro) só por ilusão podem pensar que não constroem uma imagem de recusa de uma imagem. E só uma imensa candura levará a supor que recusar o poder é entrar num espaço de impoder sem reservas: o espaço de impoder é uma outra forma de poder. Pela simples razão de que há palavras que não têm reverso: não existe o não-comportmento, a não-imagem ou o não-poder. Mas, sabendo isso tudo, Manuel Maria Carrilho escolhe a mais desafiadora das argumentações: vai buscar a um romance de Kundera uma formulação fascinante: "A nossa própria imagem é para nós o maior dos mistérios."

É por tudo isto que Manuel Maria Carrilho tem em política uma posição muito específica: há nele um antes da política que parece garantir um depois da política, e daí se pode pensar que o agora da política tem uma contingência que o torna mais vulnerável, mais livre e mais certeiro. Este livro é uma nova peça para o entendimento sempre em aberto do processo.

A Fuga e a Tanga

Sábado, 14 de Junho de 2003

%Eduardo Prado Coelho

Ao publicar três das suas mais significativas entrevistas políticas, Manuel Maria Carrilho faz uma espécie de regresso à intervenção política, depois de alguns tempos em que permaneceu mais silencioso, embora nunca totalmente. Trata-se portanto de um gesto, de que podemos sublinhar três aspectos: em primeiro lugar, procura-se mostrar como a entrevista pode não ser um mero exercício de inscrição de opiniões mais ou menos conjunturais, mas também um espaço de polémica inteligente e de teorização rapsódica. Em segundo lugar, ao escolher a Fundação Mário Soares para o lançamento da obra, Carrilho deu um sinal explícito de como admira (e o difícil é não admirar) a forma como Mário Soares tem dominado, com lucidez e inteligência, os grandes movimentos da esquerda portuguesa. Em terceiro lugar, ao escolher Francisco Assis para apresentar o livro, pôs em relevo o apoio difícil que lhe deu para recentes eleições no interior do PS (e acabou por servir de palco para uma justíssima homenagem em relação ao modo claro, corajoso e desassombrado, como Francisco Assis interveio no penoso caso de Felgueiras, de que tivemos há dias uma penosa jornada televisiva).

Mas "Política à Conversa" (Editorial Notícias) tem outros motivos de interesse, não propriamente pela mensagem expressa (o grande tema de Manuel Maria Carrilho é o da necessidade de uma convergência de políticas que levem à qualificação dos portugueses), mas pelos aspectos aparentemente marginais e no entanto particularmente significativos ou sintomáticos.

Por exemplo, tendo ido buscar uma antiquíssima noção grega de que tudo na vida implica um tempo certo para ser feito, e de que uma coisa certa será errada se for feita no tempo errado, Manuel Maria Carrilho afasta com alguma sobranceria a ideia de que este livro estaria aqui para tornar claro que ele teve razão mais cedo do que os outros. E afirma com particular justeza: "Em política, nunca se tem verdadeiramente razão antes de tempo - e isso ter-nos-ia evitado muitos dissabores - ou a questão deixa de se pôr. A avaliação da razão no tempo tem a ver com a história, não com a política. A política tem a ver com a acção, é um compromisso com o próprio tempo."

Se analisarmos estas frases, vemos que elas tecem um enredo mais complexo do que poderia parecer - e é precisamente nestas passagens de uma densidade quase enigmática que Manuel Maria Carrilho nos desafia. Em primeiro lugar, distingue-se entre a história e a política. No plano da história, é possível ter razão antes de tempo. Mas a história é mais do domínio do "ele" (digamos: "Ele teve razão antes de tempo") do que do domínio do eu (daí o que há de politicamente insuportável em alguém que insista em dizer: "Eu tive razão antes de tempo"). Muito bem. Nós percebemos que Manuel Maria Carrilho "não tinha razão" antes de ter chegado ao tempo (que até chegou mais depressa do que se esperava) em que o Partido Socialista estaria em condições de ouvir o que ele tinha para dizer: daí que o seu discurso fosse inaudível nas circunstâncias em que foi proferido (e que a fotografia da contracapa evoca). Donde, politicamente, estava errado. Mas um erro político pode ser a condição histórica para uma intervenção política mais eficaz e pertinente: vemos assim que a força política de Manuel Maria Carrilho (e sobretudo o peso diferencial que o distingue entre os mais importantes dirigentes do PS) vem de nós já sabermos que a história (a história, e não Manuel Maria Carrilho) dirá que ele teve razão antes do tempo.

Isso permite-lhe uma posição extremamente subtil, mas deliberadamente ambivalente, em relação a António Guterres. Por um lado, Carrilho toma demasiado à letra, numa ingenuidade premeditada, o que terão sido as "razões nobres" (e elas existiram) da demissão de Guterres, e vem dizer (na primeira entrevista) que uma tal dignidade no modo de sair da política ficaria destruída se se transformasse em mero truque para preparar um regresso à política. Em segundo lugar, e numa atitude que só aparentemente é contraditória, toma à letra o discurso daqueles que dizem que se tratou de uma "fuga" perante as difíceis condições que se adivinhavam para o país. Mas, por fim, Manuel Maria Carrilho resgata o que esta afirmação poderia ter de traumatizante para o PS e vem dizer que o tema da "fuga" em relação a Guterres não é separável do tema da "tanga" em relação a Durão Barroso. Donde, a crítica a Guterres faz ricochete e vai embater no PSD: "O sofisma barrosista teve, é preciso dizê-lo com clareza, um aliado de peso no modo como A. Guterres abandonou o poder. Foi esse abandono, e a modalidade escolhida para o fazer, que credibilizou, em ''círculo virtuoso'', a retórica da tanga, segundo a qual o Governo socialista deixou o país nesse estado, e que foi justamente por isso que o anterior primeiro-ministro fugiu. A ''tanga'' e a ''fuga'', eis a miraculosa rima política que assim se ofereceu à direita, que a recitará sempre que lhe convier. E há quem diga que a boa rima nunca cansa..."

Encontramos neste texto alguns dos traços argumentativos de Carrilho. Um deles tem a ver com o modo como sublinha ou põe em relevo determinadas palavras, promovendo-as ao estatuto de quase-conceitos: temos assim, num plano ainda metafórico, o "sofisma barrosista" como temos a noção de "rima política". Utilizando quase sempre formulações inovadoras em termos de vocabulário político, Manuel Maria Carrilho distribui-as segundo arquitecturas discursivas que as reforçam e lhes dão uma incidência particularmente iluminante sobre as circunstâncias. Como se conseguisse que elas dissessem mais do que aparentemente dizem.

Isto tem a ver com um aspecto que gostaria de analisar. Todo o discurso de Manuel Maria Carrilho ganha nitidez e energia pelo facto de ir criando no leitor a ideia de que o que diz é dobrado por uma espessura existencial que escapa à dimensão da política. Este fazer política no horizonte voluntariamente silenciado de um além da política revela-se em múltiplos aspectos. Por exemplo, logo de início, Manuel Maria Carrilho justifica estas entrevistas no âmbito de um exercício mais vasto (a antropologicamente estudado) que é o da "arte da conversa". Neste plano, vai buscar a um livro de Theodore Zeldin, historiador das grandes estruturas em que se equilibra o viver social, um admirável "Elogio da Conversa" (Gradiva): a conversa tem o poder de modificar "não só a nossa própria maneira de ver o mundo, mas também o próprio mundo". E depois de enunciar os vários registos em que uma conversa funciona (a persuasão, a manipulação, a convicção), Carrilho acrescenta: "Essa singular forma de conversa que é a solidão."

Segundo exemplo: Carrilho sabe como os seus adversários, mais por inveja do que por outra coisa (mas noutros é mesmo "por outra coisa") o criticam pela permanente exposição na imprensa, e em particular na imprensa mundana. Pessoalmente, isso não me incomoda nada. Todos nós criamos uma imagem pública, que em parte controlamos e em parte não (mas nem sempre é mais controlado o que julgamos controlar). Aqueles que recusam uma imagem pública (e há os obstinados trabalhadores desses retratos a negro) só por ilusão podem pensar que não constroem uma imagem de recusa de uma imagem. E só uma imensa candura levará a supor que recusar o poder é entrar num espaço de impoder sem reservas: o espaço de impoder é uma outra forma de poder. Pela simples razão de que há palavras que não têm reverso: não existe o não-comportmento, a não-imagem ou o não-poder. Mas, sabendo isso tudo, Manuel Maria Carrilho escolhe a mais desafiadora das argumentações: vai buscar a um romance de Kundera uma formulação fascinante: "A nossa própria imagem é para nós o maior dos mistérios."

É por tudo isto que Manuel Maria Carrilho tem em política uma posição muito específica: há nele um antes da política que parece garantir um depois da política, e daí se pode pensar que o agora da política tem uma contingência que o torna mais vulnerável, mais livre e mais certeiro. Este livro é uma nova peça para o entendimento sempre em aberto do processo.

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