O Cachimbo de Magritte: A política do espírito

03-07-2011
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Espreitem isto. É a Lei n.º 3/2008, o famoso Estatuto do Aluno.Ora, subitamente, num fim-de-semana de Novembro, foi produzido isto – um Despacho dominical ao tal Estatuto. Um Despacho que liberta um intenso odor a gemada.Começa o Despacho por rezar assim (subinhado meu):Considerando que a adaptação dos regulamentos internos das escolas ao disposto no Estatuto do Aluno nem sempre respeitou o espírito da Lei, permitindo dúvidas nos alunos e nos pais acerca das consequências das faltas justificadas designadamente por doença ou outros motivos similares (...)Tendo em vista clarificar os termos de aplicação do disposto no Estatuto do Aluno, determino o seguinte:1 – Das faltas justificadas, designadamente por doença, não pode decorrer a aplicação de qualquer medida disciplinar correctiva ou sancionatória. Quer dizer, há aqui um problema de espírito mal interpretado. As escolas, isto é, os professores, esses exegetas incompetentes, não conseguiram descortinar a virtude redentora do Estatuto. Não respeitaram o tal espírito da Lei.Esse elemento invisível, o espírito, determinava claramente que, sim, estai descansados ó pais extremosos e crianças–furiosas-de-ovos–nas-mãos!, as faltas justificadas têm uma natureza distinta das injustificadas e que, portanto, diz o espírito do Estatuto claramente, não deverão ser tratadas da mesma maneira. Os professores, já devíamos saber, materialistas, não deram ouvidos ao espírito.Bem, é verdade que o espírito, sendo imaterial, é invisível – por isso, a tal gente que dá aulas, não o podia enxergar, por mais que espremesse o Estatuto. Para além disso, invisível não é o mesmo que inexistente e esse referido espírito não podia ser visto, porque não existia. Na verdade, não só não existe, como é explicitamente contrariado. Não exagero. Leiam estas passagens, não descontextualizadas, como podem verificar acima (sublinhados meus):Artigo 22.ºEfeitos das faltas1 — Verificada a existência de faltas dos alunos, a escola pode promover a aplicação da medida ou medidas correctivas previstas no artigo 26.º que se mostrem adequadas, considerando igualmente o que estiver contemplado no regulamento interno.2 — Sempre que um aluno, independentemente da natureza das faltas, atinja um número total de faltas correspondente a três semanas no 1.º ciclo do ensino básico, ou ao triplo de tempos lectivos semanais, por disciplina, nos 2.º e 3.º ciclos no ensino básico, no ensino secundário e no ensino recorrente, ou, tratando -se, exclusivamente, de faltas injustificadas, duas semanas no 1.º ciclo do ensino básico ou o dobro de tempos lectivos semanais, por disciplina, nos restantes ciclos e níveis de ensino, deve realizar (...) uma prova de recuperação, na disciplina ou disciplinas em que ultrapassou aquele limite, competindo ao conselho pedagógico fixar os termos dessa realização.3 — Quando o aluno não obtém aprovação na prova referida no número anterior, o conselho de turma pondera a justificação ou injustificação das faltas dadas, o período lectivo e o momento em que a realização da prova ocorreu e, sendo o caso, os resultados obtidos nas restantes disciplinas, podendo determinar:(...)c) A exclusão do aluno que se encontre fora da escolaridade obrigatória, a qual consiste na impossibilidade de esse aluno frequentar, até ao final do ano lectivo em curso, a disciplina ou disciplinas em relação às quais não obteve aprovação na referida prova.E, agora, comparemos com o Despacho:1 – Das faltas justificadas, designadamente por doença, não pode decorrer a aplicação de qualquer medida disciplinar correctiva ou sancionatória.2 – A prova de recuperação a aplicar na sequência de faltas justificadas tem como objectivo exclusivamente diagnosticar as necessidades de apoio tendo em vista a recuperação de eventual défice das aprendizagens.3 – Assim sendo, a prova de recuperação não pode ter a natureza de um exame, devendo ter um formato e um procedimento simplificado, podendo ter a forma escrita ou oral, prática ou de entrevista.Diz a ministra que isto é uma clarificação. Mas, como bem se vê, trata-se duma alteração e não de uma mera clarificação do já exposto legalmente. Este Despacho não explicita nenhuma norma do Estatuto – modifica-o. De resto, acho giríssimo que um despacho de uma ministra altere uma Lei aprovada pela Assembleia da República... Ela e os secretários insistem, claro, que é uma clarificação e não uma alteração – é a sua habitual teimosia patológica em pretender alterar a realidade pela linguagem.Porquê esta mentira apressada de fim-de-semana? Qual é, digamos agora, o espírito que está por detrás disto?O Governo apanhou um susto com o súbito arremesso de produtos hortícolas e ovos por parte de centenas de alunos furiosos com um Estatuto absurdo e injusto. A coisa estava a alastrar pelo país e começava a ficar fora de controlo. Por outro lado, atrás dos alunos estão os pais – estes votam e começavam, juntamente com os filhos, a desconfiar da bondade das opções educativas do Governo. E os pais, para Sócrates, como se tem visto ad nauseam nestes anos, são um instrumento essencial para a marginalização dos professores. Havia então que acalmar a rua e piscar o olho aos pais.Com o Despacho "clarificador" (da clara do ovo, certamente), o Governo procura, de um só golpe, agradar aos pais e alunos e, duplamente, por um lado, isolar a contestação dos professores e, por outro, apresentar aos pais os professores como os verdadeiros responsáveis pelas disposições injustas do Estatuto – eles, que nem conseguem compreender o espírito da Lei. Teve que vir o ministério, caridoso, "clarificar" - o espírito, notoriamente às escuras.É nestas habilidadezinhas que se vê como é genuína a preocupação deste Governo com a Escola.


Espreitem isto. É a Lei n.º 3/2008, o famoso Estatuto do Aluno.Ora, subitamente, num fim-de-semana de Novembro, foi produzido isto – um Despacho dominical ao tal Estatuto. Um Despacho que liberta um intenso odor a gemada.Começa o Despacho por rezar assim (subinhado meu):Considerando que a adaptação dos regulamentos internos das escolas ao disposto no Estatuto do Aluno nem sempre respeitou o espírito da Lei, permitindo dúvidas nos alunos e nos pais acerca das consequências das faltas justificadas designadamente por doença ou outros motivos similares (...)Tendo em vista clarificar os termos de aplicação do disposto no Estatuto do Aluno, determino o seguinte:1 – Das faltas justificadas, designadamente por doença, não pode decorrer a aplicação de qualquer medida disciplinar correctiva ou sancionatória. Quer dizer, há aqui um problema de espírito mal interpretado. As escolas, isto é, os professores, esses exegetas incompetentes, não conseguiram descortinar a virtude redentora do Estatuto. Não respeitaram o tal espírito da Lei.Esse elemento invisível, o espírito, determinava claramente que, sim, estai descansados ó pais extremosos e crianças–furiosas-de-ovos–nas-mãos!, as faltas justificadas têm uma natureza distinta das injustificadas e que, portanto, diz o espírito do Estatuto claramente, não deverão ser tratadas da mesma maneira. Os professores, já devíamos saber, materialistas, não deram ouvidos ao espírito.Bem, é verdade que o espírito, sendo imaterial, é invisível – por isso, a tal gente que dá aulas, não o podia enxergar, por mais que espremesse o Estatuto. Para além disso, invisível não é o mesmo que inexistente e esse referido espírito não podia ser visto, porque não existia. Na verdade, não só não existe, como é explicitamente contrariado. Não exagero. Leiam estas passagens, não descontextualizadas, como podem verificar acima (sublinhados meus):Artigo 22.ºEfeitos das faltas1 — Verificada a existência de faltas dos alunos, a escola pode promover a aplicação da medida ou medidas correctivas previstas no artigo 26.º que se mostrem adequadas, considerando igualmente o que estiver contemplado no regulamento interno.2 — Sempre que um aluno, independentemente da natureza das faltas, atinja um número total de faltas correspondente a três semanas no 1.º ciclo do ensino básico, ou ao triplo de tempos lectivos semanais, por disciplina, nos 2.º e 3.º ciclos no ensino básico, no ensino secundário e no ensino recorrente, ou, tratando -se, exclusivamente, de faltas injustificadas, duas semanas no 1.º ciclo do ensino básico ou o dobro de tempos lectivos semanais, por disciplina, nos restantes ciclos e níveis de ensino, deve realizar (...) uma prova de recuperação, na disciplina ou disciplinas em que ultrapassou aquele limite, competindo ao conselho pedagógico fixar os termos dessa realização.3 — Quando o aluno não obtém aprovação na prova referida no número anterior, o conselho de turma pondera a justificação ou injustificação das faltas dadas, o período lectivo e o momento em que a realização da prova ocorreu e, sendo o caso, os resultados obtidos nas restantes disciplinas, podendo determinar:(...)c) A exclusão do aluno que se encontre fora da escolaridade obrigatória, a qual consiste na impossibilidade de esse aluno frequentar, até ao final do ano lectivo em curso, a disciplina ou disciplinas em relação às quais não obteve aprovação na referida prova.E, agora, comparemos com o Despacho:1 – Das faltas justificadas, designadamente por doença, não pode decorrer a aplicação de qualquer medida disciplinar correctiva ou sancionatória.2 – A prova de recuperação a aplicar na sequência de faltas justificadas tem como objectivo exclusivamente diagnosticar as necessidades de apoio tendo em vista a recuperação de eventual défice das aprendizagens.3 – Assim sendo, a prova de recuperação não pode ter a natureza de um exame, devendo ter um formato e um procedimento simplificado, podendo ter a forma escrita ou oral, prática ou de entrevista.Diz a ministra que isto é uma clarificação. Mas, como bem se vê, trata-se duma alteração e não de uma mera clarificação do já exposto legalmente. Este Despacho não explicita nenhuma norma do Estatuto – modifica-o. De resto, acho giríssimo que um despacho de uma ministra altere uma Lei aprovada pela Assembleia da República... Ela e os secretários insistem, claro, que é uma clarificação e não uma alteração – é a sua habitual teimosia patológica em pretender alterar a realidade pela linguagem.Porquê esta mentira apressada de fim-de-semana? Qual é, digamos agora, o espírito que está por detrás disto?O Governo apanhou um susto com o súbito arremesso de produtos hortícolas e ovos por parte de centenas de alunos furiosos com um Estatuto absurdo e injusto. A coisa estava a alastrar pelo país e começava a ficar fora de controlo. Por outro lado, atrás dos alunos estão os pais – estes votam e começavam, juntamente com os filhos, a desconfiar da bondade das opções educativas do Governo. E os pais, para Sócrates, como se tem visto ad nauseam nestes anos, são um instrumento essencial para a marginalização dos professores. Havia então que acalmar a rua e piscar o olho aos pais.Com o Despacho "clarificador" (da clara do ovo, certamente), o Governo procura, de um só golpe, agradar aos pais e alunos e, duplamente, por um lado, isolar a contestação dos professores e, por outro, apresentar aos pais os professores como os verdadeiros responsáveis pelas disposições injustas do Estatuto – eles, que nem conseguem compreender o espírito da Lei. Teve que vir o ministério, caridoso, "clarificar" - o espírito, notoriamente às escuras.É nestas habilidadezinhas que se vê como é genuína a preocupação deste Governo com a Escola.

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